Exploração

Dia do Combate ao Abuso Infantil é marcado por empenho do governo contra a educação sexual

Bolsonaro já sugeriu que pais rasgassem as páginas da “Caderneta de saúde da adolescente” dedicadas à educação sexual

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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“A gente tem se deparado com um contexto de desmonte em que falar sobre violência e educação sexual é entrar quase num lugar de algo errado", diz Jamyle Sousa - Foto: Dayanne Santos

Nesta quarta, 18 de maio, o Brasil celebra o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Mas há pouco o que comemorar: mais da metade dos abusos (67%) ocorrem dentro de casa e entre pessoas próximas à família, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021. 

Segundo Jamyle Sousa, psicóloga e integrante do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca-CE), a falta de entendimentos sobre a importância da educação sexual, principalmente nas escolas, é um obstáculo na prevenção e combate do abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes.  

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“A gente tem se deparado com um contexto de desmonte, em que falar sobre violência e educação sexual é entrar quase num lugar de algo errado, como se a educação sexual fosse uma forma de erotizar e sexualizar as crianças. E a gente identifica isso bastante a partir principalmente do contexto político brasileiro que é contra mesmo a educação sexual”, afirma Sousa.  

Assim que assumiu a Presidência da República, Jair Bolsonaro (PL) sugeriu que cuidadores de crianças e adolescentes rasgassem as páginas da “Caderneta de saúde da adolescente”, impressa pelo Ministério da Saúde para meninas de 10 a 19 anos, com ilustrações dedicadas à educação sexual. 

Uma das páginas destacadas pelo capitão reformado dizia que “é na adolescência que também se inicia o interesse pelas relações afetivas e sexuais. Por isso, é normal que os adolescentes manipulem o próprio corpo (masturbação) em busca de sensações prazerosas”. 

“São 40 páginas, tem muitas informações boas, precisas, mas o final dela fica complicado, no meu entendimento. Se você, pai ou mãe, achar que não, é direito teu. Então, é uma sugestão. Quem tiver a cartilha em casa, dá uma olhada porque vai estar na mão dos seus filhos, e, se você achar que é o caso, tira essas páginas que tratam desse tipo de assunto”, afirmou o presidente na ocasião. 

::Campanha #NãoEraCarinho alerta contra exploração e abuso de meninas e adolescentes::

Para Sousa, entretanto, “quando as pessoas partem desse local de moralismo, que vê a educação sexual como uma forma de erotização e sexualização dos corpos das crianças e adolescentes”, a violência que as crianças e adolescentes estão sofrendo perde visibilidade e, consequentemente, deixa de ser combatida. Reflexo disso é que apenas três estados do Brasil orientam escolas a terem disciplinas sobre educação sexual, segundo uma pesquisa feita pelo Gênero e Número de fevereiro deste ano. 

Ao contrário do que se ventila em muitos lugares, o objetivo da educação sexual nas escolas é fazer com que “as crianças conheçam os seus corpos, os direitos e os locais onde podem recorrer em caso de violência”, uma vez que é nas escolas que as crianças passam boa parte do tempo, ou pelo menos deveriam.  

A psicóloga afirma que a escola deve ser um ambiente onde as crianças e os adolescentes podem identificar o que são as situações de violência, além de um ambiente seguro para denunciar eventuais violações. “É muito comum que pessoas que realizam trabalhos acerca dessa temática recebam denúncias de crianças que acabam reconhecendo situações de violência”, afirma Sousa. “Se dentro de casa elas não têm um adulto com o qual elas se sentem seguras para denunciar essas violências, elas podem ter esse status na escola”, afirma a psicóloga. 

::Violações de direitos de crianças e adolescentes se intensificam durante a pandemia::

“A gente precisa entender que a educação sexual é uma forma das crianças e adolescentes conhecerem os seus os seus corpos e se prevenir. Crianças e adolescentes têm direito sobre seus corpos, inclusive de se proteger e dizer quem é que vai poder tocar nesses corpos e a forma que esses corpos devem ser tocados. Para isso a gente precisa educar sexualmente essas crianças.” 

Reconhecer os sinais 

Sabe aquela história de que em briga de marido e mulher não se mete a colher? Essa história já é conhecida, e quem sai perdendo são as mulheres. Da mesma maneira, quando não se mete a colher em defesa das crianças e adolescentes, são elas que saem perdendo. “Historicamente a gente tem uma visão de que o acontece no ambiente privado só diz respeito aquelas pessoas. Quando a gente fala de família, as questões são tratadas como problemas familiares. Isso faz com que grande parte da sociedade civil feche os olhos em caso de violência contra criança e adolescentes”, afirma Sousa.  

E não pode ser assim: “A sociedade civil tem um papel importante e essencial no combate aos casos de violência e exploração sexual de crianças e adolescentes. E o primeiro passo é entender os sinais e não se silenciar quando observar esses sinais”. 

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A psicóloga explica que os primeiros sinais presentes em alguém que passa por situações de violência são as mudanças bruscas de comportamento. Por exemplo, uma criança sociável que passa a não gostar mais de interagir outras pessoas. Outro sinal são as marcas no próprio corpo das crianças, que algumas até tentam esconder por medo ou vergonha. Sousa também cita comportamentos erotizados, como a masturbação em locais públicos. “A gente sabe que além dos sinais, existem outras observações, como cenas e alguns toques que causam estranheza”, diz. 

O primeiro passo é não se silenciar e procurar os órgãos responsáveis pela proteção daquela criança, como o Conselho Tutelar, as delegacias especializadas e o Disque 100, por onde a denúncia pode ser feita anonimamente. 

E lembrando que não há um padrão nas crianças e nos adolescentes que sofrem violência sexual e outros tipos de exploração. “Os casos são múltiplos”, afirma Sousa. “Pode ser que uma criança que sofre violência sexual também passe por situações de negligência, abandono, maus tratos. Mas há casos também em que essas crianças não sofrem a negligência, mas mesmo assim passam por violência sexual.” 

Infâncias e Adolescências Invisibilizadas 

Recentemente, movimentos populares que atuam na defesa de direitos de crianças e adolescentes lançaram uma série de estudos Infâncias e Adolescências Invisibilizadas, coordenada pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, com o objetivo de produzir dados e informações visando a prevenção e o combate a violações.  

“Através dos cadernos, é possível compreender como a violência e o abuso sexual estão sujeitos a marcadores sociais de classe, gênero, orientação sexual, raça, etnia, territórios e pertencimentos e como a educação e a escola são fundamentais para prevenir esse tipo de violência”, informam as organizações em nota.  

“O objetivo desses estudos é mostrar que, mesmo diante de questões como a violência sexual contra crianças e adolescentes, é imprescindível considerar que não existe uma infância, designada universalmente pelo tempo de vida, mas se trata de múltiplas infâncias, plurais e atravessadas por particularidades.” 

No total, são oito cadernos com informações sobre infâncias e adolescências divididas nas seguintes temáticas: situação de rua; migrantes; residentes em territórios urbanos em zonas de conflito e violência;  sistema socioeducativo; em contexto de reforma agrária; agricultura familiar; quilombolas; e indígenas. 

O “Infâncias e Adolescências Invisibilizadas” é composto por Anced (Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente), Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Cedeca-CE (Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará), FNPETI (Fórum Nacional de Prevenção e. Erradicação do Trabalho Infantil), MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), MNMMR (Movimento Nacional Meninos e Meninas de Rua) e Sefras (Serviço Franciscano de Solidariedade). 

O projeto também contou com a participação da CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos) e da ANAÍ (Associação Nacional de Ação Indigenista). 

Edição: Rodrigo Durão Coelho