Fim da hiperinflação, projeções positivas de crescimento, taxa de câmbio estável e inflação mais baixa da última década. São esses os elementos que dominam o debate sobre a economia da Venezuela nos primeiros meses de 2022 e fazem com que a prometida recuperação econômica volte a ser tema de discussão entre diversos setores do país.
Em meio a visões céticas e otimistas, o debate ganhou novos contornos no final do mês de abril e no início de maio, quando anúncios feitos pelo presidente Nicolás Maduro e a instalação de mesas de diálogo entre governo, empresários e sindicatos prometeram avançar em um dos pontos fundamentais para superar a crise: a recuperação dos salários.
Apesar do salário mínimo ter passado por um aumento de mais de 1700% no início de março, saindo de 7 para 130 bolívares (cerca de 29 dólares), um reajuste maior do que a inflação, a Venezuela segue tendo o menor salário mínimo da América Latina, fruto de uma intensa crise iniciada em 2014 que gerou uma desvalorização da moeda nacional, uma hiperinflação que durou quatro anos e uma redução drástica dos ingressos devido à queda no preço internacional do petróleo e às sanções econômicas impostas pelos EUA.
Segundo dados da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), o salário mínimo no país sofreu uma redução de mais de 80% entre 2014 e 2020. Já a inflação anual ficou em 284,4%, de acordo com o Banco Central da Venezuela (BCV).
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Foi pensando neste quadro econômico que, diante de uma multidão de apoiadores reunidos em Caracas no último dia 1º de maio para celebrar o Dia Internacional do Trabalhador, o presidente Nicolás Maduro prometeu iniciar um processo de revisão de todos os acordos coletivos do país para "gerar riqueza com bolívares orgânicos e caminhar para a recuperação do salário mínimo e dos pisos salariais de todos os trabalhadores do país".
Além disso, o mandatário anunciou outras medidas que pretendem fortalecer a capacidade aquisitiva da população "em meio a essa guerra econômica imperialista". Entre elas estão a criação de um bônus de 10 mil bolívares (cerca de 2.253 dólares) para os aposentados, a inauguração de um banco digital para o pagamento de benefícios sociais aos trabalhadores e um pacote de ajustes trabalhistas para distintas categorias, desde trabalhadoras domésticas até motoboys, que será debatido pelo Legislativo.
"O segundo semestre deste ano será duas vezes melhor do que o que vimos nos últimos meses, vamos sem dúvida recuperar o estado de bem-estar social do socialismo bolivariano graças à classe trabalhadora, ao povo e, também, temos que dizer, aos empresários patriotas que acreditaram na Venezuela", disse Maduro.
A proposta de revisão de acordos coletivos e pisos salariais também foi levantada durante o Foro de Diálogo Social, que instalou mesas de negociações entre governo, entidades patronais e representantes sindicais, com apoio técnico da Organização Internacional do Trabalho (OIT), no dia 26 de abril.
Entre os objetivos dos diálogos, cuja segunda rodada deve ocorrer nos próximos meses, estão a revisão do salário mínimo, a devolução de empresas expropriadas e possíveis mudanças na legislação trabalhista do país. Carlos Fernández, presidente da maior entidade patronal da Venezuela, a Fedecâmaras, chegou a afirmar, em entrevista à Union Radio, que as primeiras conversas entre os 120 participantes do Foro “foram muito exitosas”, mas que qualquer anúncio sobre aumentos salariais irá depender do “aumento da produtividade nacional”.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a economista Judith Odreman disse acreditar que a ampliação de monopólios empresariais e a fuga de mão de obra qualificada, consequência da onda migratória que o país sofreu nos últimos anos, levaram a um processo de “divisão desigual da renda”, que gerou distorções nos salários.
Entretanto, para a especialista, os diálogos entre setores econômicos e governamentais aliados aos indicadores econômicos que se mantém estáveis são fatos positivos que devem ser enxergados dentro do contexto atual do país.
"O governo Maduro tem feito esforços nesse sentido para recuperar os salários, e as negociações ocorrem diante deste quadro onde há escassez de mão de obra qualificada, relações de produção capitalistas, dificuldades fiscais e concentração de monopólios, que levam a essa situação de distorção salarial”, explica.
A possibilidade de recuperação dos salários a curto prazo por meio dos diálogos instalados é contestada por Ronald Balza, professor de Economia da Universidade Católica Andrés Bello (UCAB). Para o economista, a falta de transparência do governo sobre indicadores econômicos como crescimento do PIB, rendimento de setores estratégicos e relações com o setor privado geram “insegurança” para os agentes econômicos e são impeditivos para redistribuição da renda no país.
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"Suponhamos que eu seja o dono de uma empresa e vou contratar os trabalhadores, pagando o que eu quero e como eu quero. Isso não pode ser assim. Há limites para o salário mínimo que devem ser aceitáveis para as empresas, negociados com os trabalhadores e sustentados pela administração pública. Agora a OIT vem à Venezuela e então o governo diz que, agora sim, os salários vão melhorar. Eu não acredito nisso até que eles publiquem esses dados e estejam dispostos a discutir com esses dados em mãos”, afirma.
Inflação e dolarização: obstáculos para melhorar os salários
Em seu discurso durante o ato de 1º de maio, Maduro se referiu ao último aumento no salário mínimo e disse que a medida foi apenas o começo da recuperação. “O aumento de todos os pisos salariais está sustentado na riqueza real do país, em bolívares orgânicos que não geram inflação, com base na recuperação da economia", afirmou o presidente.
Ainda que o salário mínimo tenha sido elevado para 29 dólares e que, somado ao bônus para alimentação, chegue aos 39 dólares, o valor ainda é baixo.
Apesar de o país ter encerrado o ciclo de hiperinflação, apresentado em março a menor inflação mensal da última década e ter alcançado certa estabilidade cambial frente ao dólar (a cotação atual do bolívar é de 4,54 para 1 dólar), os anos de gigantescos aumentos nos preços e os efeitos das sanções econômicas que dificultam a entrada de divisas seguem corroendo o poder de compra dos venezuelanos.
A oposição ao governo venezuelano reforça os desafios pelos quais passará o governo de Maduro. O Observatório Venezuelano de Finanças (OVF), organismo não governamental ligado à oposição, aponta que o custo da cesta básica para o mês de março foi de 187 dólares e o salário mínimo atual só conseguiria arcar com 10,5% dos produtos listados.
Já Odreman afirma que se a inflação dos próximos meses de 2022 se mantiver em um dígito e se a taxa de câmbio continuar estável, o cenário pode ser cada vez mais favorável ao poder aquisitivo dos venezuelanos.
“Existe uma expectativa de que as pessoas possam continuar se mantendo com um nível de salários entre os 30 e os 50 dólares, principalmente se houver um novo aumento. Com isso uma pessoa pode se manter, ainda que não seja suficiente para a cesta básica que uma população requer”, diz.
:: Para incentivar uso da moeda nacional, Venezuela adota novo imposto sobre transações em dólar ::
Além da deterioração do poder de compra dos trabalhadores, a Venezuela passa por um processo de dolarização forçada, consequência dos anos de hiperinflação e desvalorização da moeda local. O problema vem sendo enfrentado com cautela pelo governo para que os preços e o câmbio se mantenham estáveis.
Medidas como injeções de dólares na economia por parte do Banco Central e a criação de um imposto para pagamentos com moedas estrangeiras, o chamado IGTF, que visam controlar a taxa de câmbio e incentivar o uso de bolívares nas transações cotidianas respectivamente, parecem dar os primeiros resultados.
Segundo um estudo do OVF, os pagamentos em bolívares aumentaram 3,7% no mês de abril com relação ao mês anterior, representando 53,2% de todas as transações comerciais realizadas no país. "Isso se explica fundamentalmente pela entrada em vigor do imposto sobre grandes transações financeiras, cujo efeito mais importante foi penalizar o uso do dólar como forma de pagamento", aponta o órgão.
A dolarização também experimentou uma retração no pagamento dos salários já que, de acordo com o OVF, 63% das remunerações do país em abril foram pagas em moeda norte-americana, quantia menor do que os 69% registrados em março.
Para Balza, o combate à inflação cabe exclusivamente ao governo, que deveria ser capaz de gerar ingressos e criar reservas para se financiar sem a necessidade de emitir moeda. O economista vai além e diz que a estratégia não deve se limitar ao combate ou à permissão do uso de dólares, mas sim possibilitar um maior volume de circulação, seja em moeda nacional ou estrangeira, para gerar mais transações.
"A inflação não vai ser corrigida com controle de preços, nem com controle de câmbio, nem eliminando o bolívar e dolarizando a economia, ao contrário, a estabilidade de preços vai ocorrer quando o governo parar de financiar seus gastos com bolívares. Portanto não temos que dolarizar ou desdolarizar a economia, temos que facilitar a existência de transações”, afirma.
Crescer: quanto, para onde e para quem?
Apesar das dificuldades geradas pelas sanções norte-americanas e do fato de a retomada da produção petroleira ainda ser modesta, organismos internacionais seguem projetando bons índices de crescimento para a economia da Venezuela.
Após o banco de investimentos Credit Suisse afirmar que o país poderia crescer até 20% neste ano, a CEPAL estimou que o PIB venezuelano deve ter um crescimento de 5% em 2022, o maior entre todos os países da América do Sul e o 3º maior em toda a América Latina.
O professor Ronald Balza acredita que, de fato, o país pode crescer aos níveis indicados pelos organismos internacionais a depender dos índices de referência que as projeções são feitas e dos investimentos que ocorram na economia venezuelana este ano. Apesar disso, o economista afirma que esse crescimento não será revertido em melhoria salarial para todas as categorias.
“Quando qualquer instituição faz uma projeção e fala em 20% ou 5%, devemos perguntar qual foi o PIB que eles calcularam para o ano de 2022. A recuperação é possível, mas sobre uma melhoria nos salários que seja fruto desse crescimento, eu acredito que só será possível em algumas atividades, para alguns níveis de renda e para algumas especialidades de trabalho, não para todas”, diz.
Para Odreman, no entanto, o governo deve aproveitar a estabilidade nos indicadores da inflação e do câmbio para ampliar a demanda interna reativando a produção nacional, não apenas na indústria petroleira, mas principalmente em áreas da economia que gerem empregos e que não estejam ligadas ao setor rentista, como os ramos alimentícios, manufatureiros e da construção civil.
“Eu sou otimista em relação ao crescimento do país, nós já estamos vendo isso pouco a pouco. Sou mais otimista em relação ao ano de 2023, se a pandemia nos deixar e o panorama geopolítico mundial melhorar, o país vai apresentar números muito, muito bons”, afirma a economista.
Edição: Arturo Hartmann