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Capital da Venezuela "descoloniza" símbolos e inclui negros e indígenas em emblemas oficiais

Mudanças aboliram emblema concedido pelo rei da Espanha durante o período colonial; reforma divide especialistas

São Paulo (SP) |

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Símbolos renovados de Caracas - Brasil de Fato

A cidade de Caracas, capital da Venezuela, decidiu mudar seus símbolos oficiais e substituir elementos herdados do período colonial por referências a figuras negras, indígenas e políticas em seu novo escudo, hino e bandeira. A mudança, aprovada em abril pela Câmara Municipal da cidade, faz parte de um processo de "descolonização e reivindicação" dos emblemas e espaços públicos do país levado a cabo em distintos momentos pelos governos chavistas nacionais e regionais.

Sancionada oficialmente pela prefeita Carmen Meléndez no dia 13 de abril, a reforma aboliu o escudo concedido pelo então rei da Espanha Felipe II em 1591, que exibia a tradicional figura de um leão em referência ao nome original da cidade, Santiago de León de Caracas. O novo símbolo, por sua vez, traz em destaque os bustos de um homem indígena, de uma mulher negra e do libertador Simón Bolívar. 

Além disso, o escudo atual destaca duas datas do século XIX, as de 1810 e 1811, que marcam a insurreição que instituiu um governo autônomo na cidade e a fundação da Primeira República, e outras duas do século XX e XXI, as de 1989 e 2002, em referência à rebelião popular que passou para a história como Caracazo e a derrota do golpe de Estado que tentou derrubar o ex-presidente Hugo Chávez, respectivamente.

"Há anos, Caracas precisava de símbolos em busca da descolonização e agora estamos mudando, com a participação do nosso povo, com Bolívar como personagem central, porque somos e seremos bolivarianos para sempre", afirmou a prefeita Meléndez em discurso de inauguração dos novos emblemas.

O novo escudo ainda traz duas aves muito comuns na capital, o Gonzalito e a Arara, as figuras da espada de Bolívar e de uma lança indígena, e uma estrela vermelha que, segundo o decreto municipal, representa a "Revolução Bolivariana rompendo por completo as correntes de toda tentativa de jugo ou dominação".


Novo escuda da capital venezuelana / Governo de Caracas

A mudança ainda incluiu a bandeira da cidade, que também aboliu o uso do emblema de 1591 concedido pelo rei espanhol. Em seu lugar, o novo símbolo agora traz predominantemente as cores vermelha, que representa "o sangue de todas as lutas por nossa independência, simboliza luta e revolução, socialismo, mudanças", e azul, em referência ao "particular céu azul caraquenho".

Ao centro, sob uma estrela branca que evoca "a rebeldia de brilhar constantemente", está a representação do Waraira Repano, montanha de 850 km² de superfície considerada fortaleza natural da cidade e que também é conhecida como El Ávila. A história da existência de dois nomes para se referir à região também está ligada a mais um episódio do chamado processo de "descolonização" na Venezuela, já que em 2011 o então presidente Hugo Chávez autorizou que a montanha passasse a se chamar oficialmente de Waraira Repano, mantendo o nome utilizados pelos indígenas da etnia caribe que habitavam o território antes da chegada dos europeus.

Já o novo hino da cidade, além de homenagear Bolívar e o processo de independência do país, também traz referências ao Caracazo, rebelião popular ocorrida em 1989 contra medidas neoliberais aplicadas pelo então presidente Carlos Andrés Perez.

"Descolonizar" ou "apagar" a história?

A troca dos símbolos oficiais de Caracas suscitou críticas não apenas de políticos opositores, mas também de especialistas, como acadêmicos e historiadores. Em nota, a Academia Nacional de História da Venezuela criticou a ausência de uma "consulta ampla" feita à população e a instituições autorizadas “para emitir uma opinião razoável sobre o tema".

"Só uma pobre e limitada compreensão de nosso acervo histórico pode conduzir ao exercício banal que supõe modificar os símbolos fundacionais de uma cidade como se fosse a prática [...] de renovar o logo de uma marca comercial", disse a instituição.

Em entrevista ao Brasil de Fato, a historiadora e presidenta da Academia Nacional de História da Venezuela, Carole Leal, afirmou que a troca dos símbolos foi feita "sem nenhuma razão", sem um debate histórico apropriado e acabou destruindo algo "que faz parte do legado do nosso passado". 

"O primeiro problema é o fato de terem eliminado os símbolos por uma parcialidade política, porque há uma parcialidade política que quer impor um novo símbolo como uma maneira de reinterpretar a história, apagando o passado e eliminando um símbolo que permitia justamente a coesão da cidade, da ideia de Caracas", afirma.

Ainda segundo a professora, uma mudança desse tipo deveria ter contando com "uma consulta mais ampla", não apenas de especialistas, acadêmicos e profissionais, mas também da própria população da cidade.

"Se tratando da mudança de um símbolo que unifica toda a grande Caracas, que é o símbolo do leão, independente de ser de origem espanhola, o ideal seria ter sido submetido à consulta, pelo menos um referendo, que desse a possibilidade da população opinar sobre isso e de dizer se está ou não de acordo”, disse.

Já o historiador Reinaldo Bolívar, diretor do Centro de Saberes Africanos, Americanos e Caribenhos da Venezuela, tem uma opinião distinta. Para ele, a mudança dos símbolos oficiais de Caracas faz parte do "processo de descolonização" que ocorre no país e na América Latina, que consiste em "conhecer nossas origens, nossas lutas por uma identidade nacional e enxergá-las no presente".

"A mudança nos símbolos entra nessa corrente de descolonização, que é uma corrente que se expandiu pelo mundo todo. Observamos em vários países, nos Estados Unidos e na Inglaterra, como as pessoas, em um gesto de reivindicação dessa memória histórica, se opuseram à permanência de estátuas de escravizadores, de colonizadores, de figuras culpadas por genocídios e as substituíram”, afirma.


A nova bandeira de Caracas / Salvadoroff / Wikimedia Commons

Ainda para Bolívar, o símbolo alterado que causou mais divergência entre especialistas, que foi o escudo de Caracas, substituiu um emblema que fazia referências católicas em um Estado que deve ser laico e homenageava a coroa espanhola, sem representar as características do povo venezuelano.

"O novo escudo tem uma virtude substantiva porque integra a composição étnica da Venezuela. Está ali uma pessoa de origem africana, uma pessoa originária, indígena, e uma pessoa que é fruto dessa mestiçagem, que é Simón Bolívar", diz.

Após 54 dias de debate promovido pela Câmara Municipal de Caracas, que contou com a presença de especialistas de distintas associações civis venezuelanas, a reforma foi aprovada por 11 votos favoráveis dos vereadores do partido governista (PSUV) e 2 votos contrários dos partidos de oposição, que criticaram a reforma. 

Para Mayerling Occhino, vereadora e membro do partido Alianza Lápiz, a reforma "acabou com os símbolos” da capital. "O [partido] Lápiz protesta diante desse ataque à nossa identidade, violando a lei e a Constituição", escreveu Occhino em sua conta no Twitter.

Já José Gregorio Cáribas, vereador pelo partido Un Nuevo Tiempo, fez um apelo à prefeita de Caracas para que seja convocado um referendo popular que decida se os símbolos devem ser alterados ou não. 

Mudanças de símbolos na Venezuela

Pauta recorrente em protestos sociais, a retirada ou substituição de monumentos e símbolos que fazem referência ao passado colonial ganharam força na região, principalmente após o assassinato do norte-americano negro George Floyd, morto asfixiado pela polícia dos EUA em maio de 2020. 

Durante os protestos que pediam por justiça pela morte de Floyd, manifestantes derrubaram estátuas de Cristóvão Colombo e de outras figuras associadas ao colonialismo. Desde então, atos do mesmo tipo foram registrados nos EUA, no Reino Unido e em países latino-americanos como Colômbia, Chile e até mesmo no Brasil, quando o movimento Revolução Periférica ateou fogo na estátua do bandeirante Manuel Borba Gato, localizado na zona sul de São Paulo, em julho de 2021.

Na Venezuela, por sua vez, mudanças em símbolos oficiais e retiradas de monumentos com figuras do período colonial ocorrem com certa frequência desde que Chávez chegou ao poder, em 1999. Uma das primeiras medidas nesse sentido data do ano de 2002, quando o ex-presidente determinou que no dia 12 de outubro seria comemorado o Dia da Resistência Indígena e não mais o "Dia da Raça", por considerar a antiga denominação "discriminatória, racista e pejorativa".


Na Colômbia, manifestantes derrubam monumento que homenageava Cristóvão Colombo em protesto contra o governo em Barranquila / Mery Grandos Herrera / AFP

Já em 2004, manifestantes realizaram um julgamento simbólico e derrubaram uma estátua de Cristóvão Colombo que ficava localizada na Praça Venezuela, região central de Caracas. Anos mais tarde, em 2015, no mesmo local onde ficava o Colombo derrubado, o governo inaugurou uma estátua em homenagem ao líder indígena cacique Guaicaipuro, uma das lideranças da resistência contra os espanhóis no século XVI.

Também em Caracas, a gestão da ex-prefeita chavista Erika Farías ordenou, em 2018, a retirada da estátua de um leão, símbolo da cidade, da avenida Valle-Coche e, em seu lugar, inaugurou um monumento que homenageia a líder indígena Apacuana, que combateu os colonizadores.

Nomes de ruas e rodovias também foram alvos das mudanças. Em 2018, o presidente Nicolás Maduro determinou a troca do nome da autopista Francisco Fajardo, que atravessa toda Caracas e levava o nome do colonizador espanhol. A estrada passou a se chamar cacique Guaicaipuro, em mais um tributo ao líder indígena. "É uma ignomínia, é uma ofensa a nossos povos. É como se algum país da Europa batizasse uma rodovia de Hitler", disse o presidente à época.

Para Leal, as críticas a monumentos e homenagens a figuras do período colonial devem vir acompanhadas de um debate histórico sobre o que foi a colonização e evitar interpretações anacrônicas, que podem levar "a coisas tão sem sentido como pretender descolonizar a história".

"Falar em descolonização da história é tão absurdo como dizer que temos que apagar figuras como a de Diego de Lozada [colonizador espanhol] alegando que ele não fundou Caracas. É como dizer que temos que apagar qualquer figura do século XVII, do século XVIII. Mas elas existiram, goste você ou não, esses são fatos que existiram. Então, ao invés de tentar apagar isso, temos que entender o que aconteceu", afirma a historiadora.

Bolívar, por sua vez, defende que o processo de colonização terminou por eliminar parte de uma cultura que já existia nos territórios americanos e africanos, o que justifica os processos atuais que buscam substituir monumentos e mudar os símbolos nessas regiões.

"Colonizar é se impor à força, impor modelos de vida, arrasar com populações. A colonização é uma das ferramentas do imperialismo, a eliminação de populações inteiras para impor outra em seu lugar ou descartar as heranças originárias. Isso foi feito com nossos povos que agora, com justa razão, estão voltando a suas raízes", diz.

Edição: Thales Schmidt