Apesar das declarações fortes e sanções, a Europa precisa da Rússia e a Rússia precisa da Europa. Por isso, a decisão recente de Moscou de suspender o fornecimento de gás natural para a Polônia e a Bulgária, e a promessa de fazer o mesmo com outros países que não aceitarem fazer pagamentos em rublos, terá efeitos nefastos para os russos e os europeus, destaca a professora de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Cristina Pecequilo.
No final de março, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, assinou um decreto em que determinou que a venda do combustível para “países hostis” deverá ser realizada na moeda nacional da Rússia. Com os prazos para pagamento se aproximando, Moscou já fechou a torneira que envia o combustível para Polônia e Bulgária.
A presidenta da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, classificou a ação como uma "chantagem" e um "movimento agressivo".
A União Europeia tem planos para diminuir sua dependência dos combustíveis russos. No documento, os líderes de Bruxelas apontam para o fortalecimento de fontes alternativas de energia, como energia solar e nuclear, e aumentar a compra de gás natural liquefeito. Moscou, por sua vez, planeja aumentar suas exportações para outros países — notadamente a China.
Quais são as consequências para a Rússia?
Embora as vendas de gás de combustível russo para a Europa estejam diminuindo, pesquisa do Centro de Pesquisa em Energia e Ar Limpo afirma que a Rússia continua a ter rendimentos consideráveis com essas transações. De acordo com o levantamento, as vendas de petróleo, gás natural e carvão renderam 62 bilhões de euros (326 bilhões de reais) para a Rússia nos dois meses seguintes à invasão da Ucrânia. A União Europeia foi responsável pela compra de 71% destas exportações russas e a Alemanha foi o maior país consumidor.
Todavia, a professora da Unifesp destaca que os efeitos de longo prazo para a Rússia não são favoráveis diante da pressão das sanções ocidentais e da recente viagem do secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin, e do secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, para a Ucrânia. Após a agenda internacional, Austin destacou que a Washington quer ver uma Rússia “enfraquecida”.
“No médio e longo prazo, os custos para uma recuperação real da economia russa são muito altos. E temos que pensar também que, se os EUA mantiverem essa ofensiva, essa recuperação fica cada vez menos provável, e me parece que o governo Biden deixou muito claro, até pela visita que fez, que eles querem uma Rússia fraca, então o que eles puderem fazer para prolongar a guerra, aumentar as sanções econômicas, eles vão fazer. Então é um processo de estrangulamento mútuo”, diz Pecequilo ao Brasil de Fato.
A União Europeia importou 380 milhões de metros cúbicos de gás natural russo por dia em 2021, de acordo com dados da Agência Internacional de Energia (AIE). O combustível russo foi responsável por quase 40% do total de gás consumido pelo bloco europeu no último ano.
Outros importantes fornecedores de gás no período foram Noruega (23,6%), Argélia (12,6%) e Estados Unidos (6,6%), informa a Comissão Europeia.
Embora a Europa não esteja mais no inverno, quando a calefação para aumentar as temperaturas pode fazer o consumo de gás aumentar, os líderes europeus destacarem a possibilidade de novos fornecedores e anunciarem reservas acumuladas do combustível, um corte no fornecimento de gás russo não seria algo trivial.
Quais são as consequências para a Europa?
Maior economia da Europa, a Alemanha tem no gás russo um elemento central para sua indústria pesada. Sem ele, Pecequilo destaca que uma crise econômica pode acontecer no bloco europeu no momento que a região recebe um fluxo de milhões de refugiados e também na Rússia, já que o país depende da venda de commodities para sustentar suas finanças.
“As indústrias alemãs dependem muito do gás russo para funcionar. E a Alemanha é a locomotiva da Europa, se esse ciclo para na Alemanha, vai ter uma onda de choque grande para toda a Europa”, diz a pesquisadora.
O Banco Central da Alemanha, o Bundesbank, destacou que o fim do gás russo significaria um período ainda mais prolongado de inflação e uma queda de até 2% no PIB do país. Diante deste cenário, distribuidoras de gás da Alemanha, Áustria, Hungria e Eslováquia estudam seguir as diretrizes russas para pagamento, informa o jornal britânico Financial Times.
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A Comissão Europeia emitiu um documento sobre importações de gás em que afirma que o método proposto pela Rússia, que envolve o pagamento em euros ou dólares para o banco russo Gazprombank e a posterior conversão desses valores para rublos, “parece possível” de ser feito sem desrespeitar as sanções do bloco.
Quem pode ganhar?
Pecequilo destaca que a disparada no preço do gás natural, além dos aumentos recordes nos preços de alimentos e outros combustíveis, é um cenário em que não há ganhadores, mas há um país que “menos sofre” e “lucra mais”: os Estados Unidos. Com a atual situação, os estadunidenses podem vender mais armas, reforçar o discurso que sua presença na Europa é necessária para garantir a segurança da região e também buscar novos mercados para seu gás natural.
"É algo que para os Estados Unidos [quanto] mais se prolongar, melhor; para a União Europeia, quanto mais se prolongar, pior; e para a Rússia, pior ainda”, diz a professora.
Em 2022, os Estados Unidos ultrapassaram o Qatar e a Austrália e tornaram-se o maior exportador de gás natural liquefeito (GNL) do mundo. De acordo com dados da Bloomberg, mais de um terço das 101 exportações de gás natural liquefeito dos Estados Unidos em janeiro deste ano tiveram como destino a Europa. Em 20 de abril, o Departamento de Energia dos Estados Unidos destacou esperar que “a demanda relativamente alta de GNL na Ásia e na Europa sustente as exportações contínuas de GNL dos EUA”.
“As populações europeias estão sofrendo imensamente com o aumento dos custos da energia, com o risco do aumento do desemprego. Então, onde a corda vai romper primeiro? O crescimento da extrema direita na eleição francesa já mostrou que a corda não está muito boa para o lado das democracias ocidentais, como elas se autodefininem”, avalia a professora da Unifesp.
Edição: Arturo Hartmann