As tropas russas atacaram posições ucranianas ao longo de toda a linha de contato na região de Donbass, no leste da Ucrânia, dando início a uma nova fase da operação militar. A investida é encarada como uma forma do Kremlin garantir um êxito militar após o recuo dos arredores da capital da Ucrânia, Kiev.
Recentemente o Ministério da Defesa russo anunciou o cumprimento das metas da primeira etapa da operação e a retirada das tropas dos arredores de Kiev, destacando que os principais esforços serão concentrados na "libertação" do Donbass ucraniano. Na madrugada da última terça-feira (19), a pasta informou que foram realizados 1.260 ataques no leste ucraniano.
O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, também se pronunciou, afirmando que o início da próxima fase da "operação especial" na Ucrânia tem como objetivo "completar a libertação" das autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk.
Sob a justificativa de “desmilitarizar e desnazificar" o país vizinho, a Rússia invadiu a Ucrânia em 24 de fevereiro. Desde então, a guerra que também envolve disputas sobre os limites da expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e o mercado de energia na Europa, já resultou em mais de 5 milhões de refugiados.
O cientista político Abbas Gallyamov, em entrevista ao Brasil de Fato, destaca que o objetivo estratégico desta nova fase da operação militar russa é o fornecimento de segurança à região separatista pró-Rússia.
“Nós vimos que os objetivos iniciais eram bem mais globais, mas eles obviamente não tiveram êxito. Foram muitas perdas. Não foi possível tomar nenhuma cidade grande, e não falo nem de Kiev. Então, para dizer o mínimo, não houve êxitos militares. E, nesta situação, acontece uma reavaliação dos objetivos porque o prolongamento da operação não é nem um pouco vantajoso para o governo de Vladimir Putin”, afirma.
Para Gallyamov, o prolongamento do conflito pressupõe a manutenção das sanções contra a Rússia, o que reforçará ainda mais o declínio econômico do país, fazendo com que a queda no nível de qualidade de vida gere insatisfação popular e ameace o poder de Putin. “Com todos esses motivos militares e econômicos, será necessário concluir a operação, mas antes disso é necessário repensar os objetivos e torná-los bem mais localizados”, acrescenta.
Segundo o cientista político, “no começo da operação se falava de objetivos mais abstratos, como a desnazificação e desmilitarização. Agora os objetivos são totalmente concretos, eles são mais locais e não globais”, completa.
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Já o diretor do Instituto de Iniciativas de Manutenção da Paz e Estudos de Conflitos, Denis Denisov, diz ao Brasil de Fato que há a percepção de que, a princípio, a desmilitarização almejada pela Rússia acontece de acordo com o planejado com a tomada de pontos militares estratégicos da Ucrânia. Em relação ao objetivo de “desnazificação”, Denisov entende que é um processo que ficou circunscrito às áreas sobre as quais as forças armadas russas conseguiram estabelecer um controle efetivo.
O analista afirma acreditar que é provável que as fronteiras ucranianas sofram mudanças com o fim da operação porque “no âmbito da primeira fase da operação militar, se falou muito que as autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk deveriam assumir o controle das regiões correspondentes às fronteiras que eram estabelecidas até 2014".
A movimentação separatista na região começou após o golpe de Estado de 2014 na Ucrânia, quando estas regiões se proclamaram independentes do governo de Kiev e adotaram uma Constituição própria. Nesse documento, as autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk delimitaram o seu território de acordo com os limites fronteiriços das regiões da Ucrânia antes do movimento separatista. Essa nova fronteira significa um ganho de território de "mais de 70%" para os grupos separatistas, destaca Denisov.
De acordo com o pesquisador do Instituto, mesmo que se chegue ao fim da guerra com a limitação do controle no leste ucraniano pelas forças russas, é possível que em três ou cinco anos haja um novo conflito.
“Aqueles territórios que não estarão sob o controle da Federação Russa serão usados como ponte para acúmulo de força militar e revanchismo com um objetivo único de confrontar a Rússia. E vejo com clareza que essa chance seria utilizada por uma série de países ocidentais”, destaca.
Feriado de 9 de maio estabelece prazo para Putin apresentar vitória
O foco em Donbas nesta segunda fase da guerra na Ucrânia também vem sendo encarada como uma forma de Putin buscar alcançar uma vitória significativa antes do 9 de Maio, quando é comemorado o Dia da Vitória, grande feriado nacional russo que comemora a vitória sobre o Nazismo na II Guerra Mundial.
Para o cientista político Abbas Gallyamov, o Dia da Vitória surge não só como uma data militar simbólica, mas funciona para Putin como um prazo porque "celebrar o Dia da Vitória sem a existência de uma vitória soa muito mal".
"E não comemorar o Dia da Vitória também não é possível, porque Putin criou um verdadeiro culto sobre o Dia da Vitória. Antes era uma das festas históricas, respeitada e que a população gostava, mas era um evento histórico e não político. E Putin fez do feriado um dos mais importantes eventos do calendário político do país. E, por isso, abrir mão de celebrá-lo vai atingi-lo em sua posição política, ou seja, todos vão entender que algo não saiu como planejado", argumenta.
Assim, de acordo com o analista, os objetivos da guerra foram "afunilados" para a garantia de segurança em Donbas e pela tomada de certos territórios da região.
"A rigor, Putin precisa de algum troféu. Ele não pode simplesmente dar a volta e se retirar, pois todo o seu poder político se sustenta sob a concepção da vitória, pela ideia de que ele é forte, vence a todos e está pronto para derrotar quaisquer inimigos. Então se ficar claro que ele sofreu uma derrota, isso irá deslegitimar ele fortemente, mais do que a qualquer outro político no mundo porque poucos fazem tamanha aposta no uso da força como Putin”, completa.
Edição: Thales Schmidt