O fantasma de Belo Monte volta a assombrar as populações indígenas da região da Volta Grande do rio Xingu, no Pará. Se a hidrelétrica reduziu a vazão do rio e afetou a reprodução dos peixes, agora o receio é que o projeto da mineradora canadense Belo Sun de abrir a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil contamine a água, prejudicando ainda mais comunidades que dependem da pesca. Como no caso da usina, os povos indígenas dizem que também não foram consultados sobre o novo empreendimento minerário, denúncia que é corroborada pelo Ministério Público Federal (MPF) e deverá ser julgada na próxima segunda-feira (25).
“Estamos na iminência de mais um empreendimento que não sabemos de onde vem e o que vai acontecer”, afirma à Repórter Brasil Lorena Curuaia, líder da comunidade Iawá, composta por membros dos povos Xipaya e Kuruaya e uma das afetadas pelo projeto Volta Grande, da Belo Sun.
A indígena afirma que sua comunidade já teve a pesca prejudicada por Belo Monte e agora teme novos prejuízos, como o envenenamento da água. Ela também reclama que o apelo dos povos da região para serem ouvidos continua sendo ignorado – mesmo depois de oito anos, quando uma licença prévia do projeto foi concedida à Belo Sun pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) do Pará.
Em 2017, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) suspendeu uma segunda licença concedida pelo governo paraense, a de instalação da mina, condicionando-a a um processo de consulta prévia às populações indígenas afetadas, nos moldes da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A Justiça também exigiu da empresa a elaboração de um estudo que atenda aos parâmetros da Funai (Fundação Nacional do Índio).
No próximo dia 25, o tribunal revisitará o processo para avaliar se a mineradora cumpriu as exigências. Caso a decisão seja favorável à empresa, a Belo Sun poderá ser autorizada a iniciar as obras para instalar a mina de ouro.
Mas as consequências dessa decisão podem ir além do impacto sobre as comunidades, já que o caso pode abrir precedente e definir um padrão de como devem ser feitas as consultas aos povos tradicionais. Elas podem se tornar mais frequentes caso o Congresso aprove o projeto de lei 191/2020, que libera a atividade nos territórios indígenas.
Em janeiro, a mineradora alegou que cumpriu as demandas do TRF1 e pediu a liberação da licença. Mas o MPF afirma que não houve consulta de fato às populações e que o estudo realizado tem falhas. O argumento da Procuradoria é baseado em um parecer produzido em fevereiro por pesquisadores do Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Prévio Livre e Informado, a pedido do próprio MPF.
Segundo o documento, a mineradora apenas coletou informações a respeito de algumas das comunidades afetadas, sem que houvesse espaço para que os indígenas se manifestassem e influenciassem o projeto, como deveria ocorrer em um processo efetivo de consulta.
O parecer indica ainda que a mineradora busca classificar como consultivas reuniões com indígenas desaldeados (que não vivem em suas terras demarcadas) que tinham como objetivo declarado apenas coletar informações. Não há registros de que indígenas que foram a esses encontros tenham sido informados de que compareciam a um processo de consulta prévia para a liberação da mina de ouro.
Outro problema apontado pelos pesquisadores é que o estudo da Belo Sun sobre os desaldeados não incluiu pesquisa de campo, o que vai contra a determinação da Funai.
Além dos erros relativos às comunidades, o observatório levanta questões com relação aos trâmites no licenciamento ambiental. A Semas concedeu a licença prévia à Belo Sun em 2014, antes que fosse iniciado qualquer processo de consulta, e se recusou a revogá-la mesmo após pedido da Funai. Porém, uma decisão de 2012 da Corte Interamericana de Direitos Humanos prevê que a consulta deveria ocorrer “em todas as fases de planejamento e desde as primeiras etapas” – com base nisso, os pesquisadores defendem também a suspensão da licença prévia.
A mesma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos determina que a consulta prévia é uma responsabilidade do Estado, que não poderia ser delegada a empresas privadas, “muito menos à interessada na extração dos recursos”. Mas há registro de reuniões em que apenas representantes da Belo Sun e de algumas das comunidades indígenas participaram, sem a presença de órgãos públicos, destaca o parecer.
Mesmo os encontros com participação da Funai não contam como consultivos, continuam os pesquisadores, mas, no máximo, como de coleta de informações. E que o órgão público que deveria participar das audiências nas comunidades deveria ser a Semas, que hoje tem poder decisório sobre a obra – e não a Funai.
Até agora, as licenças ambientais para a obra têm sido analisadas pela secretaria de Meio Ambiente do Pará. No entanto, procuradores argumentam que, por se tratar de projeto com grande impacto ambiental, as licenças deveriam ter sido concedidas pelo órgão federal, o Ibama. Este ponto também deverá ser julgado na próxima segunda; caso o tribunal concorde com o MPF, o trâmite de licenciamento ambiental da obra retornaria à estaca zero.
Lorena Curuaia conta que a comunidade Iawá encaminhou diversos pedidos à Funai para que fosse consultada, mas não obteve resposta. “Precisamos ter conhecimento sobre o projeto, sobre explosões e uso do cianeto, pois tememos o ocorrido em Brumadinho e Mariana. Até o presente momento, fomos invisibilizados do processo de consulta”, diz uma carta de 2020 assinada por membros da comunidade.
Em outro comunicado conjunto, moradores da Iawá e das comunidades Kanipá, Jericoá I e Jericoá II informaram à Funai que nenhuma delas havia sido “procurada, consultada, ou mesmo informada” sobre as implicações do empreendimento e solicitaram mediação do órgão indigenista para apresentação de explicações, planos de execução e possíveis impactos ambientais.
Questionada pela Repórter Brasil, a Funai não se posicionou. A Semas tampouco respondeu ao pedido de posicionamento.
Já a mineradora Belo Sun afirma que “concluiu a consulta prévia, livre e informada e o Estudo de Componente Indígena (ECI)”, de acordo com as determinações da OIT, da Funai e do Protocolo de Consulta Juruna, e que “já promoveu mais de 80 encontros, com a participação de 1.500 pessoas, para levar informações detalhadas sobre o empreendimento e se mantém aberta ao diálogo” (leia a íntegra da resposta).
Planos irregulares de remoções
O projeto da Belo Sun também é questionado por prever a possibilidade de remoção da comunidade indígena de São Francisco – que fica a 600 metros do empreendimento e está em processo de demarcação –, assim como das comunidades ribeirinhas de Vila da Ressaca e do Galo.
De acordo com o parecer requisitado pelo MPF, se confirmado, o possível deslocamento de uma comunidade indígena seria inconstitucional. Além disso, como os ribeirinhos são considerados povos tradicionais, sua remoção também dependeria de consentimento prévio.
O parecer que embasa a posição do MPF também questiona uma decisão da Funai que desobrigou a Belo Sun de realizar um estudo sobre a TI Trincheira/Bacajá, que está a 39 km da obra. Como a mineradora tem planos de expandir a área explorada pelo projeto Volta Grande, esses indígenas também precisam ser consultados, segundo avaliação dos pesquisadores do observatório. A Belo Sun tem autorização da Agência Nacional de Mineração (ANM) para pesquisar áreas que fazem fronteira com a Trincheira/Bacajá.
Caso não isolado
Os questionamentos em relação à consulta aos indígenas não se limitam ao projeto Volta Grande. Outra empresa também ligada ao banco canadense Forbes & Manhattan, a mineradora Potássio do Brasil, é igualmente acusada de não consultar corretamente os indígenas Mura afetados por outra megaobra em Autazes (AM).
O plano da Potássio do Brasil de explorar minério no Amazonas também é questionado pelo MPF, que defende que o licenciamento desse projeto seja realizado pelo governo federal, por meio do Ibama, e não pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), como vem ocorrendo.
Além disso, a Procuradoria pede uma inspeção judicial para avaliar a situação local e prestar esclarecimentos ao povo Mura. A pré-consulta, etapa a partir da qual os indígenas decidirão se querem ser efetivamente consultados, teve início no começo de abril e deve se estender até o final de junho.
Em entrevista à Repórter Brasil, Jeremias Mura, membro da Organização de Lideranças Indígenas Mura de Careiro da Várzea, que participou da elaboração do protocolo de consulta da comunidade, diz que entre os pontos de preocupação com o projeto estão a chegada de pessoas de fora para a região, o risco de que barragens de rejeito se rompam e a falta de planos para quando o projeto de mineração se esgotar.
Questionada, a Potássio do Brasil disse que “no momento, os diretores preferem não se manifestar sobre o assunto”. Já o banco Forbes & Manhattan não respondeu ao pedido de posicionamento.
O Forbes & Manhattan foi fundado pelo empresário indiano radicado no Canadá Stan Bharti, que é seu CEO. O banco funciona como uma espécie de incubadora de grandes empresas, para depois revendê-las a preços mais altos. Além do elo por meio desse banco, os casos da Belo Sun e da Potássio do Brasil também se relacionam porque, até hoje, não houve consulta a esses povos sobre projetos minerários no Brasil.
Os dois processos ligados ao banco canadense podem, assim, se tornar precedentes sobre como serão, na prática, realizadas essas consultas. Até agora, no entanto, esses precedentes são negativos, segundo parecer apresentado pelo MPF.