A Justiça Federal em Altamira, no Pará, reconheceu que a usina de Belo Monte provocou interferências significativas “nos traços culturais, modo de vida e uso das terras pelos povos indígenas, causando relevante instabilidade nas relações intra e interétnicas”. Veja a íntegra da decisão, de início de novembro.
A ação, iniciada em 2015 pelo Ministério Público Federal, indica que a Norte Energia, empresa responsável pela hidrelétrica, gerou um etnocídio aos povos indígenas da Volta Grande do Xingu com as obras da hidrelétrica.
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A partir das constatações, a decisão, ainda provisória, ordena mudanças na execução do Plano Básico Ambiental Indígena de Belo Monte. Além disso, obriga que a União e a Fundação Nacional do Índio (Funai) apresentem no prazo de 90 dias um cronograma para conclusão dos processos de regularização fundiária das terras indígenas Paquiçamba, do povo Juruna Yudjá, e Cachoeira Seca, do povo Arara.
A liminar também determina que a Norte Energia passe a ser responsável pela execução do Programa Médio Xingu e instale um Conselho Deliberativo, um Comitê Indígena e um Plano de Gestão, com presença de representantes dos nove povos indígenas afetados e da Funai.
Pela ordem, ainda será criada uma Comissão Externa de Acompanhamento e Avaliação, a ser composta pelo MPF, representantes da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e de organizações não indígenas da sociedade civil que atuem na região do médio Xingu.
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A decisão cita uma série de danos, com a fragmentação dos povos indígenas em muitas aldeias, a fim de se obter a verba de R$ 30 mil/mês a ser paga por aldeia, precariedade sanitária, alimentar e social, aumento no consumo de bebidas alcoólicas e drogas ilícitas e aumento de produtos industrializados.
Para o cacique Mobu Odo, do povo Arara da Terra Indígena (TI) Cachoeira Seca do Iriri, os danos causados pela usina à cultura dos indígenas da região são irreparáveis. “Interferiu muito na nossa cultura. Muito jovem da aldeia não quer mais respeitar nossa cultura. A cultura do branco ficou muito forte na entrada dessas empresas”, diz.
Segundo ele, desde a invasão branca, jovens Arara trocaram as diversões tradicionais, como pinturas corporais, danças e festas tradicionais, por forró e bebidas alcoólicas em exagero. “A cultura, o pessoal não está respeitando mais, não quer mais se divertir como índio, se pintar, a nossa cultura normal. Eles não querem mais isso para eles”.
O cacique conta que as invasões, principalmente de madeireiros, aumentaram espantosamente desde a chegada das obras. “Acho que nunca mais vai voltar ao normal. A tendência aqui é só aumentar. Aumentar madeireiro, aumentar essas coisa ruim. A gente está muito preocupado com a presença de coisa ruim na nossa cultura, nos nossos costumes. É muito branco entrando”.
Rafaela Xipaia, da comunidade Tukamá, diz que a usina alterou sem volta o modo de se alimentar dos indígenas que vivem próximos à cachoeira Jericoá. Ela relata que a seca do rio Xingu mudou a dieta tradicional dos locais, que era baseada em recursos naturais, como peixes e frutos.
Com animais magros, mortos ou inexistentes, a alternativa é ir ao mercado, distante da comunidade. “Por enquanto, a gente tá comprando a mistura. Compra carne, frango. No fim do mês, se for botar no bico da caneta, dá lá seus 200 reais", conta.
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Para Rafaela, a usina também dividiu os indígenas, criando conflitos entre os povos na busca por terra e comida. “Belo Monte conseguiu dividir os povos, conseguiu dividir famílias. Antes era tudo junto. Hoje tem indígena ribeirinho, indígena pescador, tem indígena fora do território. Sendo que esse povo é só um povo, é indígena”.
Moradora próxima de uma barragem da hidrelétrica, ela diz ter medo de que o dano possa ainda ser maior.
“Nada do que ela der vai pagar pelo que ela destruiu. Não estou só falando de vida humana, mas também do meio ambiente. Ela acabou com o meio ambiente, acabou com o peixe, acabou com a nossa vida. Acabou com o nosso sossego. Eu não sei se eu vou dormir e vou acordar viva ou se eu vou conseguir botar minha cabeça no travesseiro e poder levantar. Estamos debaixo de uma barragem”.
Edição: Rogério Jordão