“Não dá para ser assim: morreu, enterra”, revolta-se Eliana Karajá. A presidente da Associação Indígena do Vale do Araguaia (Asiva) é uma das muitas mulheres e mães do povo Karajá que não se conformam com a morte por desnutrição do bebê Kuriawa. A criança, de 3 meses e que morava com os pais em uma aldeia localizada na Terra Indígena Araguaia, na Ilha do Bananal, no Tocantins, morreu em novembro depois de 15 dias sofrendo com diarreia e quadro de pneumonia. Estava desnutrida e desidratada.
A família de Kuriawa não quis falar com a reportagem por ainda estar de luto e a etnia guarda o silêncio após uma morte. O caso aconteceu na aldeia Santa Isabel, a maior comunidade indígena da região da Ilha do Bananal. Na ilha, cercada por dois grandes rios amazônicos – o Araguaia e o Javaés – há três territórios indígenas. Ela está localizada na divisa de Mato Grosso e Goiás. Os Karajá, que vivem em 16 aldeias, se autodenominam “iny mahãdu”, que significa “nós mesmos”, o “povo do rio”.
“Quando a gente vê alguém lamentando a morte de uma delas, no Facebook, mandando mensagem, pedido de socorro, a gente se entristece. Eu oro, oro e choro. É muito complicado, vejo as crianças não crescendo, não desenvolvendo, desnutridas”, lamenta a conselheira local do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi), Luciene Ferreira Karajá, de 50 anos.
A desnutrição infantil é um problema complexo e objeto de inúmeros estudos. Por trás dela, está a carência generalizada. Faltam comida, atendimento de saúde, saneamento básico e políticas públicas.
Mãe de cinco filhos, a professora Sandra Kuady, de 39 anos, alerta para a mudança alimentar dos indígenas desde que o dinheiro do benefício social começou a ser trocado por produtos industrializados, como o leite em pó. “Antigamente a gente comia mandioca, batata doce, polvilho doce, abóbora, peixe, milho e frutas do cerrado, além de outros alimentos naturais, todos ricos em vitamina. As pessoas eram saudáveis e as crianças fortes”, lembra ela. “Hoje em dia a comida industrializada entrou nas aldeias prejudicando muito a saúde das crianças indígenas e não só das crianças, mas também dos adultos e idosos. É muito produto químico que causa hipertensão, diabetes, câncer e outras doenças.”
Sandra mora na aldeia São Domingos e trabalha na Escola Estadual Indígena Hadori, com as turmas do 4º e 5º anos do Ensino Fundamental. Ela acredita que o lugar ideal para começar uma reeducação alimentar é justamente na escola, junto da equipe de saúde em parceria com palestrantes, nutricionistas e sendo ofertadas oficinas. O cardápio tradicional Karajá poderia ser reintroduzido.
"O descaso é grande"
Dois meses após a morte do bebê Karajá, o Coletivo de Mulheres Iny ainda procura explicações para os casos de desnutrição infantil. As mães trocam mensagens e desabafam. “O descaso é grande. É criança doente, desnutrida e morrendo por causa disso”, afirma Eliana Karajá, da Asiva. Segundo ela, a equipe de nutrição que atende à região do Araguaia percorre as aldeias, mas muitas vezes não consegue alcançar os mais vulneráveis.
“Lembro de uma idosa que estava só o osso e uma menina com pneumonia, que não queriam levar para o hospital. A gente avisou para o pessoal da Saúde, mostrou que é preciso melhorar essa busca ativa”, acrescenta a presidente da Asiva. A entidade distribuía cestas básicas por meio da lista utilizada pelas equipes de saúde. E foi assim que descobriram “furos” no atendimento. “Tinha nome de uma pessoa ali que estava bem e não tinha o da idosa desnutrida. Os idosos merecem nosso respeito, são nossas bibliotecas.”
Por trás da desnutrição infantil, há a insegurança alimentar, patrocinada, inclusive, pela falta de atendimento dos órgãos públicos. Eliana Karajá é quem faz essa denúncia. Para provar o que diz, ela mostra a foto de um “kit viagem”, dado pela Casai de Goiânia aos pacientes que retornam à aldeia. É para comer na viagem. Na “marmitex”, somente farinha com ovo.
“Muitos não têm dinheiro para pagar uma alimentação, é uma viagem muito longa, com saída de madrugada, não têm dinheiro para comprar um café da manhã, o almoço, aí pega uma marmitex desse tipo. Só para dizer que não colocou só farinha, joga ovo esfarelado, e o ovo a gente sabe que não pode demorar a comer, estraga. Então a gente não pode se calar diante dessa situação, que é muito grave, diante de tanta coisa ruim que está acontecendo com nosso povo”, protesta.
A indígena Bikunaki Karajá, 43 anos, da aldeia JK, sugere campanhas de incentivo à amamentação. Muitas etnias acabam adotando o desmame precocemente por questões cultural e ritualística, apontam alguns estudos. “Dentro dos hospitais, as mães são orientadas sobre a importância, mas, na maioria das vezes, preferem entrar com mamadeira. Outra coisa que reparo é que, desde a primeira alimentação, já começam a oferecer alimentos industrializados. Precisaria ter palestras, fazer uma conscientização na aldeia”, diz Bikunaki, que amamentou seus oito filhos.
"Penúria extrema"
Há 20 anos, o médico pesquisador Clayton de Carvalho Coelho trabalha no projeto Xingu-Unifesp. Pela sua experiência, além da questão alimentar e cultural, fatores externos explicam a incidência de desnutrição infantil nas aldeias do país. Todo ano, o profissional realiza cerca de quatro viagens, com duração de três a quatro semanas, nas aldeias, especialmente as do Parque Indígena do Xingu e a Terra Indígena Panará (PA).
“Um dos grandes problemas das comunidades indígenas atuais é justamente a questão da segurança alimentar, que vai desde questões puramente locais ou pontuais, como a situação de mulheres viúvas, que não conseguem sustentar os filhos, até questões maiores, como as mudanças nos ritmos de chuva e estio que acabam por reduzir a produtividade das roças”, explica o pesquisador. “Em algumas áreas a restrição territorial é outro fator importante, uma vez que um território restrito não permite a subsistência da comunidade no modo de vida tradicional. Isso leva à ‘importação de alimentos’ nos mercados, incluindo as ‘porcarias’ (industrializados).”
O médico do projeto Xingu-Unifesp reforça a questão do saneamento básico, muitas vezes inexistente ou precário para os povos indígenas. “Uma parcela significativa das aldeias não têm acesso à água potável de qualidade e, por conta das restrições territoriais, muitas vezes as nascentes disponíveis estão fora da terra indígena, com contaminação por garimpos, lavouras”, comenta.
Ao longo dos anos, Clayton de Carvalho tem notado como os problemas fundiários se agravaram e, nessas situações, mais os “extremos” ficam vulneráveis, como as crianças pequenas e os idosos. Ele cita que alguns casos são de fome mesmo, como a dos Guarani de Dourados (MS), que “vivem em uma penúria extrema”.
“Mudar essa realidade passa por alternativas que garantam, de fato, segurança alimentar. O que usualmente vemos são políticas assistencialistas de fornecimento de cestas básicas que não abordam problemas estruturais, como a intrusão de garimpeiros e pecuaristas em áreas indígenas, o preconceito sofrido pelos indígenas nas áreas do entorno, a restrição territorial, assim como o estímulo aos plantios tradicionais”, afirma o pesquisador.
Um olhar mais atento para projetos interessantes, ainda que pontuais, poderiam melhorar esse problema. As técnicas de manejo de recursos naturais renováveis, coleta de castanhas, de baru, piscicultura e outras atividades mais próximas do modo de vida tradicional deveriam ser ampliados, finaliza Clayton.
Para o coordenador Regional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Gilberto Vieira dos Santos, o “Giba”, é preciso identificar os motivos das mortes precoces evitáveis para que não caiam no esquecimento e a preocupante estatística seja interrompida.
Relatório do Cimi, com dados de 2020, mostra que morrem, em média, de duas a três crianças indígenas de 0 a 5 anos por dia no Brasil, em sua grande maioria por causas evitáveis. No topo da pirâmide fúnebre, estão as pneumonias não especificadas, as mortes por falta de assistência, diarreia e gastroenterite, desnutrição e Covid-19.
Na opinião de Giba, apesar dos números, desenhando uma realidade bruta, não há uma eficaz política de saúde indígena no país, embora essa seja uma reivindicação antiga. “Se isso ocorre em terras demarcadas, imagine nas que não são, uma vez que o governo Bolsonaro resolveu não as atender de forma alguma. É neste contexto de descaso que a morte deste bebê Karajá fica na invisibilidade e naturalizada, como se fosse normal crianças indígenas morrerem de enfermidades tratáveis”, denuncia. “Isso não é normal, é negligência.”
O que diz o governo
A reportagem procurou a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, para saber se existe uma política de segurança alimentar para crianças indígenas da região do Araguaia. Por meio de nota, respondeu que realiza Vigilância Alimentar e Nutricional, por meio dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis), em todo o país. “Os Dsei, por sua vez, mantêm as Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) capacitadas e atentas para identificar casos de desnutrição infantil nas aldeias, reportando esses dados para o Ministério da Saúde, para a Sesai e para o próprio Dsei”, diz trecho da nota.
O governo federal afirma ainda que estratégias de combate à desnutrição infantil entre os povos indígenas atendem à recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) em oferecer uma suplementação com ferro isolado (sulfato ferroso gotas ou xarope – utilizado para prevenção e tratamento da anemia), para aumentar a ingestão de vitaminas e minerais em crianças – o chamado NutriSUS.
O NutriSUS é um composto com 15 vitaminas e minerais concentrados em um sachê de 1 grama, em pó, que poderá ser adicionado em qualquer refeição ou preparação a ser ofertada para a criança. O produto possui o ferro microencapsulado, favorecendo a aceitação pelas crianças por reduzir o desconforto intestinal, por mascarar o sabor dos minerais. A Sesai afirma ainda que possui estratégias voltadas para doenças prevalentes da infância e a aplicação de vacinas, que preconiza o acompanhamento pré-natal, começando os cuidados pela gestação.
Com relação à morte do bebê Karajá, a Sesai afirma que houve o acompanhamento da criança, desde a aldeia até o Hospital Municipal João Abreu Luz, em São Félix do Araguaia, para onde foi transferida e atendida. “Na madrugada do dia 29 de novembro de 2021, a mãe da criança a levou do hospital, sem alta médica. A equipe de enfermagem do hospital acionou a equipe do Dsei e começou-se uma busca pela cidade para encontrar os indígenas. Somente às 5 horas da manhã a equipe recebeu a notícia de que a mãe retornou à aldeia Werebia e que a criança, infelizmente, tinha falecido”, diz o relato da Sesai.
A família do bebê nega a fuga do hospital. Questionadas sobre isso, mulheres Karajá alegam que, se realmente isso ocorreu, o fato demonstra desespero e desamparo. E que em vez de o Governo ver os indígenas como vítimas vulneráveis, prefere jogar sempre sobre as costas deles a responsabilidade de tudo, sem pensar em uma ação preventiva, que evite mais mortes.