A cena parece ter saído de um roteiro B hollywoodiano: um homem, com o peito nu e a cara pintada com as cores da bandeira dos Estados Unidos, usando um chapéu com chifres, marcha ao lado de outros milhares para invadir o Capitólio. O que parecia ficção estampou as manchetes de todos os jornais no dia 6 de janeiro de 2021, quando a multidão, insuflada pelo então presidente em exercício Donald Trump, interrompeu a sessão do Congresso que validava a vitória eleitoral de Joe Biden.
"Acho que muita gente ainda subestima a importância histórica deste evento, que foi uma grande ameaça à nossa democracia e é um problema que não resolvemos", avalia a professora de história da Duke University, Nancy MacLean.
Doze meses depois da invasão, dezenas de pessoas foram presas e mais de 700, processadas. Houve, na época, figuras públicas e ativistas usaram sua voz para condenar a marcha e a postura de Donald Trump. Tanto republicanos, quanto democratas, vieram à público contra o então chefe da Casa Branca — mas não foi suficiente.
"Ao meu ver, não houve uma resposta dura, institucional. Nada aconteceu com Trump e o Departamento de Justiça não fez nada a respeito desse atentado democrático", diz ao Brasil de Fato o cientista político Valerio Bruno, que trabalha como pesquisador sênior no Centro de Análise da Extrema Direita, um think tank internacional. "De um ponto de vista europeu, posso afirmar que qualquer tentativa de minimizar ou amenizar o ocorrido é perigoso", completa.
Para o Dr. Thomas Keck, professor de ciências políticas da Syracuse University, o buraco é ainda mais embaixo: "estamos falando de um golpe". Em entrevista à reportagem do Brasil de Fato, o pesquisador afirma que percebe que muita gente acha que o pior já passou, mas não concorda com essa normalidade.
"Muitos acadêmicos que estão familiarizados com a instabilidade democrática histórica, no mundo todo, estão alertando para o fato de que o presidente em exercício dos Estados Unidos organizou um golpe de estado. Não foi bem sucedido esse golpe, mas poderia ter sido. Independentemente de a estratégia ter sido bem desenhada ou não, golpes, em geral, são sinal de uma democracia problemática", pontua.
Os desafios da democracia estadunidense, porém, pouco tem a ver com os acontecimentos mais recentes, e sim com a sua raiz. "Os Estados Unidos têm um sistema eleitoral disfuncional e obsoleto, que permite que líderes cheguem ao poder mesmo sem apoio popular", argumenta Keck.
O presidente dos Estados Unidos é escolhido pelo Colégio Eleitoral, que por sua vez é escolhido pelo voto popular. Mas existem distorções na representação de diferentes estados, e o tamanho de sua população, no Colégio Eleitoral. Assim, é possível ser eleito presidente mesmo perdendo no voto popular. Trump, e antes dele George W. Bush, em 2000, entre outros presidentes, foram escolhidos para a Casa Branca pelo Colégio Eleitoral mesmo não sendo os candidatos com o maior número de votos da população.
Keck ressalta, porém, que a demografia americana vem mudando rapidamente e o país tende a ficar mais miscigenado e, com isso, progressista. "O problema é que esses homens cristãos brancos, que controlam o país há gerações, sabem que estão perdendo controle da nação, então eles colocam em prática estratégias desesperadas para mudar as regras do jogo a fim de beneficiar o partido republicano", conclui Keck.
A professora Nancy não apenas concorda, como mostra evidências. "Estados controlados pelos republicanos aprovaram leis que desencorajam a votação e alteraram a maneira como as cédulas são contadas. Eles estão tornando partidário um trabalho que deveria ser imparcial, e com isso estão dando a essa facção liderada por Trump o poder de decidir quem ganha e quem perde nas urnas".
Era de se esperar que a invasão ao Capitólio, condenada mundo afora, arranhasse a imagem de Trump – e talvez até tenha feito, num primeiro momento. "Há republicanos da base e do alto escalão que são muito críticos a Trump, mas essas pessoas sentem que não têm mais lugar no partido. A grande verdade é que Trump e seus apoiadores estão no controle do partido Republicano e isso é, de novo, um perigo enorme para a democracia americana, porque a literatura política nos ensina que uma das principais salvaguardas é centralizar a elite dos partidos de ambos os lados. Quando isso é violado, líderes autoritários têm mais facilidade para desmantelar as instituições e normas democráticas".
Todos os especialistas ouvidos pela reportagem do Brasil de Fato acreditam que é possível e provável que uma figura similar a de Trump, se não o próprio ex-presidente, volte ao poder nos Estados Unidos se nada for feito. "O problema é que, se tivermos mais uma eleição contestada, eu temo que cause uma grave ruptura nas forças militares no país", adverte a professora MacLean. "Um levantamento mostrou que 1 a cada 10 pessoas presas por conta da invasão ao Capitólio era militar e tantos outros militares apoiam as mentiras de Trump. Isso torna evidente como as instituições da nossa sociedade estão ameaçadas".
Como todo movimento político é também um pouco de efeito dominó, o cientista político e estudioso da extrema direita Valerio Bruno se mostra particularmente preocupado. "Muita gente acha que os Estados Unidos são a maior democracia do mundo; que é uma espécie de farol democrático da sociedade moderna. Se é mesmo isso, acho tudo isso um péssimo exemplo para os outros países".
Edição: Thales Schmidt