ECONOMIA

Venezuela implementa nova moeda para tentar driblar hiperinflação

Esta é a terceira reconversão monetária em 13 anos e mira possível retomada econômica

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |
Nesta sexta-feira (1), começa a circular nova moeda com seis zeros a menos na Venezuela - Michele de Mello / Brasil de Fato

Nesta sexta-feira (1), entra em vigor a nova moeda venezuelana: o bolívar digital. A mais nova expressão monetária terá seis zeros a menos. Enquanto o Bolívar Soberano tinha cédulas de 100 mil até 1 milhão, agora os bilhetes vão de 5 até 100 bolívares. Esta é a terceira reconversão monetária do país desde 2008, nesses 13 anos foram eliminados 14 zeros da moeda nacional venezuelana.

“Realmente não está feita para combater a inflação, na verdade é uma consequência dela. Trata-se de facilitar o nível de transações e operações diárias. Há muitas caixas registradores que excedem a quantidade de zeros que estão sendo usadas atualmente”, avalia o economista e pesquisador Manuel Sutherland.

Por conta da nova medida, os bancos deixarão de funcionar durante seis horas para adequar-se às novas cifras.  Apesar da campanha midiática, ainda há muitas dúvidas sobre o impacto da reconversão monetária, por isso vários negócios e comércios preferiram não abrir as portas nesta sexta-feira.

Além disso, novamente o câmbio paralelo voltou a flutuar. A manipulação cambial e a hiperinflação são os principais fatores que diminuem a estabilidade da moeda nacional e a capacidade de compra dos venezuelanos.

Em maio deste ano, o salário mínimo foi estabelecido em 10 milhões de bolívares soberanos. Com a nova expressão monetária, seriam apenas 10 bolívares, equivalente a menos de US$ 2, o que retoma o debate nacional sobre a necessidade de reajuste.

A mesma situação se aplica para o preço da gasolina subsidiada, que poderia valer 0,005 bolívares o litro, um valor impraticável para a economia diária.

Em 2021, a inflação acumulada na Venezuela é de 470%, sendo que em agosto o índice foi de 10,6%, o menor valor na medição mês a mês do Observatório Venezuelano de Finanças.

“É uma medida necessária, mas não suficiente. Então muitas vezes se superdimensiona as expectativas sobre o seu alcance. A reconversão sozinha tem um fim específico, somente se vinculada à promoção da produção ou outras medidas que permitam gerar equilíbrio pode ser que essa reconversão seja mais duradoura”, aponta

:: Acompanhe cobertura completa: O que está acontecendo na Venezuela? ::

São 44 meses de hiperinflação, um dos processos de aumento de preços mais longos da história. Um dos efeitos colaterais mais evidentes é a livre circulação de moedas estrangeiras, sendo o dólar a preponderante em 60% das transações comerciais em nível nacional. Mas também há circulação do peso colombiano, na região ocidental do país, e do real brasileiro, na fronteira sul.

“Aqui seria necessário aplicar uma política monetária e um plano de ajuste e estabilização macroeconômica. A Venezuela precisa de uma moeda própria e precisa resgatar o bolívar para que ele seja exatamente o oposto do que foi nos últimos anos: estável, firme e sólido”, defende Sutherland.

Saiba mais: Dolarização na Venezuela gera boom de lojas de produtos importados

A última grande reforma econômica realizada pelo governo de Nicolás Maduro foi em 2018, com o aumento dos salários, o fim do controle cambiário e redução da liquidez dos bolívares. A medida ajudou a diminuir o ritmo do aumento da inflação, mas também contribuiu para o cenário atual de dolarização forçada da economia.


Com a desvalorização de cerca de 3 bilhões por cento da moeda nacional, venezuelanos passaram a usar o dólar no comércio diário / Michele de Mello / Brasil de Fato

Economia digital

Como o nome sugere, o governo bolivariano pretende avançar na digitalização da economia, mantendo a circulação de papel moeda somente para atividades específicas, como o transporte público.

“Historicamente, as economias tem cerca de 10% em massa monetária física, o restante é digital. No caso da Venezuela, esses índices não se cumprem, por conta da hiperinflação. Temos 1% ou 2% da massa monetária em espécie, o resto é digital. Essa é a forma como se realizam as transações, apesar dos problemas de conectividade, dos cortes de energia, ainda assim cerca de 80% das transações no país são feitas de maneira digital”, analisa o economista Raúl Peñaloza.

Com a criação da criptomoeda venezuelana, o Petro, o país chegou a ser o terceiro em transações com moedas digitais. Porém, o Petro acabou não atingindo as expectativas de substituição das divisas estrangeiras no comércio nacional.

“Nós tivemos algumas expectativas em relação ao Petro, que não se cumpriram, devido ao que lhe comento [sanções]. O Petro continua sendo uma boa idea, inclusive usamos bastante as criptomoedas. Mas se não há uma mudança da política dos EUA a respeito dos nossos instrumentos financeiros, vai ser difícil esperar que se desenvolvam como esperamos”, aponta Peñaloza.


Muitos comércios não abriram nesta sexta-feira (1) para poder adaptar os preços à nova moeda nacional venezuelana / Michele de Mello / Brasil de Fato

A Venezuela pode finalizar o ano com um crescimento positivo da economia de cerca de 3%, segundo estimativas de empresas de consultoria nacionais. Após a instalação da Mesa de Diálogo entre governo e oposição, o Banco Central teve acesso a US$ 5,1 bilhões (cerca de R$ 27,5 bilhões) em direitos de capital de giro do Fundo Monetário Internacional (FMI), aumentando em 80% as reservas internacionais.

No entanto, ainda estão bloqueados cerca de U$ 7 bilhões (aproximadamente R$ 35 bilhões) de ativos líquidos em contas no exterior. Por isso, para ambos analistas, seria necessário um conjunto de medidas que passam pela recuperação da indústria petrolífera, pilar da economia venezuelana, para poder estabilizar o bolívar e voltar a gerar políticas monetárias a médio e longo prazo.

:: Venezuela denuncia Estados Unidos na OMC por bloqueio econômico :: 

O ministro de Petróleo, Tareck El Aisami, anunciou que até dezembro a Venezuela retomará a extração diária de 1 milhão de barris, quase o dobro da produção atual.

Durante o discurso na 76ª Assembleia Geral da ONU, o presidente Nicolás Maduro também declarou que o país saiu de um período de resistência para “recuperação econômica”. Para os analistas ainda é cedo para prever um cenário de estabilidade.

“Desde 1997, se produzíamos cerca de 3,3 milhões de barris diários e agora se extraem entre 500 a 600 mil barris diários. Para chegar a produção de 1 milhão de barris, a indústria requer um investimento de US$ 20 bilhões a US$ 30 bilhões por um ou dois anos. E para recuperar os 3 milhões requer cerca de US$ 225 bilhões, uma quantidade de dinheiro que já não existe no mercado para o petróleo, porque a maioria dos países com grande capital está apostando na economia verde”, comenta Sutherland.

Leia também: Relatora da ONU defende suspensão imediata das sanções econômicas contra a Venezuela

Em seis anos de bloqueio, houve redução de 60% do Produto Interno Bruto (PIB) da Venezuela, puxado pela queda de 60% da produção petroleira. De acordo com dados oficiais, o embargo gerou um prejuízo acumulado de US$ 130 bilhões (aproximadamente R$ 702 bilhões).

“Posso dizer que para o próximo ano [2023] já esperamos ter um crescimento mais considerável, que de nenhuma maneira pode ser interpretado como a acomodação da economia ou um milagre econômico. Apenas se diminui a queda ou se reverte, o que já é um fator muito importante”, afima Raúl Peñaloza.

Edição: Thales Schmidt