Ela sempre se considerou alguém de esquerda. Mas, acreditando que exista uma lacuna acadêmica no Brasil sobre como pensam os ideólogos da direita, a cientista política Camila Rocha decidiu mergulhar nesse fenômeno — sem imaginar que o crescimento seria tão grande a ponto de, em 2018, o país ganhar um presidente de ultradireita.
"Logo após a redemocratização, quem se dizia de direita passou a ter vergonha por conta da vinculação com a ditadura militar", contextualiza Rocha em entrevista à DW Brasil.
"As pessoas não queriam ser percebidas como vinculadas à ditadura, por isso começaram a falar que eram de centro, em vez de direita. Essa vergonha passou porque vieram novas gerações, que continuaram não querendo se associar com a ditadura militar mas que queriam se afirmar como sendo de direita. E, à medida que a confiança de boa parte da população na esquerda e nas lideranças do Partido dos Trabalhadores começou a declinar, essa possibilidade de se dizer de direita começou também a se tornar uma coisa mais interessante", diz.
Foram cinco anos em que ela conviveu com pesquisadores do Think Tank Instituto Liberal — fundado em 1983 e reconhecido como o mais antigo centro de difusão do ideário pró-mercado do Brasil —, entrevistou ideólogos e militantes e leu muitos teóricos. Originalmente, a pesquisa virou sua tese de doutorado, pela Universidade de São Paulo (USP). E acabou duplamente premiada: reconhecida como melhor tese pela Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e considerada tese destaque pela própria USP.
"Acabei vendo que, na verdade, os líderes da direita têm muito mais semelhanças com os militantes de esquerda do que eu poderia imaginar", comenta a cientista.
Reorganizado em livro, o trabalho Menos Marx, Mais Mises — O Liberalismo e a Nova Direita no Brasil acaba de ser lançado pela editora Todavia.
Na entrevista a seguir, Rocha também fala sobre a ascensão de Bolsonaro, apontando que sua escolha como candidato da direita foi pragmática e que esse casamento sempre foi frágil.
DW Brasil: Começo com a pergunta que dá título ao primeiro capítulo do seu livro: o que há de novo na nova direita?
Camila Rocha: Nova direita em relação à direita tradicional, que vinha atuando desde a redemocratização do país. São duas as principais diferenças. Primeiro que essa direita tradicional vinha atuando dentro dos marcos do presidencialismo de coalização e da Constituição de 1988, e a nova direita quer justamente romper com isso. Outra diferença é que a nova direita é de fato mais radical do que a tradicional no sentido de apostar num conservadorismo mais programático, e também muito mais radical no que diz respeito à defesa de um radicalismo de livre mercado. Por isso, qualifico-a como ultraliberal em comparação com o que se convencionou chamar de neoliberalismo.
A nova direita é necessariamente extremista?
Entendo que não, porque para ser extremista você precisa, no limite, defender uma subversão completa do sistema político e da própria democracia. Nesse sentido, não considero que a nova direita seja extremista. Ainda que o programa que ela propõe seja radical, os meios não são radicais. A ideia [deles] é fazer tudo isso dentro da democracia liberal que a gente tem hoje.
O título de seu livro — Menos Marx, mais Mises — recupera um mote dessa nova direita. Por que o economista teórico Ludwig von Mises (1881-1973) se tornou tão icônico?
Justamente porque ele foi reapropriado como um autor libertariano, ou seja, um defensor radical do livre mercado. Que ele sempre foi. Mas [atualmente] ele foi relido a partir de outras influências que vieram depois. E nesse sentido ele passou a representar o ideal de quem propõe esse radicalismo de livre mercado. Muito mais do que o [economista e filósofo] Friedrich Hayek [(1899-1992)], que ainda é muito associado ao neoliberalismo.
Você atenta para o fato de que desde a redemocratização e até pouco tempo atrás a direita brasileira era "envergonhada". Por que essa vergonha? Como foi que ela passou?
O que ocorreu foi que logo após a redemocratização quem se dizia de direita passou a ter vergonha por conta da vinculação com a ditadura militar. Daí vem essa vergonha. As pessoas não queriam ser percebidas como vinculadas à ditadura, por isso começaram a falar que eram de centro, em vez de direita. Essa vergonha passou porque vieram novas gerações, que continuaram não querendo se associar com a ditadura militar, mas que queriam se afirmar como sendo de direita. E, à medida que a confiança de boa parte da população na esquerda e nas lideranças do Partido dos Trabalhadores começou a declinar, essa possibilidade de se dizer de direita começou também a se tornar uma coisa mais interessante. Não só para os políticos, mas também para os eleitores e ideólogos.
Foi essa "vergonha" que fez com que diversos movimentos com pautas alinhadas à direita se definissem como apartidários, sobretudo na segunda metade da década de 2000 e na primeira da década de 2010?
Sim. Fez com que muitas pessoas não falassem que eram partidárias e até se distanciassem da política, tem isso também. Muita gente com quem eu conversei diz que se aproximou da política e, com o tempo, foi se percebendo de direita. Esse momento foi principalmente a partir de 2014, com a reeleição da Dilma [Rousseff, ex-presidente do Brasil, que acabaria sofrendo impeachment]. Esse é um arco fundamental para a consolidação dessa nova direita.
De que forma o presidente Jair Bolsonaro representa essa nova direita?
Bolsonaro e o bolsonarismo são de extrema direita. Quando o bolsonarismo surgiu e o próprio Bolsonaro apareceu como uma liderança possível para o campo da direita, alguém que poderia de fato ascender ao poder, essa nova direita já estava razoavelmente consolidada. Bolsonaro não era o candidato ideal, nunca foi, para quase ninguém da nova direita. O que ocorreu foi um pragmatismo bastante grande: ele era o único candidato que poderia, enfim, ganhar do PT no segundo turno. E que acenava para a nova direita no sentido de que dizia "também sou o único candidato que posso representar as pautas dessa nova direita". Mas sempre foi um casamento frágil o da nova direita com o bolsonarismo. Tanto que a gente vê que várias lideranças dessa nova direita estão se distanciando também do bolsonarismo.
Uma vez eleito, ele decepcionou a nova direita?
Bolsonaro nunca foi o candidato ideal. Então não é que as pessoas da nova direita chegaram a ficar decepcionadas. Considerando o perfil do Bolsonaro, ele até vem representando bem alguns dos principais interesses da nova direita, mas, como ele é um fenômeno distinto, ele não vai representar fielmente todos os interesses. Onde talvez mais decepcione — mas entre aspas, porque não é que as pessoas esperassem algo diferente — é essa questão do autoritarismo dele, esse comportamento histriônico, essa reivindicação da herança da ditadura militar. Isso é uma coisa que a maioria das pessoas da nova direita, a grande maioria, recusa.
Academicamente você tinha um percurso ligado à esquerda e, no próprio livro, você se classifica como alguém de esquerda. Depois de cinco anos estudando a direita, sua visão sobre esses militantes mudou?
Sim, sou de esquerda. E, com certeza, minha visão sobre a direita mudou significativamente. No sentido de respeitar mais. [A pesquisa] me tornou uma pessoa muito mais democrática e aberta a ouvir, de fato, o que as pessoas estão falando. Acho que essa é uma postura muito mais difícil para a maioria das pessoas e até para vários colegas [pesquisadores]: levar a sério o que os outros estão falando. As pessoas carregam vários estigmas, é quase como se elas não estivessem sendo verdadeiras, como se tudo o que viesse da direita fosse falso, invalidado. Como se elas fossem pessoas de elite perseguindo os próprios interesses, ou gente manipulada pelas elites, ou alguém de má-fé. Na verdade, não: elas de fato acreditam naquilo que estão defendendo. Acabei vendo que, na verdade, os líderes da direita têm muito mais semelhanças com os militantes de esquerda do que eu poderia imaginar.