Depois de oito meses, Fabiana Araújo ainda aguarda uma boa notícia. Espera a conclusão de um pedido de dieta enteral para o pai, Rosalvo Oliveira, 77, que luta contra as complicações de um acidente vascular cerebral. Em novembro do ano passado, ela protocolou, na cidade de São Paulo, um pedido para ter acesso à entrega regular desse tipo de alimentação por meio do Sistema Único de Saúde, o SUS. O prazo de 30 dias inicialmente previsto, entretanto, estendeu-se sem que haja uma previsão para terminar.
Enquanto isso, Fabiana ora conta com a ajuda de ONGs que fazem doações ora se vira como dá, vasculhando as redes sociais em busca da oferta do insumo por um custo mais acessível para o pai acamado. Em média, o preço de uma unidade diária da dieta enteral varia entre 20 e 30 reais. Em alguns casos, é possível comprar uma grande quantidade, no atacado, por um valor menor, mas, ainda assim, salgado. Por esse motivo, Fabiana e centenas de outras pessoas reivindicam o direito de receber pelo SUS esse tipo de alimentação.
A batalha que ela trava é a mesma de ao menos 1934 famílias que solicitaram o acesso à dieta enteral à prefeitura da capital paulista, a mais populosa do país, entre novembro de 2019 e abril de 2021. Trata-se, aliás, de uma luta que não costuma chegar a um final feliz. Desse total de pedidos, apenas 405 foram atendidos — isso é, cerca de 21%. Esses dados foram obtidos pelo Joio, diretamente da Secretaria Municipal de Saúde, por meio da Lei de Acesso à Informação.
“Quando o paciente tem alta do hospital, dizem que há um retorno 30 dias após a papelada ser entregue, com o objetivo de saber se ele está recebendo a dieta. Infelizmente, ninguém dá um respaldo para a gente. No caso do meu pai, eu já recorri a todos os meios possíveis e fico acompanhando. Mas os canais de atendimento estão todos inacessíveis e não respondem”, afirma Fabiana, em entrevista para o Joio.
Após conversar com esta reportagem, ela mostrou todos os e-mails que enviou requisitando informações sobre o pedido de alimentação enteral do pai. Apenas dois receberam respostas. Um deles, enviado à ouvidoria federal do SUS, dizia que a mensagem dela seria encaminhada à Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de São Paulo, de onde não recebeu mais notícias. O outro, para uma autarquia da Secretaria de Estado da Saúde, informava que ela deveria solicitar informações à prefeitura da capital.
A demora em atender à solicitação ou a resposta negativa afetam pessoas com um quadro de saúde vulnerável, como idosos acamados com dificuldades de deglutição e crianças com algum tipo de deficiência motora, além de outros pacientes que precisam se alimentar por sonda, como aqueles com problemas de peso ou subnutrição. Em geral, quem depende da dieta enteral tem poucas alternativas para se nutrir, já que, nesse caso, é a única forma adequada de aquela pessoa obter a quantidade necessária diária de calorias e de nutrientes.
O insumo, via de regra, é receitado por nutricionistas, e, no caso do SUS, principalmente por aqueles que trabalham na atenção primária, seja em alguma Unidade Básica de Saúde (UBS), seja em alguma Equipe Multiprofissional de Atenção Domiciliar (Emad). E esse é um dado importante, que amarra a história de Fabiana com a de profissionais de saúde que trabalham na capital paulista. Ao mesmo tempo em que um pedido de dieta enteral é rejeitado, criando problemas para as famílias que dependem do insumo, também frustra nutricionistas de UBSs e Emads.
Conversamos com profissionais de saúde — alguns sob condição de anonimato, por medo de represálias — que se queixam da gestão municipal. Reclamam tanto da falta de transparência na condução das solicitações quanto de não receber uma justificativa razoável ao terem um pedido de dieta enteral indeferido.
A prefeitura se comunica mal com os profissionais da atenção básica, já que não oferece instruções detalhadas sobre como fazer as solicitações, de acordo com a nutricionista Patrícia Vieira, que trabalhou no SUS na cidade de São Paulo por quatro anos e meio, até outubro de 2020. “Demorou bastante para uma atuação mais assertiva por parte da coordenação. De abrir um espaço de diálogo para poder entender quais eram as dificuldades e poder esclarecer dúvidas. Quando aconteceu, muita gente continuou esperando”, diz.
Depois que uma série de solicitações já havia sido negada, a área de nutrição da secretaria municipal de saúde organizou um encontro pelo YouTube para informar sobre as mudanças de protocolos e tirar dúvidas. Entretanto, não só a SMS negou os atrasos e indeferimentos, como deixou pendências. Nutricionistas que participaram do encontro entregaram para esta reportagem uma lista de dez questões em aberto. As perguntas se referiam não só a procedimentos técnicos, mas também pediam esclarecimentos sobre solicitações que haviam sido indeferidas.
É verdade, por outro lado, que nem todos os profissionais têm os pedidos negados ou protelados. Durante a investigação desta reportagem, ouvimos até o depoimento de um nutricionista que jamais recebeu uma negativa. Mas os relatos de solicitações rejeitadas superam em muito os daqueles cujos pedidos foram aceitos.
“A princípio, eu achei que o problema tivesse relação com a pandemia”, diz Patricia. Ela afirma que percebeu uma demora maior no retorno das solicitações de dieta entre março e abril do ano passado. No entanto, notou a relação com outro fato. “Outras nutricionistas de outras UBS também estavam se queixando do mesmo problema: vários pedidos estavam sendo negados ou então estavam atrasados”, complementa. O grande número de indeferimentos, na verdade, acompanha uma mudança na distribuição de responsabilidades do SUS no estado de São Paulo.
Judicialização e Acessa SUS
Em fevereiro de 2020, a prefeitura da capital aderiu a um programa do governo estadual com Tribunal de Justiça, Ministério Público e outros órgãos do Poder Judiciário e do Poder Legislativo, chamado de Acessa SUS. O objetivo desse convênio é reduzir a pressão que as ações judiciais exercem sobre o sistema público de saúde. Um relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra que em 2016, por exemplo, os gastos do Ministério da Saúde com demandas judiciais atingiram o montante de R$ 1,6 bilhão. E, ainda segundo o CNJ, a quantidade de processos do tipo em primeira instância cresceu em 130% no período entre 2008 e 2017.
O Acessa SUS prevê diminuir a judicialização oferecendo um local para receber as solicitações antes de serem levadas ao Judiciário ou, em algumas situações, até depois disso. Nas ocasiões em que já existe um processo, o magistrado responsável tem a opção de consultar os técnicos do convênio e verificar a disponibilidade do medicamento ou do insumo solicitado. Assim, o juiz pode antecipar a resolução do caso e encaminhar o paciente para adquirir o item necessário. Quando essa via de solução não funciona, a demanda judicial continua correndo normalmente.
Para acessar o serviço, a pessoa solicitante tem de se dirigir ao Ambulatório Médico de Especialidades (AME) Maria Zélia, na zona leste da cidade, onde o pedido é encaminhado para o órgão competente — no caso das dietas enterais, segue dali para a gestão municipal, desde que o convênio foi firmado. A previsão é de que o requerimento judicial seja atendido em até 72 horas e, nos demais casos, em até 30 dias — um prazo que, como mostra a história de Fabiana e de outras famílias, não vem sendo cumprido.
Patrícia acredita que o aumento no indeferimento dos pedidos de alimentação enteral esteja relacionado com a adesão da prefeitura ao Acessa SUS, pois, antigamente, as solicitações de dieta eram encaminhadas para o governo estadual sem que houvesse percalços. “Antes, a gente sempre preenchia o protocolo, enviava, e em torno de um mês tinha a resposta”, lembra.
A defensora pública Tatiana Belons, que atua na unidade da Fazenda Pública da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, afirma que vê um movimento contrário ao pretendido pelo Acesso SUS. Isso é, pelo menos nos casos relacionados a dietas enterais, houve nos últimos seis meses um aumento das demandas na Justiça.
“Por mais que a gente diga que é um prazo que o sistema tem para responder, para quem precisa daquilo para ontem, é muito angustiante. A defensoria atende quem ganha até três salários-mínimos de renda familiar. Imagina retirar desse valor o preço de uma dieta que custa quase mil reais. Eu entendo que as negativas sejam como qualquer tipo de conta da máquina pública. Mas não dá para o estado ou o município dizer que houve problema na compra e que a entrega vai atrasar ou não vai acontecer para uma pessoa que precisa de um insumo ou um medicamento todo mês”, ela critica.
No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), de um total de 1.134 ações judiciais incluídas no sistema eletrônico que encaminha os pedidos do Acessa SUS, apenas uma pequena parcela, 2,82% delas, referem-se a dietas enterais, de acordo com informações da assessoria de imprensa do órgão. O TJ-SP, porém, ressalta que a quantidade desse tipo de processo pode ser menor do que a real porque a opção de registrá-las é facultativa ao juiz responsável.
Enviamos cinco perguntas sobre o acesso às dietas enterais para a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Saúde. As questões, no entanto, não receberam resposta até a publicação desta reportagem. Assim que houver um retorno, este texto será atualizado.
Marcas e dieta enteral caseira
Ao negar um pedido de acesso à alimentação enteral, a área técnica municipal deve explicar a decisão. Nutricionistas ouvidos por esta reportagem relatam que uma justificativa é a de que a solicitação não indicou a marca da dieta receitada. No entanto, essa é uma conduta que é proibida pelo Código de Ética e de Conduta da profissão, no artigo 60, que afirma ser “vedado ao nutricionista prescrever, indicar, manifestar preferência ou associar sua imagem para divulgar marcas de produtos” relacionados à sua área de atuação.
Esta reportagem obteve acesso a uma troca de e-mails entre um profissional e a gerência de uma UBS, na qual o nutricionista deve selecionar uma marca de dieta enteral para receitar ao paciente. Na conversa, as três opções apresentadas para a escolha aparecem com uma proposta comercial enviada à prefeitura de São Paulo.
Procurado para comentar o caso, o Conselho Regional de Nutricionistas da 3ª região (CRN-3) declarou que o formulário de solicitação de alimentação enteral não pede a indicação de marca. “Entretanto, caso o paciente seja portador de patologia que necessite de um produto ou fórmula específica, poderá citar a marca, desde que não haja outra opção disponível no mercado ou que tenha a mesma composição ou que atenda a mesma finalidade”, afirmaram Selma de Brito, coordenadora do Setor de Ética do CRN-3, e Lúcia Helena Bertonha, gerente técnica do CRN-3.
Outra justificativa comum é que alguns dos pacientes preteridos não precisam do acesso à alimentação enteral por meio do SUS porque são elegíveis para usar a dieta artesanal. Isso é, eles estão aptos a receber uma preparação caseira, confeccionada a partir de ingredientes comuns, para que a recebam pela sonda. É um método semelhante ao de cozinhar, mas que exige também trituração e liquefação dos alimentos, bem como cuidados adicionais com limpeza e higienização de utensílios e ingredientes.
No caso dos cuidadores, esse é mais uma tarefa para somar a um cotidiano em que não faltam responsabilidades. Essa reportagem perguntou para Fabiana se ela cogitou substituir a dieta enteral pronta por uma preparação caseira. “Não consigo”, foi a resposta, “porque sou responsável por dois acamados; além do meu pai, também tenho a minha mãe para cuidar”.
Além disso, famílias que tentaram usar a versão caseira relatam dificuldades em obter os resultados esperados. “Há uma série de precauções. Minha avó, por exemplo, tem intolerância à lactose, então não podemos usar qualquer ingrediente. E a alimentação caseira, mesmo bem preparada, não funciona. A gente fazendo em casa, por mais que procure fazer direitinho, não consegue suprir todas as necessidades de que o corpo precisa”, conta a cuidadora Rosana de Jesus Santos.
No meio profissional, existem manuais com instruções para equiparar o conteúdo calórico e nutricional das preparações caseiras com o daquelas de origem industrial. No quadro abaixo, indicamos como é a elaboração de uma das refeições que integram este método. Quem recebe a preparação caseira deve repetir essa dose em até seis vezes por dia, de acordo com um documento do Instituto Girassol, utilizado por nutricionistas.
A nutricionista Wania Maria Alvarenga, associada ao Sindicato dos Nutricionistas do Estado de São Paulo, afirma que, além de ser trabalhosa, a preparação caseira demanda cuidados excepcionais com a higiene. Segundo ela, no caso de famílias mais pobres, que vivem em locais com falta de saneamento básico ou outros problemas de infraestrutura, isso pode não estar acessível de forma adequada. “Há um alto risco de infecção com dieta caseira, porque a ingestão dela não passa pelo filtro da acidez do estômago”, diz.
Como solicitar a dieta enteral
O pedido de dieta enteral é realizado por um nutricionista após consulta. O profissional verifica as condições de peso, altura, idade e sexo, bem como a situação financeira do paciente. Depois, conversa com médico e enfermeiro responsáveis para averiguar eventuais necessidades que não detectou. Feito isso, avalia com a família do paciente a possibilidade de usar a dieta caseira ou de ela comprar a alimentação enteral por conta própria enquanto a solicitação pelo SUS não é atendida.
Assim que essas dúvidas estão sanadas, o nutricionista deve preencher um formulário do governo do estado, especificando o requerimento da dieta enteral. O documento, então, é assinado e carimbado não só pelo nutricionista, mas pelo médico responsável pelo paciente e pelo gerente da UBS onde houve o atendimento. Anexado à documentação, há um relatório que descreve a situação de saúde e socioeconômica da pessoa solicitante.
Uma vez com a papelada em mãos, o cuidador do paciente deve protocolar o pedido na AME Maria Zélia, que fica na zona leste da capital paulista. A partir daí, a resposta deve vir em até 30 dias. Quando os papéis estão incompletos, o pedido nem é recebido pela área e retorna para ser devidamente preenchido pela equipe de atenção primária. O acompanhamento é todo feito por e-mail e não há contato telefônico. Em alguns casos, as dúvidas permanecem ou a resposta nunca vem.