O Brasil decidiu reabrir parcialmente a fronteira com a Venezuela depois de um ano e três meses com o passo fronteiriço terrestre fechado.
A portaria 655, publicada pelo Ministério da Casa Civil na última quarta-feira (23), autoriza o ingresso diário de 50 venezuelanos, que deverão apresentar exames negativos para covid-19 para poder entrar no país.
De acordo com o Comitê Nacional de Refugiados (Conare), o Brasil é lar de 261 mil venezuelanos. Até agosto do ano passado, acumulavam 38 mil refugiados, enquanto outros 104 mil continuavam na fila de solicitantes de refúgio.
Segundo o coordenador da Operação Acolhida, general Antônio Manoel de Barros, a decisão busca regularizar o fluxo migratório que se manteve durante a pandemia e atender os novos migrantes num ritmo que possa ser absorvido pelas estruturas criadas pelo Estado brasileiro.
“Hoje eu consigo falar para as autoridades que a Operação Acolhida consegue fazer um controle epidemiológico seguro desses migrantes”, afirmou o coordenador operacional em coletiva de imprensa.
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A portaria determina que todos os venezuelanos que entraram no país de maneira irregular, a partir de 18 de março de 2020, poderão iniciar um processo de regularização dos seus documentos, o que significa que terão direito à solicitar asilo, refúgio, emitir CPF e identidade de estrangeiro, para legalizar sua situação.
“Se nós não regularizamos os venezuelanos, não podemos interiorizá-los e se não fazemos isso, voltamos a 2018. Construir abrigos não é a solução, é um meio. Interiorizamos mais de 53 mil pessoas dentro da legalidade. Quando fazemos isso, estamos protegendo a nossa sociedade, porque sabemos quem está entrando.”, destacou Barros.
“Até o fechamento da fronteira, 100% da migração venezuelana estava regularizada no Brasil. Entendemos que o governo fez uma flexibilização muito importante para reduzir a necessidade de travessia irregular e melhorar o ordenamento da fronteira, dada a realidade que existe no local, independente dos controles estabelecidos durante a pandemia”, aponta o porta-voz da Agência de Refugiados da ONU no Brasil (Acnur), Luiz Fernando Godinho.
No entanto, segundo a embaixada da Venezuela em Brasília, a decisão foi tomada sem consultar as autoridades venezuelanas.
O Ministro Carlos França ofereceu, hoje, almoço de trabalho à Embaixadora da Venezuela no Brasil, María Teresa Belandria (@matebe). Na ocasião, o Brasil reiterou seu apoio às forças democráticas venezuelanas lideradas pelo Presidente @jguaido 🇧🇷🤝🇻🇪 pic.twitter.com/pgpCc4llB9
— Itamaraty Brasil 🇧🇷 (@ItamaratyGovBr) June 9, 2021
Por outro lado, María Teresa Belandria, embaixadora nomeada pelo autoproclamado presidente venezuelano Juan Guaidó, celebrou a decisão. Em comunicado, afirmou que durante vários meses trabalhava para que essa regularização “se tornasse realidade”.
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Ainda que o Brasil tenha decidido reconhecer Belandria como autoridade legítima e declarar os encarregados da missão diplomática oficial da Venezuela como persona non grata, na prática os funcionários de Guaidó não têm acesso à base de dados das instituições públicas venezuelanas, o que lhes impede de verificar a legalidade dos documentos.
Em 2020, o Brasil de Fato já havia noticiado com exclusividade, uma série de denúncias de documentos venezuelanos falsos reconhecidos pela embaixadora de Guaidó e aceitos por instituições brasileiras.
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Novos operativos
Até agora esses imigrantes chegavam ao Brasil em situação irregular, por caminhos ilegais, o que lhes dificultava a regularização de documentos, acesso a refúgios e apresentava o risco de deportação mesmo durante a pandemia.
Ainda que flexibilize a entrada terrestre, a nova portaria ainda prevê a deportação imediata e inabilitação de pedidos de refúgio aos venezuelanos que atravessem a fronteira de maneira ilegal.
Segundo o coordenador da Operação Acolhida, o fluxo migratório se manteve durante a pandemia e hoje existem cerca de 5 mil venezuelanos abrigados, sendo 1.400 em alojamentos de passagem. A Operação inaugura um quinto abrigo em julho, aumentando a capacidade de atendimento a 2 mil pessoas.
“Assim conseguiremos avançar na regularização, dar dignidade, não sobrecarregar o sistema de saúde local, e mais que isso, vamos aumentar a interiorização. Temos uma previsão de interiorizar 1.400 neste mês e em julho 1.700”, declarou o general Barros.
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A Acnur, que gerencia todos os abrigos da Operação Acolhida, junto a outras organizações especializadas, apoia a decisão.
“Existe um plano de contingência que já está em fase avançada de execução e previa em algum momento uma entrada regular de pessoas e a necessidade de aumentar a capacidade de abrigos, registro e documentação", afirmou Luiz Fernando Godinho.
Pandemia
A principal justificativa do Ministério da Casa Civil para determinar o fechamento da fronteira, no dia 18 de março de 2020, era a contenção dos contágios de covid-19, embora a Venezuela sempre registrasse números bastante inferiores ao Brasil.
Enquanto no lado brasileiro já são 18,4 milhões de infectados e 514.092 mortos pela doença, no lado venezuelano são 270 mil casos e 3.084 falecidos, de acordo com dados oficiais. Apesar de infectologistas estimarem uma subnotificação de até três vezes, a cifra continua 68 vezes menor que o registrado no Brasil.
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Por conta do surgimento das variantes P1 e P2, conhecidas como cepas brasileiras, a Venezuela teve uma segunda onda de contágios da pandemia.
E mesmo com a permanência da migração irregular, através das chamadas “trochas”, a quantidade de venezuelanos contaminados é ínfima em relação ao descontrole da crise sanitária no Brasil.
“De junho a dezembro foram realizadas 6 mil internações, somente 11% eram venezuelanos”, afirmou o coordenador da Operação Acolhida.
Crise migratória
Segundo a Organização Internacional para Migração (OIM) existem 5,6 milhões de migrantes venezuelanos no mundo, cerca de 90% em países da América Latina. Já a Acnur indica que seriam 5,4 milhões de imigrantes.
O governo venezuelano afirma que o número é inflado pelos organismos multilaterais, porém não oferece um dado oficial sobre o tema. As últimas cifras estão relacionadas ao programa social Vuelta a la Patria (De Volta à Pátria), que repatriou 25.144 venezuelanos desde 2019.
No seu relatório enviado à Corte Penal Internacional, o Executivo utiliza o dado do Fundo de População das Nações Unidas, que seria o mais exato pela capacidade de cruzamento de dados estadísticos, e que apontava 2,4 milhões de migrantes em 2019.
A ONG Sures destaca que até 2015 a Venezuela possuía 700 mil cidadãos residentes no exterior e que o bloqueio econômico, aplicado pelos Estados Unidos e União Europeia a partir desse ano seria o principal fator que desencadeou o fluxo migratório.
Em seis anos, o país teve a redução de 60% do Produto Interno Bruto (PIB) e 99% da arrecadação do Estado. Segundo levantamento da ONG venezuelana, foram 150 sanções econômicas, que afetaram autoridades do governo, empresas estatais, mas também empresas privadas que importavam alimentos e medicamentos, assim como 55 aviões e 165 navios de carga.
“O aumento da migração coincide com o bloqueio econômico. É uma migração estimulada basicamente por causas econômicas, por melhorias nas condições de vida, diante da deterioração dos serviços públicos na Venezuela”, aponta Lucrécia Hernández, diretora da ONG Sures.
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Já o porta-voz da Acnur explica que se trata de um fluxo misto. “Existe uma parcela que deixa o país por necessidade de proteção internacional, por sofrer perseguição, violação de direitos humanos, pelos conflitos na Venezuela. Enquanto outra parcela deixa o país por uma questão econômica”, defende Luiz Fernando Godinho.
Desde 2017, com a entrada no Grupo de Lima, o governo brasileiro vem se incorporando à plataformas políticas regionais que insistem que a crise migratória venezuelana seria fruto da má gestão do governo de Nicolás Maduro e de supostas violações a direitos humanos.
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O Brasil chegou a defender a aplicação do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), pela Organização dos Estados Americanos (OEA), alegando que a Venezuela seria uma ameaça regional.
Com a paralisação do Grupo de Lima, o Brasil assumiu a presidência do Processo de Quito, grupo formado pela Colômbia, Equador, Panamá, Paraguai, República Dominicana, Costa Rica, Guiana, Uruguai e Chile, para discutir a crise migratória venezuelana, e busca reativar o bloco com governos conservadores.
“É mais produtivo levantar preocupações sobre o tratamento que dispensamos aos imigrantes em nosso país do que prever possíveis retaliações de outros Estados - especialmente neste contexto em que a questão migratória entre ambos os países, Brasil e Venezuela, envolve ainda mais a tentativa de angariar dividendos políticos para determinadas ideologias”, analisa a pesquisadora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-RJ, Flávia Rodrigues de Castro.
Edição: Leandro Melito