Duerme rico mi reina... Cuídate, y !no te olvides de mi!
Assim arrancou o motorista do ônibus depois da primeira parada para deixar sua namorada em Guarenas, uma das mais antigas cidades satélites de Caracas, lar de 250 mil venezuelanos.
Era começo de fevereiro, eu era o número 18 de trinta passageiros. A promessa de que a viagem seria direta de Caracas (Distrito Capital) a Santa Elena de Uairén (Bolívar) nunca me convenceu, e as outras ilusões foram desmoronando pouco a pouco.
O ar condicionado também não passou de Guatire, a segunda cidade satélite do caminho. Com a gasolina e o diesel escassos, custando até US$ 2 (quase R$ 11) o litro pela via do contrabando, nenhuma empresa pode se dar o luxo de viajar com assentos vazios.
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Também não havia garantia de medidas sanitárias ou de prevenção à covid-19, além da obrigatoriedade da máscara, que durou só até a metade do trajeto. Apesar da crise hídrica em todo o país e a escassez de materiais básicos de higiene, como álcool em gel e sabonete, a Venezuela conseguiu quase um milagre na contenção da pandemia, registrando pouco mais de 248,8 mil casos, sendo 92% já recuperados, e 2.797 falecidos pelo vírus - um cenário totalmente oposto ao Brasil.
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Depois de passar por quatro controles policiais, chegou minha vez de compartilhar meu banco, aquela pequena parcela de conforto, que mais parecia um minifúndio num ônibus já quase lotado. Era um soldado da Força Armada Nacional Bolivariana (Fanb), que não deveria ter mais de 20 anos. Contou orgulhoso que agora voltava de carona para El Tigre, sua cidade natal, depois de servir como guarda-costas de Nicolasito durante sua campanha como deputado da Assembleia Nacional.
Contou que chegou a viajar para a Espanha, em um tour do filho do presidente, mas finalizadas as eleições, foi mandado de volta para casa.
Sentia que meus olhos pesavam mais que a razão que me dizia que era melhor permanecer acordada. E como a tal pedra no caminho, apareceu outro controle militar. Eram quase 21h e estávamos em San José de Guanipa, estado Anzoátegui, a 460 km do Distrito Capital. Um sargento da Fanb ordenou que desembarcassem o senhor Jesus, o senhor Michel e a senhora Rita. Depois de três anos vivendo na Venezuela eu já sabia identificar que o senhor Michel era eu mesma.
"Onde você conseguiu essa identidade?" me perguntou. Em Caracas, onde resido, digo eu. Apesar de toda a legalidade do meu documento, eu não "aparecia no sistema". Tentei apresentar o passaporte, mas me disseram que não serviria, pois para rastreá-lo teriam que acionar a Interpol.
É difícil explicar a mescla de sentimentos quando você sabe que um militar quer te extorsionar. O teatro é quase sempre o mesmo: um chefe durão que diz que você está em situação ilegal, outros três subalternos que te olham com cara de preocupação para aumentar o nervosismo e, passados alguns minutos de pressão psicológica, sempre aparece o militar amigo com a via de escape perfeita: dólares.
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Por um lado me parecia interessante a forma rebuscada com que tentavam me roubar; por outro, a raiva já tinha me levado a fazer uma lista mental de pessoas que eu poderia acudir para pressionar que me liberassem. Os olhos tão atiçados em cima dos meus documentos nunca puderam ver que tanto identidade, como passaporte estavam vencidos e que esse era o motivo da viagem, mas uma justificativa real já não era necessária para seguir com a cena.
Nessa hora você deve tomar uma decisão: assim como os militares escolhem uma narrativa para conseguir seu "extra de carnaval", você deve escolher qual personagem irá assumir na sua defesa. Um militar de baixo escalão ganha uma média de três salários mínimos, 21 milhões de bolívares soberanos - equivalente a cerca de R$ 35.
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Vou desde a estrangeira ingênua, doce e assustada até a brasileira meio malandra, que vive há três anos no país e "você não vai me enganar". Depois de duas horas de atraso do ônibus e mais quatro de viagem, o mau humor que tomava conta me levou à segunda opção.
Amanhecemos em um posto de gasolina na beira da estrada. Outros dois ônibus e um guincho lideravam a fila e eram o único sinal de que a estrutura carcomida pela ferrugem ainda deveria funcionar.
- Se quiserem, desçam. Não vamos sair daqui enquanto eu não conseguir abastecer com diesel.
Decidi comprar um café e ir ao banheiro, a tradicional expedição à parte nas viagens de ônibus. Um homem magro, de uns 60 anos e pele maltratada pelo sol, pede qualquer contribuição para a limpeza dos banheiros. Na parede o aviso gerava mais riso que advertência: "favor fazer pipi dentro do vaso". O cheiro e a cor do banheiro comprovavam que nem o aviso, nem a falta de água puderam disciplinar as usuárias viajantes.
Tomei meu café e decidi retomar a leitura dentro do ônibus. Depois de três horas a gerente da agência de viagens telefonou para dizer que o motorista deveria seguir viagem até Puerto Ordaz, capital econômica do estado Bolívar. Ainda que o ônibus já estava na reserva, não podíamos mais esperar.
Enquanto mantínhamos as janelas abertas pude entrar num estado inebriante com a mescla dos odores do caminho, o vento na cara e um livro de crônicas de um historiador argentino pretensioso, mas que ajudava a inspirar essas linhas. O que me acordou do transe foram as primeiras gotas de chuva que nos obrigaram a fechar todas as janelas e o teto solar.
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Mais alguns quilômetros e a chuva evaporou, dando lugar ao calor úmido característico da Venezuela.
Em um desses trechos de estrada infinita, asfalto que ferve e árvores que desmancham pelo caminho, um caminhão que viajava alguns metros adiante caiu num buraco, afrouxando uma das cordas que amarravam a carga. Puft! Um galão de combustível saltou na nossa frente. O motorista parou no acostamento e, ainda incrédulo, saiu correndo para verificar. Estava cheio.
Voltou chacoalhando o galão como se fosse a taça da Libertadores que os times venezuelanos nunca nem chegaram perto. O ônibus soltou um grito uníssono. Era o nosso troféu.
- Agora podemos seguir viagem? Questiono.
O motorista me respondeu com um sorriso picareta e voltou pro volante.
A felicidade tomou conta de mim. Essas são aquelas horas em que a vitória é real, mas ainda parece inacreditável. Num momento de egoísmo, abocanhei toda a sorte que havia naquele ônibus e pensei "Deus é mesmo brasileiro".
O estado de êxtase durou mais ou menos 80 km. Chegando a Puerto Ordaz, o motorista nos mandou sair do veículo com todos os nossos pertences. Não, o ônibus não quebrou, mas o combustível ainda não era suficiente e deveríamos esperar na rodoviária até que outro veículo pudesse nos buscar ou até que o chofer voltasse com o tanque cheio.
Desde que entrei no estado Bolívar pude perceber suas dimensões amazônicas. Dos quase três dias de viagem, dois foram atravessando essas terras, onde fica o Parque Canaima, com 30 mil km² de floresta preservada, o monte Roraima, com 2.810 metros de altura e a Grande Sabana - selva mística pela qual iríamos cruzar.
E era imensa, densa, profunda. Em segundos o dia virou noite, enquanto as copas das árvores abraçavam nosso ônibus. Já de madrugada, quando achava que não havia mais nada senão fauna e flora silvestre; lua e estrela; ainda havia mais um controle policial. Dessa vez tivemos que descer todos e abrir malas, mochilas, bolsas de mão, lancheira de comida, para mostrar que não estávamos contrabandeando nada para o Brasil.
Já eram 4h30 da manhã quando finalmente chegamos a Santa Elena de Uairén, seis horas mais tarde do que o previsto. Nem bem coloquei o pé pra fora do ônibus e uma fila de taxistas já estava a postos, oferecendo a viagem até a linha fronteiriça com o Brasil. Apesar de estarmos em território venezuelano, todos os preços eram oferecidos em reais.
Em carro, até a comunidade indígena San Antonio eram R$ 80, depois cada um deveria pagar mais R$ 60 para que os indígenas ajudassem na travessia. Em moto, o valor subia para R$ 190, já que as motocicletas levavam quase ao outro lado pelos "caminhos verdes".
::Como a escalada de preços afeta o cotidiano dos venezuelanos::
Cerca de 80% dos passageiros do ônibus buscavam cruzar a fronteira, muitos para encontrar familiares que já residem no Brasil. Segundo a Agência de Refugiados das Nações Unidas (Acnur), 4 milhões de venezuelanos emigraram nos últimos cinco anos. O governo afirma que a cifra é exagerada, mas não oferece um dado de contraposição. Com o passo fechado, desde o início da pandemia, a via era uma só: ilegal.
A madrugada era perfeita para não ser visto por nenhum militar atravessando uma "trouxa" e ter que desembolsar ainda mais reais.
Do outro lado, os venezuelanos têm que oferecer até quatro vezes o valor da viagem de táxi de Pacaraima a Boa Vista para que os taxistas aceitem a corrida. Se a Polícia Federal encontrar um veículo com pessoas estrangeiras indocumentadas, o motorista pode ser acusado de tráfico de pessoas, com pena de 4 a 8 anos de prisão e multa.
Todos me perguntavam como pensava em atravessar, qual seria minha rota e como iria pagar. Quando dizia que passaria pela aduana, a cara de surpresa era a primeira reação, até confirmarem que eu era brasileira e, portanto, poderia retornar legalmente ao meu país.
A estrada que conecta os dois países era solitária, mas ao mesmo tempo respirava a liberdade. Enquanto equilibrava o mochilão nas costas e uma mala entre as pernas na garupa de Daniel, policial que abandonou a profissão para ser mototáxi na fronteira e, com isso, ajudar a sustentar os dois filhos de 5 e 6 anos, esquadrinhava cada monte verde, cada nuvem no céu e pensava que a natureza não entende de diferenças, é a mesma dos dois lados. Realmente as fronteiras não passam de barreiras imaginárias que dividem os povos.
Daniel me deixou no primeiro posto do Serviço Nacional Integrado de Administração Aduaneira e Tributária (Seniat). Até Pacaraima passei por mais três controles, caminhando cerca de 1km. Do lado tupiniquim, escutar alguém pronunciar uma frase em português foi o afago que necessitava depois de mais de 38 horas de viagem.
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Cheguei em casa, pensei, ainda que faltavam mais 5.187 km até chegar a minha casa de verdade.
No avião, em Boa Vista (RR), encontrei Gabriela, uma menina de 7 anos, natural da comunidade de Rosario, no município de Charallave, 56 km ao sul de Caracas. Viajava pela primeira vez de avião para encontrar a avó e outros primos que há dois anos vivem em Fortaleza (CE).
Enquanto eu escrevia, ela perguntava se eu fazia a tarefa. Respondi que fazia por diversão e por trabalho, ela então decidiu que queria fazer um desenho para se divertir. O retrato éramos nós duas no avião.
Para diminuir o medo da viagem, brincamos de adivinhar o formato das nuvens. Os olhos brilhavam e o sorriso era farto.
- Agora estamos voando pelo céu de Rosário?
A mãe me olha envergonhada e eu digo que sim.
Edição: Daniel Lamir