2ª ONDA

Conheça a rotina de quem trabalha na linha de frente contra a covid-19 na Venezuela

País vê transmissões aumentarem, com média de mil casos diários, depois de registros da cepa brasileira

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |
Venezuela enfrenta pior momento da pandemia depois de registrar primeiros casos da cepa brasileira - Michele de Mello / Brasil de Fato

A Venezuela vive o pior momento desde o início da pandemia de covid-19. Com um acumulado de 174 mil casos e 1.178 mortos, o país saltou de uma média de 27 casos a cada 100 mil habitantes, em março, para 48 casos a cada grupo de 100 mil pessoas em abril.

Os primeiros casos das variantes brasileiras, P1 e P2, foram um dos principais fatores para o cenário atual. Apesar de ter uma taxa de recuperação de 90% dos doentes, há neste momento, mais de 15 mil casos ativos e uma lotação de 99% dos hospitais no Distrito Capital, em Miranda e La Guaira – estados mais afetados.

“Estávamos certos de que, depois de enfrentar um ano de pandemia e com maioria de pacientes assintomáticos, poderíamos vencer isso, mas essas novas cepas são muito agressivas”, relata Whitney Rivas, médica cirurgiã e coordenadora geral da Brigada de Ação Imediata de Caracas.

“Uma característica dessas novas variantes é que o estado do paciente avança muito mais rápido. O paciente piora em menos tempo depois do diagnóstico, inclusive há pacientes que antes de ter um diagnóstico já possuem dificuldades respiratórias, com necessidade de aparelhos”, relata Ricardo Blanco González, médico cirurgião e coordenador de epidemiologia da brigada em Caracas.

Os relatos de pacientes com novo coronavírus confirmam que os primeiros sintomas são de um resfriado comum, no entanto, em poucos dias diminui drasticamente a oxigenação no sangue.

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“Eu demorei sete dias até ir ao Poliedro [hospital de campanha], porque antes o que eu sentia era dor de cabeça e acreditava que era um simples mal-estar. Quando vemos que temos febre, não devemos ficar na dúvida se é uma gripe, porque se não, acontece o que aconteceu comigo. Eu sou uma pessoa hipertensa e perdi muito tempo”, relata María Isabel de Romulo, paciente internada há 14 dias com covid-19.


Com tecnologia da China, venezuelanos podem realizar exames de diagnóstico do novo coronavírus de maneira imediata no Poliedro de Caracas. / Michele de Mello / Brasil de Fato

Subnotificação

Nas últimas 24h, foram registrados 1.101 casos. Cientistas venezuelanos apontam que há subnotificação de cerca de três a cinco vezes da situação real, pois o país realiza uma média diária de 3 mil exames do tipo RT-PCR.

O aumento da demanda por oxigênio hospitalar, gerando inclusive negócios de aluguéis de cilindros, é outro reflexo do quadro crítico. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), um a cada cinco pacientes com covid-19 necessitarão de oxigênio, nos casos moderados a proporção é de três pacientes a cada cinco.

“Às vezes estou todo o dia [com oxigênio], às vezes durante o dia e à noite”, conta Samuel Tizada, paciente internado há 12 dias com covid-19.

Ainda que as projeções estivessem corretas, a Venezuela possuiria menos da metade dos casos e mortes registrados no Brasil, Colômbia, Peru e Chile.

Vacinação

Até o momento, foram vacinados cerca de 99 mil venezuelanos dos grupos prioritários: profissionais de saúde, militares, políticos e idosos. O país acaba de anunciar que conseguiu pagar toda a sua cota com a OMS para entrar no sistema Covax, que prevê a entrega de doses suficientes para imunizar 20% da população venezuelana até o final de 2021.

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Metade do valor foi pago com o desbloqueio de 59,2 milhões de francos suíços (equivalente a R$ 368 milhões), já a outra metade, o presidente Nicolás Maduro afirmou que irá informar “no momento oportuno” como foi paga.

O governo venezuelano já havia contratado 10 milhões de doses da Sputnik V com o governo russo e recebeu uma doação de 500 mil doses da fórmula da Sinopharm do governo chinês.

Na última semana, o Executivo também anunciou o início da produção da vacina cubana Abdala, que será distribuída pelo banco de vacinas da Aliança Bolivariana dos Povos da Nossa América (Alba-TCP).


No centro poliesportivo Poliedro, zona sudoeste de Caracas, foi instalados laboratórios móveis para realizar o diagnóstico dos pacientes. / Michele de Mello / Brasil de Fato

Medidas de prevenção

Além de buscar alternativas para acelerar a campanha de vacinação, a Venezuela ainda aposta em medidas sanitárias básicas para frear os contágios. O país esteve três semanas em quarentena radical e aumentou as brigadas de saúde popular, que fazem trabalho de pesquisa casa a casa.

O território é dividido em áreas de saúde integral comunitária (Asic) para organizar o trabalho de prevenção, identificação e tratamento de doentes. Somente em Caracas existem 46 Asic com uma equipe de médicos, enfermeiros, promotores de saúde e um líder comunitário.

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Depois que os casos positivos são identificados com testes rápidos, são levados para hotéis sanitários, onde devem permanecer isolados até o resultado do exame RT-PCR. Em seguida, os doentes são avaliados, os casos leves permanecem em hotéis ou postos de saúde. Já os casos moderados e graves são levados aos hospitais.

“Hoje em dia posso dizer que nosso trabalho é integral. Sempre levando a bandeira da prevenção primeiro. Nosso principal chamado é que as pessoas tenham consciência. Devemos aplicar as medidas de biossegurança. Ter consciência que ajudando a nós mesmos, ajudamos os demais”, comenta outra médica cirurgiã, integrante da brigada, Glendolis Mendez.


São realizadas cerca de 3 mil provas PCR diariamente em todo o território venezuelano. / Michele de Mello / Brasil de Fato

Em Caracas foram criados 4 mil leitos. O Centro Poliesportivo Poliedro foi adaptado para receber, na parte interna 900 pacientes de cuidados intensivos (UTI), e, na parte externa, foi inaugurado, neste ano, um hospital de campanha que atende uma média diária de 450 pessoas.

Na triagem, os profissionais medem o nível de oxigenação dos pacientes para definir prioridades.

“Nós verificamos a severidade da doença em cada paciente. Não é a mesma coisa um paciente assintomático ou leve, que um paciente moderado ou alguns que já chegam com deficiência respiratória severa. São pacientes que já quase não podemos fazer nada”, explica a médica Brilly Plaza.

“Esse é o nosso sistema. Tem erros, falhas? Claro, mas com um bloqueio, quem não teria limitações? No entanto, creio que nos formamos com base na inclusão, no humanismo, no sentido de pertencimento”, comenta Witney Rivas, coordenadora do grupo.


São 99 mil venezuelanos vacinados, com a entrada no consórcio Covax, o país pretende imunizar 20% da população até o final de 2021. / Michele de Mello / Brasil de Fato

Ajuda internacional x bloqueio

Desde o início da pandemia, Rússia, China e Turquia enviaram cerca de 500 toneladas de ajuda humanitária a Caracas. A Venezuela propõe trocar vacinas por petróleo para aumentar a quantidade de imunizantes no país e insiste na exigência de liberação dos ativos bloqueados no exterior.

Segundo a vice-presidenta Delcy Rodríguez são cerca de US$ 7 bilhões (cerca de R$ 35 bilhões) em contas na Europa e nos Estados Unidos. No ano passado foi assinado um acordo entre governo e  o setor da oposição, liderado por Juan Guaidó, para liberar o dinheiro e enviá-lo para um fundo de combate à pandemia, gerenciado pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas).

Gauidó conseguiu sacar cerca de US$ 30 milhões (aproximadamente R$ 150 milhões) dos fundos depositados em Londres para cobrir gastos pessoais, mas se negou a liberar as reservas de ouro venezuelano retidas no Banco da Inglaterra.

Edição: Camila Maciel