A Venezuela acumula 42 meses de hiperinflação, o que corresponde ao terceiro maior processo hiperinflacionário da história, ficando atrás somente de experiências na Grécia e na Nicarágua. Nos últimos seis anos, o país mudou três vezes de moeda nacional para conter a desvalorização de 860.000% no período do bolívar soberano (BsS).
Economistas defendem que as cifras só são possíveis graças à manipulação do câmbio dólar-bolívar, que varia diariamente por motivos políticos e não econômicos. Aliadas às sanções e ao bloqueio econômico, estas seriam as principais medidas da chamada "guerra econômica".
No dia 1º de maio, Dia do Trabalhador, como já é tradição no país, o presidente Nicolás Maduro anunciou um aumento de 300% do salário mínimo, que chega a 7 milhões de BsS. No entanto, menos de um mês depois, o valor equivale a US$ 2,5, ou R$ 14,00.
Esta seria a base remuneratória mensal para 14 milhões de venezuelanos assalariados, sendo 3,3 milhões de servidores públicos e mais 5 milhões de aposentados e pensionistas.
Para diminuir a evasão de trabalhadores, o setor privado, nos últimos anos, passou a pagar bônus em dólares, chegando a uma média salarial de US$ 60.
Além disso, cerca de 20 milhões de venezuelanos são atendidos por programas sociais e de distribuição de renda através do Sistema Pátria. Ainda assim, o valor é insuficiente para cobrir a cesta básica alimentar, que é de cerca de US$ 322 (aproximadamente R$ 1770) para uma família de quatro pessoas.
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Por isso, a garantia de poder de compra dos venezuelanos e da manutenção do valor do salário tomou conta do debate nacional. Existem pelo menos três propostas sobre a mesa: a dolarização formal da economia, a indexação do salário à inflação e o incentivo ao investimento estrangeiro para recuperar a produção petroleira e, consequentemente, a economia nacional.
Dolarização formal
Desde 2019, a Venezuela já vive um processo de dolarização forçada. Com a constante desvalorização do bolívar soberano, moedas estrangeiras passaram a ser usadas como forma de pagamento e unidade de reserva. Na região sul, o real brasileiro circula facilmente, enquanto na fronteira com a Colômbia é o peso colombiano a moeda estrangeira corrente. Já nas regiões litorâneas e no centro do país, é o dólar que predomina.
Ainda no final de 2019, o Banco Central da Venezuela (BCV) começou a diminuir a emissão do bolívar soberano para conter o ritmo da inflação. Atualmente, o volume total do que é produzido no país corresponde a 20% dos valores circulantes em moeda nacional em espécie. Já em março deste ano, o BCV lançou três novos bilhetes: 200 mil BsS, 500 mil BsS e 1 milhão BsS, que em apenas um mês desvalorizaram 38%, apesar de que a inflação de abril foi de 24,6%.
A empresa Datanálisis indicou que, desde 2020, 66% das transações comerciais na Venezuela já eram realizadas em dólares. Já o Executivo afirma que não passam de 30%.
A Consultora Econométrica aponta que, de acordo com o método indutivo, a liquidez da moeda estadunidense seria de até US$ 6 bilhões, caso sejam considerados pagamentos em espécie e as transferências por sistemas internacionais, como o Zelle.
Desde o ano passado, o Estado passou a permitir a cobrança da gasolina em dólares. Em 2021, também permitiu a abertura de contas bancárias com a moeda estrangeira. Apesar de não haver compensação com bancos internacionais - por conta do bloqueio imposto pelos EUA - as contas se tornam uma espécie de poupança para os venezuelanos.
Por isso, para alguns analistas, a formalização do processo de dolarização seria o caminho mais fácil para a estabilidade da economia.
“A dolarização permitiria acabar, num curto prazo, com a hiperinflação. Uma economia como a venezuelana necessita de cerca de mil dólares per capita anuais, o que significa cerca de 30 bilhões de dólares.”, afirma Henkel García, diretor da Econométrica.
Com essa proposta, os salários deveriam subir e ser pagos em dólares. O processo de dolarização poderia ser total, extinguindo a moeda nacional venezuelana ou reduzindo sua participação circulante, permitindo a convivência de outras moedas.
“Temos que aceitar que o dólar irá circular na Venezuela por muito tempo, e que é preciso decidir qual modelo seguir: dolarização plena ou um esquema de convivência de moedas. A segunda opção me parece mais saudável, porque apesar de ter o dólar como moeda para empresas e cidadãos, também existiria a moeda local, e isso permite realizar políticas monetárias e proteger a economia de ataques externos”, defende García.
Considerando que as reservas internacionais da Venezuela são de US$ 6,2 bilhões, para aumentar a quantidade de dólares em circulação, o país teria que aumentar suas exportações ou pedir um empréstimo a organismos financeiros como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
“Trazer dólares para a Venezuela é muito difícil. Então, quando você está ilhado, quando realmente não há um fluxo de dólares, tudo fica muito limitado. Mas vamos ver novos investimentos, assim que o esquema de sanções se flexibilize”, apontou o economista venezuelano.
Os processos de dolarização mais recentes, como os realizados no Equador, El Salvador e Peru, mostraram que a dependência de uma moeda estrangeira limita o crescimento da economia, que necessita de remessas de dinheiro do exterior, do aumento das exportações ou de negociações com o Banco Central dos EUA.
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No entanto, Caracas e Washington romperam relações diplomáticas há anos, e a Casa Branca aplica um bloqueio que gerou cerca de US$ 130 bilhões em prejuízos ao país latino-americano, uma combinação que sugere que a dolarização poderia gerar mais endividamento e dependência aos venezuelanos.
Outro questionamento seria como evitar a fuga de capitais, processo comum numa economia de caráter rentista como a venezuelana, que não foi detido durante 13 anos de controle cambiário e de dólares subsidiados pelo Estado venezuelano.
“Veja que o setor privado neste momento possui cerca de 150 bilhões de dólares em ativos líquidos no exterior, se somamos os ativos fixos, deve chegar a 400 ou 500 bilhões de dólares. No entanto, não os trazem para dentro da economia apesar de todas as vantagens comparativas e competitivas para oferecer rentabilidade”, aponta o economista Luis Enrique Gavazut.
“Se existe um ambiente de confiança para que exista o investimento, então, naturalmente, deveria se conter a fuga de capitais. São duas faces da mesma moeda”, rebate Henkel García.
Na Assembleia Nacional, a plataforma opositora Aliança Democrática, com 20 deputados, apoia a dolarização formal da economia, enquanto o chavismo se divide em outras duas propostas.
Indexação do salário
Outro grupo de economistas defende que a dolarização do salário não seria suficiente, porque os números mostram que na Venezuela os preços variam antes e mais rápido do que a inflação ou o tipo de câmbio, ou seja, já existe uma inflação em dólares no país.
Por isso, a sugestão é indexar o valor do salário à variação mensal dos preços e do índice de inflação. De imediato, o valor do salário mínimo deveria ser equivalente a meio Petro, cerca de 86,4 milhões de BsS ou US$ 27 – cumprindo a promessa do presidente Nicolás Maduro de agosto de 2018, quando aplicou sua última reforma econômica.
::"Inflação venezuelana se deve à manipulação cambial", afirma economista::
Para garantir esse aumento, o BCV deveria suspender sua política monetária atual e passar a emitir mais bolívares para abastecer as necessidades nacionais.
Pasqualina Curcio e o deputado Tony Boza (Psuv) são os principais defensores dessa proposta, que se baseia na lógica de que quanto maior o poder aquisitivo dos venezuelanos, maior seria a demanda e, assim, maior deveria ser a produção.
::Como a escalada de preços afeta o cotidiano dos venezuelanos::
A economista aponta que a variação de todos os valores diante do salário fixo gera um aumento dos ganhos do empresariado, que não irá investir no país se os cidadãos não têm qualquer poder de compra para adquirir novas mercadorias.
Para Curcio, à medida que os preços e o salário variassem na mesma proporção, a manipulação de preços dos produtos perderia seu sentido.
Recuperação da indústria petroleira
“Para mim, a proposta de indexação está equivocada, porque não leva em consideração a dependência da nossa economia das importações”, comenta Luis Enrique Gavazut.
Segundo ele, não haverá garantia de manutenção do valor real do salário enquanto não se recuperar a produção nacional. Somente o setor petroleiro, responsável por cerca de 90% das exportações do país, diminuiu 2/3 da sua produção nos últimos seis anos.
“Não há escapatória. Necessitamos de financiamento em moedas estrangeiras. Temos que reativar poços, estruturas, repor capital, maquinaria, aditivos, matéria-prima, todo um universo de coisas que são importadas e são necessárias para reativar a indústria petroleira”, afirma.
Gavazut defende no seu último livro, “A Economia venezuelana a partir de um enfoque indutivo”, que os royalties do petróleo seriam o principal fator de coesão da sociedade venezuelana, já que permitem ao Estado distribuir renda através de programas sociais, estimular o consumo e a produção, com dólares a preços menores do que o mercado.
“Devemos utilizar o pouco que ainda temos de lucro com a nossa indústria petroleira para investir em setores estratégicos e desenvolver nossa capacidade. E que o Estado se encarregue destes investimentos”, agrega.
O governo venezuelano aprovou no ano passado a lei antibloqueio, que prevê mais facilidades ao investimento estrangeiro e privatização de poços petroleiros. Agora, a Assembleia Nacional debate um novo projeto de lei para criar e ampliar Zonas Econômicas Especiais, onde os impostos serão reduzidos para favorecer o turismo e o extrativismo.
::Por unanimidade, Assembleia Constituinte da Venezuela aprova lei antibloqueio::
Para Gavazut, os dois projetos podem ajudar a atrair mais investimento estrangeiro, apesar dos riscos de sanções estadunidenses, e, com isso, a PDVSA poderia recuperar seu padrão de produção de 2017, equivalente a 1,5 milhão de barris de petróleo diários. Atualmente, a petroleira venezuelana despacha apenas 445 mil barris por dia, segundo a Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP).
“O setor privado está esperando que aumente a rentabilidade petroleira para então abrir seu capital e gerar dinamismo econômico. E o Estado necessita que o setor privado insira capital para reanimar a indústria petroleira. Então, estamos numa rua sem saída, talvez. Vamos ver como a burguesia percebe que deve apostar pelo seu país, por uma visão de futuro e desenvolvimento”, reflete o economista.
E o Petro?
A criptomoeda venezuelana, criada em 2018, parecia ser a principal aposta do governo bolivariano para conter a circulação do dólar e a depreciação do bolívar, sem depender de uma moeda estrangeira. O Petro, como o nome sugere, seria respaldado pela reserva de petróleo venezuelano, certificada em 302,8 bilhões de barris, a maior do mundo.
No entanto, a instabilidade de abastecimento de energia e acesso à internet em todo o território venezuelano fizeram com que o dinheiro digital não se popularizasse.
A Venezuela se tornou o terceiro país no ranking mundial de criptomoedas, mas a maioria das transações são voltadas ao intercâmbio internacional com outras criptos ou moedas estrangeiras.
“Internamente, as criptomoedas não são tão utilizadas. São muito boas para intercâmbio internacional de moedas, mas como método de pagamento não são tão simples”, analisa Henkel García.
Acordo Nacional
Apesar das divergências sobre quais seriam as melhores saídas para a crise, os analistas concordam que a recuperação econômica depende de um acordo nacional que garanta estabilidade política ao país.
“Essa situação irá se resolver quando os acordos chegarem, se é que vão chegar. Este ano parece ser decisivo, porque temos eleições, e os Estados Unidos terão que firmar sua posição final sobre a Venezuela. Temos uma sociedade muito desgastada, fragmentada e que carece de liderança. Sair dessa situação requer fortalecer o Estado, passando pelas instituições, e por fortalecer a sociedade”, declarou Henkel García.
“Um grande acordo para o desenvolvimento nacional é importantíssimo, e que inclua todos os setores, não somente governo e oposição, mas também todas as forças vivas da sociedade”, conclui Gavazut.
Edição: Vinícius Segalla