CPI da Covid

“Capitã Cloroquina” foi nomeada por Mandetta e recebeu bolsa de grupo ligado a Huck

Associada ao bolsonarismo, médica Mayra Pinheiro teve carreira alavancada por quem hoje reivindica imagem de "moderado"

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Mayra Pinheiro [esq.] e Luiz Henrique Mandetta [centro], rodeados por ministros e apoiadores de Bolsonaro, em janeiro de 2019 - Divulgação/Sindicato dos Médicos do Ceará

A saída dos ex-ministros Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública) e Luiz Henrique Mandetta (Saúde) do governo federal, em 2020, dividiu a direita brasileira em dois grupos – ao menos no discurso. O primeiro, representado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), manteve o negacionismo em relação à pandemia e a agressividade contra jornalistas e opositores. O segundo, que tem como expoentes o apresentador Luciano Huck, o governador paulista João Doria (PSDB) e os ex-ministros citados, passou a reivindicar o rótulo de "moderado", em defesa da democracia e da ciência.

A trajetória da depoente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid que será ouvida nesta terça-feira (25) mostra que os dois grupos são mais próximos do que parece. A médica pediatra cearense Mayra Pinheiro, apelidada de "Capitã Cloroquina", foi nomeada para o Ministério da Saúde por Mandetta, ainda em 2018.

::Mandetta afirma que filhos de Bolsonaro participavam de decisões sobre a pandemia::

Contra os médicos cubanos

Pinheiro e Mandetta se conheceram em 2013, como representantes de uma articulação autointitulada "movimento médico". A principal demanda do grupo, à época, era o fim do programa Mais Médicos, que proporcionou a vinda de 8 mil médicos cubanos ao Brasil.

Por meio de um acordo de cooperação com o governo de Cuba, os profissionais da ilha caribenha eram chamados a trabalhar em municípios onde faltavam médicos. O acordo foi rompido no final de 2018, após a vitória de Bolsonaro nas eleições e a indicação de Mandetta como ministro.

Em agosto de 2013, imagens da agência FolhaPress mostraram que Pinheiro foi uma das médicas que hostilizou colegas cubanos em sua chegada ao Aeroporto de Fortaleza (CE). Segundo reportagem da Folha de S. Paulo, eles foram recebidos sob os gritos de "escravos" pelos profissionais brasileiros. A médica cearense nega ter vaiado ou xingado os cubanos.

Em paralelo, Mandetta, então deputado federal pelo DEM, era uma das vozes mais críticas ao Mais Médicos na Câmara, em Brasília (DF). Uma das suas bandeiras, ao tomar posse, cinco anos depois, era justamente acabar com o programa, exigindo que os cubanos se submetessem a exames de validação de diploma.

Um prestigiou a posse do outro

Os apelos do "movimento médico" não surtiram efeito nos primeiros meses. Dilma Rousseff (PT) se reelegeu em outubro de 2014, e o Mais Médicos foi mantido, com alto índice de aprovação junto aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).

As derrotas pontuais não esfriaram a amizade entre Mandetta e a médica cearense.

Quando Mayra Pinheiro tornou-se presidenta do Sindicato dos Médicos do Ceará, em 27 de março de 2015, Mandetta compareceu à cerimônia de posse. 

Em dezembro de 2018, o ex-deputado já havia sido nomeado ministro da Saúde por Bolsonaro, e nomeou Pinheiro como secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (STGES). A pasta, responsável pelo Mais Médicos, elaborou já no primeiro ano um programa para substitui-lo, chamado Médicos pelo Brasil.

Sem profissionais cubanos, a desigualdade na distribuição dos médicos se aprofundou. Segundo o Conselho Federal de Medicina, as regiões Sul e Sudeste e os estados mais ricos, como São Paulo e Distrito Federal, possuem taxas muito maiores do que os demais. No Sudeste, a proporção de médicos a cada mil habitantes é de 3,15 e, no Sul, 2,68. No Norte e no Nordeste, as taxas são de 1,3 e 1,69 profissionais, respectivamente.

Pinheiro esteve na posse de Mandetta, em 1º de janeiro de 2019, e posou para fotos ao lado das ministras Tereza Cristina (Agricultura, Pecuária e Abastecimento) e Damares Alves (Mulher, da Família e Direitos Humanos).

Renova BR

Em fevereiro de 2018, Mayra Pinheiro foi uma das 100 pessoas selecionadas para receber um auxílio de até R$ 12 mil para participar de curso de formação em política, bancado pelo movimento Renova Brasil (Renova BR). O grupo é financiado por Luciano Huck, entre outros empresários, e já formou mais de 2 mil alunos.

A ideia é que os ex-alunos concorram a cargos eletivos no país. Nas eleições de 2018, 17 formados na primeira turma do Renova foram eleitos para cargos no Congresso Nacional e em Assembleias Legislativas: um senador, nove deputados federais e sete deputados estaduais.

À época, Pinheiro era filiada ao PSDB. Em 2014 e 2018, havia sido derrotada nas eleições para a Câmara dos Deputados e o Senado, respectivamente. Em 2020, foi cotada para disputar a Prefeitura de Fortaleza pelo Partido Novo (ela havia se filiado ao partido no ano anterior), mas a legenda decidiu não lançar candidato próprio.

Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Pinheiro se desfiliou do Novo em 9 de março de 2021.

A cisão

Antes de vestir o colete do SUS, o ex-deputado do Mato Grosso do Sul e já ministro da Saúde contribuiu para o desmonte da saúde pública no Brasil, em 2019. Além do corte de R$ 1 bilhão no início do ano, o programa Farmácia Popular foi abandonado, deixando de atender 7 milhões de pessoas, e o governo suspendeu produção de insulina e mais 18 remédios distribuídos de graça. Houve ainda retrocessos nas políticas de saúde mental e recorde na liberação de agrotóxicos.

Durante a pandemia, Mandetta mudou de lado enquanto o barco afundava. Por contrariar Bolsonaro em aspectos centrais do enfrentamento à covid, ele foi demitido em 16 de abril de 2020.

Àquela altura, Pinheiro já havia incorporado o discurso bolsonarista. A pediatra de 54 anos não compareceu à coletiva de despedida do ex-ministro, e ganhou ainda mais preponderância na pasta nas gestões de Nelson Teich e, principalmente, de Eduardo Pazuello.

Quando o ministério, sob comando do general, ampliou as orientações para uso de cloroquina, até mesmo entre pacientes com sintomas leves, Mayra Pinheiro tornou-se uma espécie de porta-voz do "tratamento precoce". A cloroquina e a hidroxicloroquina, sem eficácia comprovada contra a covid, eram defendidas pela pediatra em entrevistas e postagens nas redes sociais, em alinhamento com a narrativa do presidente.

Fake news contra a Fiocruz

Entre as declarações mais agressivas de Mayra Pinheiro, estão críticas à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), uma das principais instituições científicas do país, que produz a vacina Oxford/AstraZeneca contra a covid-19.

Em áudio de 2020 divulgado pela revista Piauí, a médica diz: "Tudo deles (da Fiocruz) envolve LGBTI. Tem um pênis na porta da Fiocruz. Todos os tapetes das portas são a figura do Che Guevara. Nas salas, tem figurinhas de 'Lula Livre' e 'Marielle Vive'." Nenhuma das informações procede.

Além das notícias falsas divulgadas sobre temas ligados à pandemia e à saúde pública, a Capitã Cloroquina deverá ser questionada na CPI sobre sua visita a Manaus (AM) em janeiro deste ano, dias antes do colapso causado pela falta de oxigênio no estado. À época, ela prometeu ao governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), garantir equipamentos, treinamento aos profissionais de saúde e acesso ao suposto "tratamento precoce". 

Assim como o ex-ministro Eduardo Pazuello, Pinheiro pleiteou junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) o direito de ficar em silêncio durante a sessão da CPI. O pedido foi negado pelo ministro Ricardo Lewandowski.

Edição: Vinicius Segalla