Porque o presidente se negou a comprar vacinas e investiu em medicamentos sabidamente ineficazes?
As comissões parlamentares de inquérito adquiriram grande importância nos cenários político e jurídico do país no período pós Constituição Federal de 1988, como um importante instrumento do Congresso Nacional para fiscalização da atividade administrativa exercida pelas autoridades públicas, cuja instauração somente deve se dar mediante fatos concretos e individuais (art. 58, § 3.º, CF), por prazo certo e determinado.
A situação político-social do Brasil atual beira o desespero diante da ausência das possibilidades elementares de um debate republicano entre as instituições, no interior destas ou delas com a sociedade civil organizada.
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Para fins de relacionamento com o poder central, argumentos com algum grau de coerência não existem ou não interessam. A fala oficial do Governo Federal produz diuturnamente um tensionamento constante e ameaçador de rupturas, ao tempo em que conduz uma agenda geral violadora de direitos, de natureza repressiva e autoritária, com um nível de amesquinhamento, irresponsabilidade e perversidade, em uma política pública distorcida, que foi capaz de produzir uma tragédia de imensas e ainda incertas proporções, com 437 mil mortos em 14 meses, número oficial na data de hoje.
Foi nesse contexto de óbvios desvios, distorções e práticas infames para enfrentar a crise sanitária mundial no país, que se instalou a Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado Federal, conhecida como CPI da Covid.
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Sua missão é apurar, no prazo de 90 dias, as ações e omissões do governo federal no enfrentamento da covid-19 no Brasil, bem como investigar administradores públicos federais, estaduais e municipais, no trato com a coisa pública, durante a vigência da calamidade, quanto à fiscalização dos recursos da União repassados aos demais entes federados para as ações de prevenção e combate.
Até aqui, a CPI da Covid tem produzido um desgaste ao governo Bolsonaro decorrente da ausência de explicações das autoridades que já compareceram à Comissão, em depoimentos que se sucedem em negativas diante de fatos, respostas evasivas e embustes.
Contradições
Com isso, não resistem às contradições ao tentar ocultar circunstâncias de conhecimento público, justificar o injustificável, a ponto do presidente da CPI, Omar Aziz, encaminhar, por solicitação do senador Humberto Costa, ao Ministério Público do Distrito Federal, a investigação das contradições no depoimento do ex-secretário especial de comunicação da Presidência da República, Fabio Wajngarten. Os senadores têm remontado, passo a passo, os caminhos traçados pelo governo Bolsonaro que conduziram o país ao atual estado de coisas trágicas.
Para enfrentar o problema de fundo é necessário de fato que os parlamentares busquem a resposta de porque o presidente se negou a comprar vacinas, investiu em medicamentos sabidamente ineficazes e em discursos para minimizar a pandemia e atacar o isolamento social. Entender os motivos reais e subjetivos torna-se imprescindível para desmontar esse processo.
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Se quisermos ter alguma chance de deter o rumo das coisas, crucial desativar o mecanismo que cria cortinas de fumaça para ligar a realidade à ficção. Isso porque o mundo do bolsonarismo, dentro e fora do governo, sobrevive de discursos estapafúrdios e, não raro, caricatos, com conteúdos e informações falsas que rapidamente são disseminadas. De igual modo, as intenções reais do presidente ficam subjacentes ao falatório, inclusive para a necessidade de que sejam negadas.
Além de todas as manifestações públicas, a revelação feita pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, em seu depoimento à CPI no último dia 04 de maio, de que, ao visitar um hospital de campanha em Águas Lindas, no Estado de Goiás, em abril de 2020, Bolsonaro teria dito: “Vamos logo contaminar todo mundo”, oferece uma privilegiada demonstração da expectativa do presidente da República sobre os caminhos e consequências prováveis - e por ele aceitáveis - da pandemia no Brasil.
Imunidade coletiva
A perspectiva da imunidade coletiva, também chamada de imunidade de rebanho, prevê a contenção do vírus quando grande parte da população estiver protegida, quando o percentual de imunizados impede a circulação do vírus e, portanto, protege também os não vacinados. Segundo os pesquisadores, seria alcançada quando acima de 70% da população tivesse recebido suas doses da vacina, percentual estimado com base na taxa de transmissão da covid-19.
Ocorre que biologicamente os anticorpos também podem ser adquiridos pela infecção natural. Uma expectativa que, para ser atingida, geraria milhões de mortes. Praticada deliberadamente como política pública seria uma necropolítica, para usar o conceito filosófico do professor camaronense Achille Mbembe. Como crime, seria um genocídio, extermínio deliberado de parte de seu próprio povo.
Estima-se que se as medidas de isolamento e contenção não tivessem sido decretadas por governadores, em contraposição a Bolsonaro, a imunidade coletiva representaria hoje mais de um milhão e duzentas mil vidas ceifadas pela covid-19.
A possibilidade de conclusão dessa tese, que já ganha contornos óbvios nas inquirições feitas pelos senadores de oposição a atuais e antigos asseclas de Jair Bolsonaro, de que ele queria produzir imunidade de rebanho pela contaminação pelo vírus, é de tal modo avassaladora, que elevaria a degradação de nosso sistema político a uma potência inimaginável.
Significa que o Brasil elegeu não apenas uma figura medíocre e autoritária, sem qualquer projeto de nação. Não somente um indivíduo que não demonstra qualquer dignidade no trato com a democracia, mas um algoz, capaz de produzir deliberadamente uma quantidade imensa de dor e desespero, condenando milhares de inocentes à morte.
Mais que um ditador, um perverso. Não um mau gestor, mas um genocida.
*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo