No Brasil, em média, um estudante de colégio particular consome mais produtos ultraprocessados, aqueles com alta quantidade de açúcar, sal e gordura, do que um aluno da rede pública de ensino.
É o que mostram duas pesquisas realizadas pelo Grupo de Estudos, Pesquisas e Práticas em Ambiente Alimentar e Saúde (GEPPAAS), do Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Segundo a pesquisadora e docente Larissa Loures, coordenadora dos projetos, os estudos constataram que aproximadamente 30% das calorias consumidas por crianças e adolescentes de escolas particulares correspondem a produtos ultraprocessados repletos de realçadores de sabor e texturizantes.
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Salgadinhos, bolachas e outros que contém apenas derivados dos alimentos em sua forma natural, já que foram completamente transformados pela indústria com ingredientes nocivos à saúde.
Um dos fatores preponderantes para que o cenário seja diferente nas escolas públicas é a existência do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), previsto na Lei 11.947.
A política, criada em 2009, garante o acesso a uma alimentação escolar nutritiva e balanceada para todos os alunos matriculados na educação básica da rede pública por meio de parcerias locais com agricultores familiares.
“Quando a escola oferece a alimentação de qualidade provinda de alimentos in natura minimamente processados e com cardápios elaborados por nutricionistas, crianças e adolescentes estão protegidos da avalanche dos alimentos ultraprocessados”, afirma Loures, em entrevista ao programa Bem Viver, da rádio Brasil de Fato.
A pesquisadora critica o fato de o programa ser alvo constante de cortes orçamentários, comprometendo sua efetividade, em meio a ofensivas da indústria, que pressiona por mudanças no Guia Alimentar da População Brasileira que sejam favoráveis ao setor.
Loures explicita a necessidade de uma regulamentação mais rígida nas escolas para frear os ultraprocessados e impedir o acesso a refrigerantes e outros produtos causadores de doenças crônicas.
Organizações da sociedade civil como a ACT Promoção da Saúde, da qual a docente é parceira, defendem uma maior taxação da indústria dos ultraprocessados e dos refrigerantes como uma questão urgente de saúde pública, além e até da criação de um tributo específico.
Isso porque, com o aumento de preço dos produtos, o consumo diminui consideravelmente. Entretanto, mesmo com a pressão inflacionária, o estado brasileiro caminha no sentido contrário.
“Acabamos dando subsídio para esse tipo de empresa, o que não faz sentido. Se for pra subsidiar algo, temos que subsidiar a agricultura familiar, agroecológica, e não essa indústria”, comenta Loures.
Leia a entrevista e ouça o áudio.
Brasil de Fato - Quais foram os achados das pesquisas em relação à qualidade da alimentação que crianças e adolescentes consomem, principalmente no ambiente escolar?
Larissa Loures - São duas pesquisas. Uma com foco no consumo de alimentos ultraprocessados, os alimentos superindustrializados. E essa primeira pesquisa teve como objetivo verificar em que escola essas crianças estavam, se os hábitos alimentares dessas crianças e comportamentos influenciavam no consumo de ultraprocessados.
O que verificamos de maneira geral é que as crianças de escolas privadas possuem um hábito pior em relação às crianças de escolas públicas. Nesse ponto cabe chamar a atenção dessa diferença em termos de políticas públicas.
Sabemos que as crianças das escolas públicas são respaldadas pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), e esse programa tem essa capacidade de proteger as crianças, o que não vemos no ambiente das escolas privadas.
Também verificamos uma associação entre a questão da criança comer em frente a telas e o maior consumo de alimentos ultraprocessados. Consumo excessivo de celular, televisão, computador... são fatores associados ao consumo desses alimentos superindustrializados.
O outro estudo teve como objetivo avaliar comportamentos de saúde e como esses comportamentos se associavam ao consumo de refrigerantes, para entender mais dessas associações.
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Também verificamos que crianças que de uma maneira geral possuem piores hábitos em relação ao estilo de vida, crianças que ficam mais tempo em frente à tela ou crianças e adolescentes que já têm o hábito de consumir bebida alcóolica e de fumar de maneira precoce, também consomem mais refrigerante.
Nesse estudo também verificamos, mais uma vez, que a escola tem um papel fundamental. Esse padrão foi mais frequente nos adolescentes de escolas privadas do que nos adolescentes de escolas públicas.
Também tivemos um achado muito interessante: crianças e adolescentes que normalmente consomem alimentos ultraprocessados não consomem alimentação da escola, o que mostra o papel protetor da escola em relação à alimentação.
Qual foi a metodologia utilizada?
O estudo é uma amostra representativa de adolescentes do Brasil. Trabalhamos com aproximadamente 71 mil adolescentes que estão em 1.247 escolas públicas e privadas de 124 escolas brasileiras.
Os dados analisados é do Estudo de Risco Cardiovascular em Adolescentes (Erica). Fizemos uma análise desses dados e trabalhamos com o recordatório de 24 horas, quando perguntamos para o adolescente o que ele comeu nas últimas 24h. E a partir desse registro fazemos a análise tanto do consumo de refrigerante quanto de alimentos ultraprocessados.
Íamos até as escolas, coletávamos os dados e os adolescentes respondiam as perguntas.
Então, essa realidade vai contra o que está previsto no Guia Alimentar da População Brasileira? Qual o risco para a saúde?
Infelizmente, verificamos que aproximadamente 28% das calorias diárias que os adolescentes consumiam provinham de alimentos ultraprocessados. É um percentual que chama atenção e não está em consonância com o Guia, que fala que precisamos reduzir ao máximo o consumo desses alimentos.
E na outra ponta, obviamente, esperamos que as pessoas e, principalmente os adolescentes, tenham um maior consumo de alimentos in natura, minimamente processados.
De preferência, alimentos sem agrotóxicos, provindos da agricultura familiar. É o que esperamos, mas infelizmente não encontramos isso ao analisar esses dados.
E o próprio Guia foi alvo de ataques no último período, certo?
Recentemente o nosso Guia sofreu alguns ataques, muito em função dessa recomendação de reduzir o consumo de alimentos ultraprocessados. Mas ele traz diversas outras informações que são preciosas para a população brasileira.
Quando pensamos nessa questão dos alimentos, in natura e minimamente processados, estamos dizendo que precisamos consumir mais frutas, legumes, verduras, arroz, feijão, o que já faz parte da nossa cultura alimentar.
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Temos que pensar que o Guia não fala só dos alimentos ultraprocessados, fala também da importância de tirar as telas no horário do almoço e prestar atenção na nossa comida, tentar fazer uma refeição em um local calmo. Existem outras questões.
Mas, tivemos esse retrocessos. A indústria de alimentos atacou o Guia nessa ponta em relação à extensão e grau de processamento, principalmente, dos alimentos ultraprocessados. Não podemos deixar isso acontecer.
É nosso dever informar a população o quanto o Guia é importante e o quanto o PNAE é importante. É nosso papel da academia também contribuir com essa comunicação em relação à saúde pública.
As organizações de agricultores denunciam que o PNAE tem enfrentado um desmonte nos últimos anos, com redução da aquisição de produtos dos agricultores. Quais são as consequências dessa política?
Assim como o Guia Alimentar é uma preciosidade, todas as conquistas em relação ao Programa Nacional de Alimentação Escolar são uma bandeira em relação ao Brasil, que serve como referência.
Quando pensamos nesse desmonte, em toda a questão das verbas, ficamos preocupados. Temos vivido esse cenário da pandemia, esse retrocesso em relação à fome, de crianças que dependiam desse programa para comer estarem sendo afetadas em termos de segurança alimentar e nutricional.
Não faz sentido algum esse programa ser atacado, sofrer essa restrição em relação às verbas. Ainda temos uma população que precisa muito dele. E mesmo se não pensamos só nessa questão da fome, mas pensamos no PNAE como proteção para doenças crônicas, também pensamos nisso.
Quando a escola oferece a alimentação de qualidade provinda de alimentos in natura minimamente processados e com cardápios elaborados por nutricionistas, essa criança e adolescentes estão protegidos da avalanche dos alimentos ultraprocessados.
Realmente é inadmissível essa questão do boicote ao PNAE.
Como frear o consumo desses alimentos? Quais ações têm se consolidado como medidas eficazes para isso?
Agora precisamos falar de assuntos que são assuntos caros. Em relação a frear os alimentos ultraprocessados, não tem outra forma se não regulamentações fortes.
Quando falamos disso, estamos falando realmente de proibir esses alimentos no ambiente alimentar escolar. E também implacar, no mínimo, uma lei nacional em relação ao consumo de refrigerantes nas escolas. Ou seja, proibir esse tipo de bebida, uma bebida açúcarada que comprovadamente faz mal à saúde, dentro do recinto escolar.
Precisamos falar de regulamentação na escola e da tributação em relação aos alimentos ultraprocessados, em relação ao refrigerante.
Assuntos quem em um primeiro momento parecem caros, mas que já provaram que, no futuro, há uma economia em termos de indicadores de saúde.
Quando conseguimos tirar esses alimentos do ambiente escolar, de alguma forma promovemos uma alimentação adequada e saudável, promovemos saúde e, consequentemente, temos crianças e adolescentes mais saudáveis.
A lógica, então, é fazer com que a indústria dessa chamada comida-porcaria paguem mais pelos danos que vão causar à saúde pública?
Exatamente. Eu falo que é um assunto caro porque aqui no Brasil ficamos na contramão disso. Acabamos dando subsídio para esse tipo de empresa, o que não faz sentido. Se for pra subsidiar algo, temos que subsidiar a agricultura familiar, agroecológica, e não essa indústria.
Edição: Vinícius Segalla