Coletivos e entidades engajadas na luta antimanicomial vêm intensificando suas ações políticas desde dezembro de 2020, quando o Ministério da Saúde sinalizou cortes em programas de saúde mental, durante reunião com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e as Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).
A proposta do governo era de revogar cerca de 100 portarias sobre o tema editadas entre 1991 e 2014. Mas o Ministério declinou da decisão após pressão dos movimentos ligados à área.
Tais mudanças, na prática, desarticulariam a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que compreende estratégias terapêuticas baseadas nos direitos humanos, conquistados a partir da reforma psiquiátrica. Embora a tentativa de revogação das portarias não tenha se efetivado, as entidades e os coletivos ressaltam a importância de defender a Política Nacional de Saúde Mental.
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O movimento de reforma psiquiátrica no Brasil
Katarina de Lima Fernandes, psicóloga, redutora de danos e militante do Coletivo Baiano da Luta Antimacomial (CBLA), explica que, no Brasil, o movimento de reforma psiquiátrica surgiu, inspirado no movimento antimanicomial da Itália, a partir da indignação de trabalhadoras/es da saúde mental com os contextos desumanos, violentos, insalubres e torturantes os quais trabalhavam.
“Surge o movimento dos trabalhadores, que começam a se organizar em encontros e que reverbera em uma aglutinação dos protagonistas da própria luta, usuárias/os dos serviços e seus familiares. Em um contexto ainda de ditadura militar, anos 70/80, mas com o bojo das lutas pela Reforma Sanitária e redemocratização do país”, explica.
A psicóloga fala do Manifesto de Bauru, uma carta de 1987, escrita durante o Encontro do Movimento da luta antimanicomial, que fez 30 anos em 2017. “O Manifesto de Bauru traz todos os princípios norteadores, pautados em luta pela liberdade de todas as pessoas, em todos os sentidos, que é para além de hospitais psiquiátricos, mas sobre a cultura manicomial tão naturalizada em nossa sociedade. O Manifesto se coloca contra qualquer forma de discriminação, mercantilização da doença e reafirma a necessidade de reformas estruturais em toda sociedade para que verdadeiramente seja livre de manicômios. E institui também o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, 18 de maio”, pontua.
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Organização da luta antimanicomial na Bahia
Na Bahia, há um histórico importante de organização da luta antimanicomial, como explica Katarina. “Temos diversos movimentos organizados que fazem parte da Rede Nacional Internúcleos da Antimanicomial - RENILA, como a AMEA - Associação Metamorfose Ambulante de usuárias/os e familiares da saúde mental -, o Coletivo Baiano da Luta Antimanicomial - CBLA, o Núcleo de Estudos pela Superação dos Manicômios - NESM, Associação Papo de Mulher”, detalha.
“Atualmente, estamos cada vez mais organizadas no sentido de reunir forças coletivas em nossos grupos e em uma frente ampla na Bahia, que estamos convocando em Defesa da Rede Substitutiva, devido ao cenário de retrocessos do Governo Federal, bem como buscando interiorizar e reunir nossas pautas no estado, a fim de implementar o Plano de Desinstitucionalização da Bahia, que exige desde o fechamento de hospitais psiquiátricos ainda vigentes, como a implantação de Serviços Residenciais Terapêuticos para acolher pessoas que estão em condições asilares ainda nesses Manicômios. Além de implantação em CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) em diversos municípios, progressão de CAPS II para CAPS III, que possui caráter 24 horas”, relata.
Marlene Costa da Silva, 61 anos, faz parte da Associação Papo de Mulher e conta que chegou ao coletivo por meio de um convite das coordenadoras, Helisleide de Bonfim e Angélica Santos. Marlene diz que se motivou a fazer parte do Papo de Mulher quando descobriu qual era o propósito do coletivo de mulheres feministas da Luta Antimanicomial.
“Eu observo essa necessidade há muitos anos, eu tenho na minha família um irmão com problemas de saúde mental, com esquizofrenia, bipolaridade e TOC. Sofri muito quando vi, alguns anos atrás, ele sendo internado nesses manicômios. Era um horror, um choque para a família e a gente imaginava o quanto também era para ele”, relata.
A militante reforça que se preocupou quando viu muito sofrimento não só de seu irmão, como de muitas mulheres e homens. “Com o passar dos anos, eu fui observando que era muito mais mulheres que eram presas nesses lugares, que sofriam abusos de todas as maneiras que a gente imagina, isso me doeu e dói muito até hoje, só em pensar e imaginar acontecendo um retrocesso desses, já me machuca demais, porque não vivi pessoalmente, mas eu vivi vendo outras pessoas”, relata.
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Vida livre e sem violência
Na contramão da lógica manicomial, que aposta na internação como principal modo de tratar, Katarina conta que a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) representa uma conquista para todo o nosso povo brasileiro.
“A partir da Rede substitutiva, novos paradigmas clínicos, ético-políticos e culturais começaram a ser valorizados e trabalhados. A lógica do acompanhamento em território é chave, pois muda a perspectiva do isolamento, do distanciamento que se pautam os hospitais psiquiátricos ainda hoje. Além da ampliação do olhar sobre as pessoas, para além das suas expressões da loucura, elas podem e devem ser vistas de forma singular em sua complexidade, em respeito às suas histórias, trajetórias, valores e desejos”, explica.
Ela diz, ainda, que a RAPS não traz apenas uma forma de cuidado, como o manicômio é invasivo, propondo o dito cuidado com prescrição de medicações para suspensão dos sintomas. “Na RAPS, seja na Atenção Básica, nos CAPS (Centros de Atenção Psicossociais), o trabalho é multiprofissional e interdisciplinar, os saberes se complementam e são construídos com as pessoas, não para elas, a partir do que se avalia como melhor para elas", explica.
De acordo com a psicóloga, a RAPS proporcionou maior organização de usuárias/os, familiares e trabalhadoras/es, que cotidianamente sustentam o desafio de um cuidado implicado, humanizado, pautado nos direitos humanos e na liberdade. “A RAPS representa para o povo uma oportunidade de vida, que não seja o cárcere ou a violência, seja na loucura e no uso de drogas a partir do paradigma da Redução de Danos”, conclui.
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Marlene Silva acredita que o modelo de atenção à saúde mental, no momento, não está na perfeição, mas que este é o caminho. “É um caminho, porque existe uma necessidade de melhora, a nossa luta é exatamente essa, e vem sendo abraçada por muita gente, há muitos anos, em busca da melhoria. Quando chegou o momento da criação dos CAPS, o objetivo é tirar as pessoas a realidade da internação nesses hospitais psiquiátricos, que nunca deveria ser primeira opção, porque antes disso tem o acolhimento, com amor e carinho, da família acolher, em clínicas como CAPS, onde uma equipe que trabalha, inclusive alguns CAPS já têm educador físico, assistente social, psicólogo e terapia ocupacional. Então, há todo um trabalho terapêutico feito, em várias e várias recuperações, são ensinamentos, são palestras, para ensinar os usuários o cuidado pessoal”, ressalta.
Desmonte das políticas públicas
Sobre as tentativas de desmonte da política nacional de saúde mental, Marlene diz que não é uma novidade, mas é chocante. “Olha, não vou dizer que é uma novidade. É um governo que não respeita os direitos humanos, infelizmente. A gente não pode aceitar. Nós não vamos abrir guarda, não vamos abrir guarda de jeito nenhum, porque as coisas podem acontecer na calada da noite, como diz o ditado, e a gente está de olho aberto e atento", reforça.
“A redução de danos, para mim, é um dos principais trabalhos feitos pelos CAPS, e eu acho que esse é um dos melhores e maiores tratamentos que a saúde mental realmente precisa. Não é que seja só isso, é necessário algumas medicações para alguns pacientes sim, mas não deixar os pacientes totalmente dopados e inertes”, finaliza Marlene.
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Fonte: BdF Bahia
Edição: Elen Carvalho e Camila Maciel