“O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira.” O tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), neste domingo (17), é relevante e suscita debates em diferentes áreas do conhecimento. Essa é a avaliação do psicanalista Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), em entrevista ao Brasil de Fato.
O profissional foi convidado pela reportagem a dissertar sobre possíveis linhas argumentativas em torno do tema. No momento da entrevista, não havia sido divulgado o enunciado completo da proposta de redação.
História
"As doenças mentais são uma invenção da Idade Moderna. É quando se associa a doença mental à perda da razão", explica. "Isso levou a loucura a ser considerada um problema que exige métodos de contenção, muitas vezes coercitivos e agressivos, e a desconsideração do louco como um sujeito de pensamento", completa.
Dunker avalia que essa tendência começa a se reverter com Philippe Pinel (1745-1826), considerado por muitos o pai da psiquiatria. "Pinel considerava o louco um cidadão, que portanto poderia recuperar a razão", ressalta o especialista.
Essa novidade não alterou completamente o cenário, em que a loucura passa a ser objeto de discurso "do outro" – médico, psicólogo, psicanalista.
"Assim começa a estigmatização, que se traduz em ideias como a de que o louco não é inteligente, de que a pessoa que tem transtorno mental é perigosa, potencialmente agressiva", completa Dunker. "Por isso é mais fácil dar um diagnóstico de esquizofrenia para alguém que é pobre do que para um rico, porque nesse caso vão se buscar outras palavras, menos estigmatizadoras."
O especialista ressalta que muitas pessoas em situação de rua foram excluídos ou abandonados pela família em decorrência de transtornos mentais, o que dialoga com a possibilidade de revogação da atual política de saúde mental pelo governo Bolsonaro.
Relevância do tema
Para o psicanalista, o tema é relevante, em primeiro lugar, porque a estigmatização é um obstáculo à implementação de políticas de saúde mental.
"Ela produz um afastamento, um recuo, que prejudica o processo de vinculação e subjetivação. Isso também existe em relação às doenças orgânicas, mas é ainda pior [nas doenças mentais] porque atua na gênese dos processos mentais", observa.
"Ela causa um sentimento de menos valia, recusa de reconhecimento, dificuldade para conseguir emprego, desconfiança. Isso tudo é muito ruim para quem já está vulnerável do ponto de vista psíquico."
Dunker também chama atenção para possíveis paralelos entre o tema da redação do Enem e a pandemia do novo coronavírus. "Porque, em tese, o isolamento aumentou muito o nosso sofrimento, e indiretamente os transtornos mentais", explica.
O psicanalista ressalta a importância da atual política de saúde mental e explica o que está em jogo: "O risco é voltarmos para um momento hospitalocêntrico, baseado na internação, no silenciamento dos transtornos mentais, na contramão de uma reforma antimanicomial que visava contornar estigmas históricos em saúde mental."
A segunda etapa de aplicação da prova do Enem está prevista para o dia 24, com 45 questões de Matemática e suas Tecnologias e 45 questões de Ciências da Natureza e suas Tecnologias (Biologia, Química e Física).
Edição: Leandro Melito