Em uma noite de sábado do ano de 2016, debatíamos o filme "As Sufragistas" lançado no ano anterior. No momento em que discutíamos o direito ao aborto, uma das convidadas lançou a seguinte questão: “e o caso das meninas de Guarus?".
Minha resposta refletiu a condição de uma estrangeira que chegara em 2010 e sabia pouco sobre os fatos: “como alguém que não é de Campos dos Goytacazes (RJ), eu pergunto à essa plateia se alguém aqui presente não sabia o que acontecia, não sabia do caso dessas meninas?”.
O desconforto foi evidente, o silêncio constrangedor.
Em 2018, conversando com uma juíza na capital, soube da complicada situação de que 17 juízes de Campos se declararam impedidos de atuar no caso. E isto revela muito sobre o judiciário brasileiro, sobre o caso Mari Ferrer, sobre o caso Robinho e seu problema com o movimento feminista. Sobre o cotidiano de violações, mortes e injustiças sofridas por mulheres no país.
Estou trabalhando neste texto desde o início de ano. A dificuldade na finalização dele ocorre pelo conteúdo encontrado, pelo medo em relação ao que o caso explicita e principalmente, pela impunidade posta em tela com o fato de que vários envolvidos estão em liberdade a atuantes na sociedade civil local.
Na memória da população campista, o caso mostrou exatamente a diferença entre o poder e a condição de mulheres e crianças que são objeto de cruel desumanidade de agentes públicos, comerciantes, empresários, policiais. Figuras que suspendem a lei e agem em redes de associação que não poderiam receber outra classificação que não associações criminosas.
O caso
Em resumo, na cidade de Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, em 2009, a Polícia Civil descobriu um ponto de exploração sexual em um hotel - que funcionava na verdade como um motel. No estabelecimento eram mantidas crianças e adolescentes entre 8 e 17 anos de idade. Escravizadas, viciadas e levadas ao cativeiro. Depoimentos coletados à época dão conta de dois homicídios e ocultação de cadáver.
Essas meninas eram obrigadas a fazer uso de cocaína até que seu nariz sangrasse. Eram trancafiadas e retiradas do cárcere somente para programas em sítios, casas e hotéis da cidade. Levadas a festas com mais de 40 homens para realização de programas. Eram vigiadas por homens extremamente violentos que não teriam receio em levá-las até a morte para impor o terror. Sumir com corpos infantis não parecia um problema.
Meninas de 8 anos perdiam a virgindade com políticos da cidade, policiais, médicos. Pagando uma tabela que ia de R$ 60 a R$ 300 a depender das horas e práticas contratadas.
Levadas de um lado para o outro. Diariamente dopadas, desmaiadas e mesmo assim, abusadas. Seus serviços eram oferecidos nos classificados de jornais locais e contratados inclusive, por homens em passagem pela cidade. Homens com a tatuagem da família no braço. Meninas do Espírito Santo, de Minas Gerais, de Custodópolis. E “clientes” que ignoravam o inferno vivido pelo grupo de crianças residindo em uma casa com portas e janelas trancadas com cadeados.
Programas pagos de todas as formas, até com material de construção ao agenciador que seguia aumentando domínio e patrimônio. Donos de lojas e supermercados também contratavam os programas. Entravam e saíam de hotéis sem nenhum registro na portaria (ao que parece, caso necessário, telefones para programas eram fornecidos nestes estabelecimentos).
Homens que guardavam em seus celulares cenas de sexo entre mulheres e crianças de dois anos. Programas pagos com lanches, despesas pessoais, ingressos. Fantasias... roupas de colegiais, fantasias... Como o caso iria adiante com agentes do Estado enviando listas que possibilitavam ameaça aos familiares que fizessem denúncias? Como haveria punição?
Investigações
Em 28 de agosto de 2013, a ex-vereadora Odisseia Carvalho (PT) compareceu à Câmara dos Deputados para depor na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a apurar denúncias de turismo sexual e exploração sexual de crianças e adolescentes, presidida pela deputada Erica Kokay (PT).
A transcrição de 42 páginas apresentava o caso que ficaria conhecido nacionalmente como “Meninas de Guarus”. A sessão tratava de acusação “acerca de denúncias que atestam duplo homicídio, utilização de drogas e, ao mesmo tempo, cárcere privado, em função de uma rede de exploração sexual que existe – ou existia – nesse município”. Na sessão ainda estavam presentes os então deputados e deputadas, Keiko Ota (PSB), Antonia Lúcia (PSC), Jean Wyllys (Psol) e a relatora, deputada Liliam Sá (PROS).
Essa rede de pedofilia operava, por óbvio, com colaborações múltiplas para manutenção dessas meninas em situação de cárcere privado. Sequer era conhecido naquele momento o paradeiro das mesmas após uma denúncia feita ao Conselho Tutelar por uma declarante de paradeiro igualmente desconhecido. O medo da denúncia corresponde ao lugar social dos envolvidos. Policiais, políticos conhecidos, figuras públicas locais.
Importante informar que Guarus é uma região de Campos com alta densidade populacional, onde residem negros e negras, em condições sociais populares ou na linha da pobreza. Regiões com presença de conflitos urbanos constantes motivados principalmente pelas disputas do tráfico de drogas.
Ao mesmo tempo, grande parte da força de trabalho da cidade desloca-se diariamente desses bairros para os setores mais variados, do comércio às instituições de ensino, e trabalho doméstico. Embora o caso tenha ficado conhecido como "Meninas de Guarus", também estavam envolvidas meninas de outros estados, como o Espírito Santo.
A relatora, deputada Liliam Sá, apresentou em sessão a mesma dúvida que eu apresentaria alguns anos mais tarde naquele debate: “por que o sigilo e por que abafaram o caso dentro do município? É isso que nós queremos entender: se foi uma coisa notória, se o próprio Conselho Tutelar disse que há mais de 600 casos notificados de pedofilia no município de Campos dos Goytacazes”.
Existiria um acobertamento tácito do caso?
O fato é que esse acobertamento tinha base no estranho desaparecimento de registros fundamentais para investigação. E ainda em decorrência de depoimentos prestados à alguns policiais, existiriam atos de extorsão quando o nome de empresários locais começaram a aparecer. Em resumo, chantagem por um lado e ameaça de esquartejamento dos filhos, caso a quadrilha fosse denunciada, por outro. O medo é compreensível.
Durante as investigações, o fechamento de uma casa de shows, do filho de uma importante figura pública na política local, ilustraria bem o quanto a rede era estruturada. Em documentos consultados, o local era utilizado para venda de drogas e proporcionava situações de exploração sexual. Um dos indiciados, que teria machucado gravemente uma das meninas, tinha cargo de confiança no governo municipal.
No cativeiro eram mantidas meninas e meninos. Ao voltar ao número de casos, a relatora Liliam Sá, demonstrara estarrecimento pelo fato de em uma cidade com 480 mil habitantes, existirem registros que informavam 600 casos de pedofilia. Erika Kokay observara que o desaparecimento da denunciante e de sua família, os recorrentes abusos sem efetiva resolução, mostravam os efeitos da impunidade: a naturalização do crime e o temor.
A CPI da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes teria vindo ao Rio de Janeiro para cobrar um posicionamento das autoridades. Pelo então prefeito do Rio, Eduardo Paes (DEM), sequer foi recebida. As reivindicações foram apresentadas ao vice-governador. Nenhuma iniciativa concreta foi tomada. Ou seja, um delegado transferido, um Ministério Público omisso, executivo e grande parte do legislativo local acovardados (além é claro, de alguns cúmplices).
O fato de alegações chegarem a vereadores de Campos, como o publicamente citado Nelson Nahim (PSD), e parte da Câmara de Vereadores posicionar-se afirmando que as alegações não eram verdadeiras, colabora para entendermos como esta rede das “ Meninas de Guarus” entranhava-se em todos os níveis da sociedade campista. Na política, na economia, na justiça.
Em novembro de 2009 o vereador Nelson Nahim declarava publicamente que “alguém poderia estar se passando por ele”. Em dezembro de 2009 o senador e presidente da CPI da pedofilia, Magno Malta (Golpista) (PR/ES) declarava em rede nacional, no programa do Datena, que iria a Campos. Apuraria com sua vinda, a rede de pedofilia na cidade. Em 2012, o caso amargava um solene silêncio.
Em março de 2013, em decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STF), Leílson, o único preso até então, foi inocentado da acusação. Na audiência pública realizada em maio daquele ano, em Campos, com a ida de deputados da Assembleia Legislativa do Estado do Rio (Alerj) à cidade, presidida pelo então presidente da Comissão de Direitos Humanos, Marcelo Freixo (Psol), não havia nenhum representante do Ministério Público. O que causou estranheza aos presentes, pela gravidade do caso.
Violação estrutural
A rede de exploração sexual tratada pela CPI na Câmara de Deputados, em 2013, ainda ressaltava o envolvimento de políticos no Amazonas e em Santa Catarina. Outras cidades, outras pessoas, as mesmas formas de exploração.
O que nos leva à uma conclusão: as violações contra mulheres, meninas e meninos no Brasil são estruturais.
Em 2016, o STF concedeu o benefício da liberdade a seis acusados. Entre os nomes divulgados estão Gustavo Ribeiro Monteiro, Renato Pinheiro, o ex-vereador Marcos Alexandre dos Santos Ferreira e Cleber Rocha da Silva. Os internos cumpriam pena na Penitenciária Bandeira Stampa, em Bangu, no Rio.
Os casos de estupro, abuso sexual de crianças e morte de mulheres seguem como indicadores desse quadro de violação cotidiana. Em 1976, Ângela Diniz fora assassinada com 4 tiros de pistola por Doca Street em Búzios, no Rio. Ele não aceitava o fim do relacionamento que começara três meses antes. No julgamento, a defesa de Doca alegou “legítima defesa da honra”. Tese aceita para absolvição do assassino que teria “matado por amor”.
Ou seja, não é recente esta forma de tratamento do judiciário brasileiro. Esse caso é fundamental para a luta feminista no Brasil. No segundo julgamento, já em 1981, com forte atuação do movimento de mulheres e da opinião pública, Doca foi novamente a julgamento e então, condenado a 15 anos de prisão. O slogan “quem ama não mata” tornaria-se uma das principais bandeiras de luta pela vida das mulheres.
No caso Mari Ferrer é fundamental que o Brasil seja denunciado em cortes internacionais dos Direitos Humanos por graves violações já tipificadas na Constituição de 1988.
Para concluir, essas violações são inseparáveis de um contexto de ataque a democracia. O Brasil conta com importantes documentos como a Recomendação Geral 35 sobre violência de gênero contra as mulheres do Comitê para eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher. O documento faz parte da série de tratados internacionais de Direitos Humanos.
O trecho do julgamento no qual Mariana Ferrer é humilhada recorrentemente pelo advogado de André de Camargo Aranha explicita a prática de misoginia desferida pelo advogado criminalista catarinense Cláudio Gastão da Rosa Filho. Sua conduta deve ser apurada.
Apoiador do atual presidente da República, o advogado acha natural que Bolsonaro nada entenda de economia. É compreensível que nesse circo dos horrores, um advogado que pouco entende de ética e um promotor que defende a tese do estupro culposo representem a forma mais bem acabada do que vivemos desde a eleição de 2018.
Fundamentar a sentença de absolvição com base no princípio in dubio pro reo (mesmo com todas as provas coletadas) é jogar a definitiva pá de cal que faltava sobre o judiciário brasileiro. Ou seja, instituir o machismo, a misoginia e a violação de mulheres como modus operandi do governo Bolsonaro.
*Professora do Departamento de Sociologia da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e vice-presidente da Associação dos Docentes da Universidade Estadual do Norte Fluminense (
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Mariana Pitasse