Para aqueles que nunca estiveram no norte fluminense do Estado do Rio de Janeiro e apenas ouviram falar sobre os valores relativos às participações especiais advindas dos royalties do petróleo, a passagem pela cidade de Campos dos Goytacazes pode causar surpresa.
Para apresentar um recorte temporal, a maior cidade do interior do estado em extensão territorial e uma população em torno de 500 mil habitantes, foi beneficiada pelos royalties entre 2017 e 2019 com valores que batem a casa de um bilhão de reais. Ao que tudo indica, quanto maior o volume de royalties transferidos, menor tende a ser o crescimento econômico do município, como observa o economista Fernando Postalis. Como a queda brusca da Participação Especial no repasses destes recursos poderia afetar os municípios fluminenses durante uma pandemia? Ou melhor, como a má aplicação dos recursos será sentida quando o município precisa dar respostas à população?
Para responder esta pergunta é necessário enfatizar que toda a falta de investimentos prioritários em áreas como saúde, emprego e assistência social ganha relevo diante da urgência com que a covid-19 se espalha pelo Brasil e o mundo. E neste sentido, Campos dos Goytacazes, onde está localizada a Bacia de Campos, grandes universidades públicas, como a Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), a Universidade Federal Fluminense (UFF) e o Instituto Federal Fluminense (IFF), representa um caso ótimo para pensar gestão de recursos e desigualdade social. Para terminar este cenário, a cidade é composta por uma população negra cujos antepassados trabalharam na agricultura da cana e em usinas. Atualmente, Campos tem aproximadamente 10 assentamentos rurais.
Em tempos sombrios como os vividos, torna-se fundamental a coordenação das ações pelo poder público. Mas aqui, os médicos acabam de sair de uma greve e localidades como o distrito de Travessão, que conta com uma população de aproximadamente 30 mil pessoas, agonizam sem estes profissionais.
Agentes de saúde exaustos na linha de frente de combate relatam trabalho em unidades sem água para limpeza das mãos. As condições físicas de hospitais em uma das áreas mais populosas da cidade, Guarus, é filmada e denunciada por usuários do SUS como grave muito antes desta pandemia. Os casos de trabalhadores sem renda se multiplicam agudizando cenários de fome e vulnerabilidade. Devemos observar que este cenário pode ser utilizado para pensar boa parte das cidades no país, sem leitos de hospitais e vivendo o combate ao coronavírus como um desafio cotidiano.
Quais seriam as marcas da Prefeitura de Campos na resposta aos problemas apresentados? Para exemplificar as ações dos gestores locais, será apresentado um recorte importante: a população em situação de rua. Esta população tem crescido nos últimos anos ocupando a principal praça da cidade, rodoviária e espaços públicos espalhados por bairros e distritos. Mesmo com este crescimento, registros apontam que o número oscila entre 160 e 228 pessoas. Parte desta população foi abrigada provisoriamente em um hospital desativado da Santa Casa, próximo aos locais onde circula.
Desde o começo dos casos e do agravamento da pandemia no Brasil, um grupo, do qual faço parte, formado por servidores públicos, professores, estudantes e trabalhadores em geral, constituiu um Comitê de Solidariedade. Entre as tarefas desempenhadas por este Comitê, está a fiscalização do cotidiano no local onde a população de rua foi abrigada, pois há uma compreensão de que sua vulnerabilidade merece atenção especial do Estado e da sociedade civil.
É possível afirmar que dois traços se destacam na ação da prefeitura: o improviso e a desconfiança. Em nossa primeira visita ao local, fomos recebidos por um assessor do prefeito Rafael Diniz, responsável pela estrutura logística do espaço. Não foi possível filmar nem fotografar as dependências que recebiam naquele momento, pintura, reparos e equipamentos.
A justificativa apresentada foi que “alguém poderia usar politicamente as imagens”. A ala de isolamento não estava terminada e até a data de hoje, permanece fechada com a orientação de que se constatado algum sintoma de coronavírus, o morador será encaminhado à um hospital. Ou seja, um improviso perigoso. Mais perigoso porque a circulação entre dentro e fora é feita sem uso de máscaras. Uma vez que eles saem durante parte do dia, deveriam usá-las. Além disto com a queda das temperaturas em abril, e sendo o local relativamente úmido, não é desejável que esta população permaneça dormindo em colchonetes rentes ao chão. Seria importante a existência de mais álcool gel dentro do hospital. Encontramos apenas um, próximo a uma copa ao lado dos banheiros. As imagens divulgadas pela prefeitura mostram pessoas almoçando coletivamente em um espaço fechado e sem máscaras. E sem o distanciamento protocolar estabelecido pela Organização Mundial de Saúde.
Nossa presença tem gerado visível desconforto principalmente pela interação promovida com esta população. Algumas reclamações constantes por parte dos abrigados relatam o minguado café da manhã, a ausência de médicos e de atividades para “passar o tempo” (e combater a ansiedade). Como resposta às falas o poder público faz notas desmentindo o Comitê e esta população. Mas não apresenta um quadro com nome de médicos responsáveis, nutricionistas ou o cardápio das refeições. O que resolveria o problema.
Enquanto isto, os moradores abrigados reclamam da ausência de chinelos e outros itens, lamentando a necessidade de ter de voltar às ruas para conseguir algum dinheiro. E denunciam a chegada constante de doações que permanecem trancadas em uma sala próxima da recepção. Pudemos entrar nesta sala e lá estavam doações de chinelos, roupas e itens de higiene. O descrédito a que esta população é submetida, a falta de escuta, a ênfase em termos como “caridade” e “fazer o bem” ilustram como o poder público vê os pobres em geral e a população em condição de vulnerabilidade em particular. Só reduzindo indivíduos com histórias de vida complexas a uma horda indistinta, torna-se possível este descrédito. Naturalizam-se representações do grupo como “mentiroso” e “ingrato”.
Em nossa escuta soubemos de pessoas que estão na rua por não conseguirem acessar uma pensão deixada por um familiar. Outros têm clareza de um quadro de abuso de álcool e buscam tratamento, outros possuem casa mas seus laços familiares estão fragilizados, outros foram postos para fora de casa quando se tornaram um peso no orçamento familiar.
Por parte dos agentes públicos, sobra hostilidade e falta transparência. Mas há uma razão para estas reações. E não é apenas o fato de estarmos em ano eleitoral. Analisando este quadro e as formas de interação vemos que estes gestores expressam grande dificuldade com os expedientes democráticos, pontuando seu trabalho como “ doação”, ,”missão”, “fazemos o que podemos”, “eles deveriam agradecer”. É parte do improviso e da rasa compreensão da racionalidade do Estado que em Campos é gerido como uma “expansão da família” e dos grupos formados por afinidade de classe ou crença religiosa.
A agressividade em relação a nossa presença por parte da equipe que trabalha com esta população escancara um problema gravíssimo no Brasil: como a ausência de concursos públicos (ou concursos em número insuficiente) faz destes técnicos e trabalhadores, agentes submetidos ao medo e a variadas formas de assédio por parte de seus superiores imediatos. E esta escala vai do segurança que abre o portão aos secretários municipais. Para uns, este emprego representa o sustento diário tornando-os dependentes desta rede de relações.
Lembro de uma amiga veterinária que foi obrigada a acampar na prefeitura, vestida de rosa em resposta a uma ameaça de perda do cargo que sofria a então prefeita Rosinha Garotinho. E também da proibição do uso de guias de candomblé a quem trabalhasse na Prefeitura. Conheci pessoas com ótima formação escolar que passaram a frequentar denominações pentecostais como forma de acesso a benefícios políticos e materiais imediatos. Em uma solenidade de defesa dos royalties o “povo” era formado unicamente por comissionados da prefeitura que aplaudiam efusivamente todas as falas em uma praça vazia. Mesmo com ônibus gratuitos a população ficou alheia ao evento. Era patético e triste. E a mudança alardeada pelo atual prefeito tem frustrado grande parte de seus eleitores. Expressam a sensação de que viveram um “logro eleitoral”.
Neste momento, os salários pagos na modalidade “recibo de pagamento autônomo” sequer estão em dia. O trabalho é realizado com a promessa da regularização futura. Ou seja, a riqueza dos royalties que poderia produzir uma sociedade menos desigual e mais democrática nesta cidade, só colabora na reprodução de círculos de poder em torno de famílias e grupos políticos pouco afeitos a crítica e a construção democrática. E como resultado, a sensibilidade a qualquer crítica é intensificada pelo medo que amarra todas as relações envolvendo a prefeitura. O medo de denunciar, o medo de contrariar um vereador, o medo do desemprego.
No limite, o medo de tornar-se parte da precariedade estrutural que assola uma economia prestes a viver o julgamento do Superior Tribunal Federal (STF) quanto a divisão dos royalties do petróleo. A Prefeitura de Campos, como grande parte das pequenas cidades do interior do Rio de Janeiro, tornou-se ao longo dos anos recentes, um dos principais empregadores e este dado é um entrave à construção de uma cidade verdadeiramente democrática e com transparência na aplicação de recursos.
Redes sociais e veículos de informação pouco sérios, são utilizados para defesa da gestão Rafael Diniz (PPS), prefeito cuja popularidade encontra-se em queda livre há alguns anos. Ações como o fechamento do Restaurante Popular e a retirada de programas de renda, essenciais aos mais pobres, explicam a rejeição a que tem sido exposto. Em recente inauguração de um centro comercial da cidade com a presença do governador Wilson Witzel (PSC), Diniz foi vaiado, devolvendo à população a frase “estão acusando quem salva o assassinado”. Sua fala em geral ao longo do mandato responsabilizou a administração de Rosinha Garotinho pelos males vividos em Campos. Queixa-se da queda na arrecadação dos royalties mas mesmo com esta queda, as participações especiais ainda possibilitariam um desempenho melhor de sua gestão. Ao mesmo tempo, os investimentos na pasta de comunicação em 2018, atingiram valores superiores a R$ 2 milhões de reais.
Neste quadro, a pandemia tem despertado ações de solidariedade por parte da sociedade civil. E isto é louvável. Mas a prefeitura também tem solicitado doações. Como se o caixa do município precisasse de ajuda para fechar as contas. Recentemente foi lançada uma campanha no mínimo vergonhosa para uma cidade deste porte. A campanha “Amigos da Rua" pretende receber doações de lojistas e sociedade civil. Itens como sabonete, shampoo, condicionador, lençóis e toalhas de banho fazem parte das itens solicitados. Lamentavelmente não existem dados sobre o valor ou itens arrecadados e as destinações. É como se a prestação de contas não fosse necessária em uma pandemia. Dispensa licitação, dispensa explicação, dispensa fiscalização.
Enquanto finalizo este artigo acabo de receber a informação de que nosso acesso ao hospital Manuel Cartucho deveria ser autorizado pela atual secretária de Desenvolvimento Humano. A justificativa para esta proibição seriam as reportagens veiculadas em mídia local sobre a situação desta população. Nenhuma democracia avança sem fiscalização. Exibir imagens dos residentes no abrigo provisório, utilizá-los para expor um projeto condenado pela falta de diálogo e pela improvisação, não altera o cenário de precariedade constatado. Enquanto não houver trabalho digno e ampliação da experiência de cidadania em Campos, a cidade seguirá sob a sombra de um passado escravocrata.
*Professora do Departamento de Sociologia da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e vice-presidente da Associação dos Docentes da Universidade Estadual do Norte Fluminense (
Edição: Mariana Pitasse