Em São Paulo, uma chuva fina tomou conta do céu trazendo uma sensação úmida ao ar, antes seco. Ao olhar as mensagens em um aplicativo de celular, me deparo com uma nota e um vídeo, que traziam a triste notícia da queda de Comandante Uriel, um dos comandantes da maior guerrilha em vigência na Colômbia, o Exército de Libertação Nacional (ELN).
Imediatamente, minha mente se transporta a milhares de quilômetros e quase posso sentir outra vez a umidade densa do ar e do calor da selva no leito do Rio San Juan, no departamento do Chocó, na Colômbia. Local esse em que conheci Comandante Uriel. E a primeira recordação dele que me vem à cabeça é seu largo sorriso, sempre coberto por máscara nas fotos públicas que circulam pela internet, este espaço que, assim como a selva, também era seu campo de batalha.
Uriel era um entusiasta das novas tecnologias e da comunicação, como ferramentas tão importantes quanto as armas que empunhava. Assim, criava perfis em redes sociais para distribuir suas mensagens, e era um dos poucos do ELN que concedia entrevistas a meios de comunicação.
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Estive no Chocó, na região de atuação de Uriel, em 2018, para visitar uma área da guerrilha. Desde então, as lembranças desses poucos dias que estive entre os guerrilheiros do ELN marcam a minha memória e a minha vida. Agora, dois anos depois, leio as notícias da queda de Uriel por veículos de imprensa, que trazem o anúncio feito pelo presidente colombiano, Iván Duque, que foi até o departamento do Chocó, no último domingo (25), para dar essa declaração. A morte de Uriel foi considerada o maior golpe de seu governo, iniciado em 2018, contra a guerrilha.
À capital do departamento, Quibdó, também se deslocaram o procurador-geral da Nação, Francisco Barbosa; o ministro da Defesa, Carlos Holmes Trujillo; e a cúpula das Forças Militares e da Polícia. "Para ser efetiva essa ordem de captura, foi ordenada a invasão de uma casa localizada na vereda Barranconsito de Nóvita, em Chocó. No marco dessa diligência, ocorre um enfrentamento que resulta na morte do senhor Uriel", declarou o procurador-geral.
Alguns dias após os entusiasmados anúncios de representantes do Estado colombiano, nessa quinta-feira (29), vem a público a nota do ELN homenageando Comandante Uriel, “que entregou sua vida com alta dignidade aos grandes ideais de transformação, justiça social, soberania e futuro da humanidade”.
E é dessa forma que lembro de Uriel, alguém com destacados sentimentos de amor e compromisso com a humanidade, com os espoliados, os maltratados, os miseráveis do mundo. Nas entrevistas que fizemos com o comandante, ele nos pedia que, como jornalistas e militantes, levássemos a mensagem de compromisso com a revolução e de luta do ELN para todo o mundo.
A irmandade entre aqueles que lutam pelo socialismo era uma certeza para Uriel, que pedia para que não os deixassem sós nessa batalha. “Aqui estamos para todos, e assim esperamos que muitos estejam para nós. São bem-vindos”, nos disse, na selva colombiana.
Entre as memórias que tenho do Comandante Uriel, algumas são das conversas descontraídas, de suas frases sobre a luta, seus gestos, sua voz; outras são de sentimentos, da coragem e da rebeldia que ele e os demais guerrilheiros e guerrilheiras inspiravam. Guardo ainda a lembrança dos objetos com os quais nos presenteava, camisetas, fitas coloridas com frases de Che Guevara -- quem dá o nome da Frente Guerrilheira do ELN que ele comandava.
E um desses “regalos” do comandante é um microchip, o qual mergulhei em um pó compacto de maquiagem na volta do território guerrilheiro, com medo de que pudesse ser tomado em alguma abordagem do Exército na travessia pelo rio.
Anos depois, volto a vasculhar as tantas pastas e arquivos do microchip, a maioria deles de músicas revolucionárias, poesias de compromisso com a luta, comunicados e vídeos do ELN, produzidos pelos jovens da Frente Guerrilheira Che Guevara. Junto à força para lutar em armas, estavam também a ternura e a fraternidade entre companheiros de luta demonstrada por aqueles arquivos, pedaços das memórias de Uriel.
Nos abraços de despedida após alguns dias junto aos integrantes da Frente Guerrilheira Che Guevara, imaginava que, possivelmente, nunca mais os veria novamente; ainda que, no fundo, desejasse voltar a encontrá-los.
Agora, quando recebo a notícia que Comandante Uriel se foi, descubro também o seu nome de batismo: Andrés Felipe Vanegas Londoño. Logo recordo os tantos nomes que usamos pela ocasião do encontro em meio à clandestinidade; eu, como Maria, junto aos companheiros de viagem Jorge e Gustavo; em um encontro com os guerrilheiros e guerrilheiras Lucía, Yaneth, Yadira, Emerson, Yesenia e seu cachorro Coronel, e tantos outros “elenos” e “elenas”, que podem também ter caído em combate.
Quando a morte se apresenta diante da luta, esse era o destino. Assim trazia uma das músicas que Comandante Uriel me apresentou como uma de suas favoritas, Del amor y la lucha: “Si la muerte me viene a buscar / De pie me va a encontrar / Aquí estoy forjando mi destino”.
E hoje, Comandante Uriel, lembrando da sua canção, “para llegar hasta a ti, por eso escribo”.
Edição: Luiza Mançano