Em mais um passo da jornada de lutas do povo haitiano, o país caribenho será palco, nesta terça-feira (20), do “Tribunal Popular Contra os Crimes da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah)”. O evento, que ocorre durante todo o dia na capital federal, Porto Príncipe, pretende fortalecer o grito por justiça e reparação para as vítimas das tropas envolvidas na operação.
A missão chefiada pelo Brasil teve início em 2004 e se estendeu por 13 anos, com a retirada total das tropas em outubro de 2017. Três anos depois, a missão ainda é alvo de denúncias por parte da população Haitiana, que espera reparação por parte das Nações Unidas. A iniciativa do tribunal parte de entidades e movimentos populares e tem como foco as reivindicações sociais.
Entre as violações de direitos apontadas pelo tribunal durante a permanência da Minustah no Haiti, estão políticas contrárias ao acesso da maioria da população à educação, ampliação da repressão militar a manifestações populares, crescimento de grupos criminosos organizados como milícias, desrespeito aos direitos de mulheres e crianças, tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual e outros crimes sexuais, além de uma cultura da impunidade como marca do Poder Judiciário local.
“Agora, existem milhares de mulheres com filhos sem pai, milhares de órfãos em uma situação difícil”, ressalta o diretor-executivo da Plataforma Haitiana de Defesa do Desenvolvimento Alternativo (Papda), Camille Chalmers.
Como resultado desses fatores, Chalmers aponta que a instabilidade política também se agravou no país, condicionada à manutenção da condição política e ideológica do Haiti aos Estados Unidos. Ele destaca que o contexto atual do Haiti, com constante insatisfação popular, tem uma relação direta com a atuação dos EUA e defende que se plante uma “consciência anti-imperialista” no país.
“Desde o início, começamos uma campanha para denunciar não somente a natureza dessa ocupação militar, mas também o perigo e a ameaça que isso representava para todos os povos do continente, como o presidente [Jovenel Moïse] e muitas formas de ocupação que, sob o pretexto de manutenção de restabelecimento da paz, estavam executando a agenda imperialista dos EUA”, afirma o diretor-executivo da Plataforma.
Mortes por cólera
O alastramento da cólera, que matou milhares de haitianos desde a chegada das tropas do Nepal à região é uma das pautas principais do tribunal popular realizado nesta terça-feira (20).
Até outubro de 2010 não havia registro de casos da doença. A infecção se proliferaou a partir da chegada de tropas do Nepal que integraram a Minustah. As estatísticas oficiais citam 10 mil mortes provocadas pela doença, enquanto especialistas falam em 50 mil óbitos, como é o caso do epidemiologista francês Renaud Piarroux, que esteve no país para estudar a epidemia.
“Trata-se de uma hecatombe sanitária, de um desastre político e de um escândalo científico. É uma história sórdida, vil, repleta de dores, mortes, injustiças e mentiras”, aponta Ricardo Seitenfus, no livro A ONU e a epidemia de cólera no Haiti. Doutor em Relações Internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra, Suíça, ele esteve no Haiti como representante especial da Organização dos Estados Americanos (OEA) entre os anos de 2009 e 2011.
Seitenfus afirma que a realidade haitiana “foi e continua sendo escamoteada por grande parte de cientistas, da grande mídia internacional, da totalidade dos governos, dos militares a serviço da paz, dos funcionários da ONU e de suas agências, como a Organização Mundial da Saúde (OMS)”.
Outro ponto de realce no cenário nacional é o desgaste do processo eleitoral, alvo de descrédito popular. “De 1990 até 2016, vem aumentando o número de pessoas que não participaram nas eleições, sem que se perceba que o imperialismo e a Minustah tomaram as decisões que deveriam ser do povo”, relaciona Chalmers.
Há estatísticas um pouco diferentes nas fontes relacionadas ao acompanhamento das eleições, mas, de modo geral, os índices mostram participação acima de 50% entre 1987 e 2010, ano em que as eleições foram acusadas de fraude. O percentual era considerado alto para um país onde o voto não é obrigatório. A partir de 2010, a adesão do eleitorado aos pleitos caiu para uma média de cerca de 20%.
Mobilização popular
O evento desta terça também pretende evocar elementos que estimulem outros países a realizarem tribunais populares, como forma de organizar e empoderar a população.
Essas iniciativas miram ainda a sensibilização da comunidade internacional para denunciar os crimes cometidos no país. A ideia é que Brasil, Uruguai, Argentina e Estados Unidos também realizem o seu tribunal, inclusive como forma de ajudar a denunciar os Estados nacionais que enviaram tropas militares ao Haiti.
O Tribunal Popular no país caribenho acontece após a realização do “Colóquio Internacional sobre os Crimes da Minustah no Haiti”, em dezembro de 2019. O evento reuniu dezenas de representantes da América Latina, movimentos e defensores dos direitos humanos que se organizaram para bradar por justiça para as vítimas da missão.
Voltado para a luta contra o imperialismo, o colóquio teve grande ressonância e ajudou a fortalecer as ações de solidariedade e os protestos sociais, que agora ganham um novo passo com a realização do tribunal.
Após o tribunal desta terça, o Haiti também será palco de quatro conferências entre os meses de novembro e dezembro.
Uma delas será a Conferência por Direito à Saúde do Povo Haitiano, a outra trará à tona a questão da água à luz do debate sobre o avanço de empresas de mineração no país. Já a terceira pretende publicizar um balanço com estudos e documentos que tratam dos crimes imputados à Minustah. O quarto evento vai abordar os direitos das mulheres e a violência sofrida pelo segmento durante a missão.
Procurados pela reportagem do Brasil de Fato, a Organização das Nações Unidas (ONU) e o Ministério da Defesa brasileiro não se manifestaram em relação às denúncias de violações de direitos da população haitiana até a publicação da matéria.
Edição: Leandro Melito