Entrevista

Impeachment de Bolsonaro é o querer de uma sociedade que cansou, diz jurista

Cezar Britto comenta quais são as chances e os critérios para que o presidente seja afastado do cargo

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Cezar Britto pede que o processo de impeachment de Bolsonaro seja pautado imediatamente - Reprodução/OAB-DF

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é alvo de ao menos 50 pedidos de impeachment prontos a serem colocados em plenário na Câmara dos Deputados, segundo a Secretaria-Geral da Casa.

O andamento depende de decisão do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que indicou que não pautará nenhum dos processos até que a epidemia por coronavírus se arrefece. Um deles, protocolado no último dia 14, reúne mais de 1 mil assinaturas de movimentos sociais, intelectuais e artistas.

Bolsonaro é acusado por crimes de responsabilidade, como ataques repetidos a populações vulneráveis, ao meio ambiente, descaso no combate à covid-19 e tentativas de romper a harmonia entre os três poderes.

Para se safar do afastamento, o presidente passou a distribuir cargos do governo a pessoas ligadas a partidos do “Centrão”, que reúnem 221 dos 513 deputados federais. Com o agrado, Bolsonaro tenta inviabilizar uma eventual aprovação de um impeachment, que depende de ao menos 342 votos na Câmara.

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A prática foi, inclusive, denunciada pelo senador Major Olímpio (PSL-SP), ex-aliado do presidente. Segundo ele, Bolsonaro “compra partidos” para se livrar do processo.

As acusações, os ritos e as possibilidades foram tema de entrevista do Brasil de Fato com o advogado Cezar Britto, ex-presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, membro da Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e um dos signatários de um pedido de impeachment de Bolsonaro. Veja a seguir:

Brasil de Fato: Por que Jair Bolsonaro deve sofrer impeachment?

Cezar Britto: Porque ele tem cometido reiterados crimes de responsabilidade, crimes também na área de segurança, contra a democracia, a saúde pública, grupos vulneráveis. Crimes contra a segurança do Brasil.

Quando um governante que tem os poderes presidenciais concedidos pela Constituição comete esses atentados, mantê-lo no poder é um risco para o Brasil e para as pessoas que nele habitam. Por isso a importância do impeachment.

BdF: Dentre esse rol de crimes que o senhor citou, existe algum que tenha mais gravidade, um peso maior?

CB: Todos os crimes de responsabilidade têm o mesmo peso constitucional. Nós fizemos uma reunião com os movimentos sociais e alinhamos vários desses crimes - por exemplo, os ataques reiterados ao meio ambiente, a liberação do Brasil para a grilagem, o ataque aos povos indígenas, às comunidades quilombolas, negras, LGBT, o atentado à segurança da imagem do Brasil no cenário internacional e os prejuízos econômicos que isso tem causado, os ataques à liberdade de expressão, ataques à cultura.

Todos eles, individualmente, são graves. Quando somados, ficam gravíssimos. Aí o porquê da propositura de uma ação que possa, de fato e de direito, inibir o presidente da República de prosseguir cometendo esses atentados.

BdF: Bolsonaro assume essas práticas desde o início do mandato. A pandemia parece ter agravado os crimes que ele já vinha cometendo e também abriu brecha para que ele cometa novos. É isso? A covid tornou o impeachment ainda mais urgente?

CB: O Bolsonaro nunca negou o desapreço que ele tem para com as pessoas e para com a democracia.

Não é só apenas a figura retórica do cabo e soldado fechando o Supremo, mas, de fato, estimulando que isso acontecesse, estimulando os atos públicos que pregavam o fim da democracia, estimulando que as pessoas circulassem em plena pandemia mundial sem máscaras, dando ele próprio o exemplo.

Nós não estamos no campo da ameaça ou da bravata, nós estamos no campo de uma realidade comprovada. Por isso que é preciso, até por sobrevivência pessoal e institucional, que se efetive o afastamento.

BdF: O que configura um crime de responsabilidade? Qual é a característica própria desse tipo de crime?

CB: A Constituição alinha vários tipos. A prática de uso da estrutura estatal para praticar crimes, o atentado aos poderes, à democracia, violação de princípios fundamentais, a não observância de leis. Todos esses elementos podem justificar o crime de responsabilidade.

Ora, se tem você no Brasil o precedente da perda de mandato de uma presidente da República por pedaladas fiscais, que nunca tinham sido punidas ou consideradas como crimes e continuaram não sendo depois do afastamento, imagine quando o presidente atual comete crimes assumidos. É por isso que o crime de responsabilidade tem aspecto penal, aspecto administrativo, aspecto constitucional, mas também aspectos políticos, porque o impeachment é, também, decisão política.

BdF: Há, até o momento, 51 pedidos de impeachment protocolados. Existe algum, entre esses, que o senhor vê com mais chance de prosperar e por quê?

CB: O que foi proposto pelos movimentos sociais é extremamente completo, porque ele reproduz o sentimento popular. Várias entidades se manifestaram, trouxeram as suas dores, as suas razões, que foram transformadas em peça jurídica. Mas, no fundo, é uma reprodução do querer de uma sociedade que cansou, que quer dar um basta, que se junta para dizer que não podemos continuar sendo omissos diante de tantas práticas, assumidamente, ilícitas.

BdF: O senhor citou que o impeachment é uma ferramenta democrática, mas, muitas vezes, ele acaba sendo estritamente político, como vimos acontecer com ex-presidente Dilma. Temos visto o Bolsonaro se movimentar politicamente, tentando e conseguindo evitar que o processo tenha andamento. Como o senhor vê essa questão, principalmente a aproximação e cooptação do “Centrão”? Isso pode salvá-lo?

CB: A prática dos crimes que são narrados na petição do impeachment permitiria o afastamento do presidente da República de duas formas distintas: uma, o pedido de impeachment, que é uma decisão político-jurídica pelo Congresso Nacional, a começar pela admissibilidade pela Câmara dos Deputados com julgamento final pelo Senado.

Uma outra, que é jurídico-política, que esses crimes também poderiam justificar a denúncia e instauração de processo criminal pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Aí inverte: pede autorização da Câmara, para que a Câmara permita que o Supremo julgue o presidente. Ele é jurídico porque começa pelo Supremo Tribunal Federal, mas é político porque precisa da autorização da Câmara dos Deputados.

BdF: O senhor acredita nessa possibilidade pelo STF, neste momento?

CB: As duas questões se interligam. E, no Supremo Tribunal Federal, há alguns processos com certos indícios a justificar a instauração do processo, como a prática constante de fake news, de gabinete de ódio financiados com recursos públicos, a interferência nas investigações da Polícia Federal e os atos de ameaça à democracia, com a participação do próprio presidente.

São três inquéritos que tramitam no STF e que podem justificar uma denúncia e, também, o afastamento. Esses fatos são citados no pedido de impeachment, são motivadores, porque atraem as duas formulações de afastamento.

BdF:  O embate do governo com o Judiciário, especialmente os ataques ao STF, pode influenciar nesse processo jurídico-político?

CB: São motivos para que se instaure o processo, porque são ataques à democracia, quebra da harmonia entre os poderes. É fundamento, mas também sendo julgado pelo Supremo Tribunal Federal, o fundamento não faz suspeita ao tribunal. O tribunal mantém-se com a competência técnica para fazer o julgamento, embora os fundamentais sejam ataques ao próprio STF. O fundamento é abstrato e o julgamento é concreto.

BdF: Voltando ao Congresso, o senador Major Olímpio (PSL-SP), um ex-aliado do Bolsonaro, disse esta semana que o presidente está “comprando partidos” para evitar o impeachment. De que forma essa compra pode se dar dentro da estrutura legislativa?

CB: Se comprovada a compra de parlamentares, nós estaremos discutindo a interferência do Poder Executivo sobre a tarefa primordial do Legislativo. Esse fato, em si mesmo, é grave e é justificador do impeachment e justificador de instauração de processo no STF.

A se comprovar essas informações do senador, nós estamos diante, também, de mais uma denúncia gravíssima a se somar ao rol de ações configuradoras de crime de responsabilidade.

BdF: É paradoxal que o motivo de um processo de impeachment dependa de análise de eventuais parlamentares comprados, não?

CB: Sim, mas os parlamentares também cometem crimes. Então, por isso é grave. E poderá, sim, se comprovado, afastá-los da atividade parlamentar.

BdF: O vice-presidente, Hamilton Mourão, não cometeu e comete crimes de responsabilidade? Ele não deveria, também, ser afastado?

CB: Se quando externado o processo das fake news, configurar o uso da vice-presidência na prática de crimes, claro que sim. Mas essa é uma discussão que ainda não está externada.

BdF: O vice também não tem participação nos crimes ambientais, de saúde pública, se não igual, mas relativa ao presidente?

CB: Se o vice-presidente da República praticar atos também justificadores de crime de responsabilidade, ele pode ser afastado. Mas, nas petições que estão sendo postas, esses fatos não estão sendo ainda alegados. Não quer dizer que não poderão ser alegados.

BdF: O jornal Folha de S. Paulo noticiou que o ministro Gilmar Mendes, do STF, alertou o presidente sobre o risco de a gestão dele sobre a pandemia do coronavírus levá-lo a um julgamento no Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda. Em que isso pode acarretar?

CB: Os tribunais internacionais trouxeram a novidade para o mundo, uma novidade correta, de que as fronteiras não são álibis para se cometer crimes. Então, os crimes cometidos nos países podem gerar mandados de prisão internacionais, uma vez confirmados. Isso não significa interferência nas autonomias nacionais de manutenção dos cargos eleitos no processo democrático.

A condenação no Tribunal Penal Internacional não afastaria o presidente da República do mandato presidencial, mas, se ele sai do Brasil, se houver uma condenação, ele pode ser preso em qualquer lugar do mundo.

Edição: Rodrigo Durão Coelho