A corrida aos supermercados foi uma das principais reações dos brasileiros assim que a pandemia do novo coronavírus chegou ao país e a quarentena passou a ser adotada em diversos estados. Agora, algumas semanas após o início do isolamento social, o que está em jogo não é o risco de desabastecimento para a maior parte da população, e sim a qualidade dos produtos.
Isso porque, segundo Silvio Porto, ex-diretor do Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), o desmonte de programas voltados para a agricultura familiar compromete diretamente a qualidade dos produtos oferecidos nas prateleiras, e, com a covid-19, esse processo inevitavelmente se intensificará.
A exemplo dos sucessivos cortes de verba destinados ao Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), implementado pelos últimos governos. Um dos protagonistas da redução da fome no país, o programa compra a produção de agricultores familiares e distribui parte à população mais ameaçada pela insegurança alimentar e nutricional.
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Sob a gestão Bolsonaro, a estimativa de financiamento do PAA para o próximo Plano Plurianual, de 2020 a 2023, é de pouco mais de R$ 520 milhões. O valor previsto é menor do que o executado apenas pela Conab por meio das compras públicas, em 2012, com R$ 586 milhões investidos.
Agricultores familiares ainda esperam que medidas emergenciais anunciadas pelo governo federal para enfrentar a crise do novo coronavírus saiam do papel e cheguem ao campo, afirmam movimentos agrários do país. Promessas como investimentos nos programas de Aquisição de Alimentos (PAA) e Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) – para compras de produtos dos agricultores –, além da criação de linhas de créditos especiais, esbarram na falta de regulamentação e de condições para execução.
Um dos anúncios foi o de investimentos imediatos de R$ 500 milhões para o PAA, feito pela ministra da Agricultura, Tereza Cristina, em 8 de abril. A medida, porém, ainda não tomou forma. Só em 15 de abril o ministério oficializou a criação de um comitê gestor para organizar as compras. A regulamentação para a execução, no entanto, ainda não foi publicada.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Porto explica que sem as verbas que incentivam e auxiliam a produção agroecológica, os camponeses encontram entraves ainda maiores para comercializar a produção em meio à pandemia.
“Teremos a redução da disponibilidade de alimentos frescos, sobretudo frutas, verduras e legumes. Os hortigranjeiros, de forma geral, esses sim, efetivamente, podem ter um processo de desabastecimento devido aos canais de comercialização que se rompem. Ao mesmo tempo, não são criadas novas alternativas no sentido de dar vazão [à produção]”, afirma.
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O também professor e pesquisador da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), explica que com a diminuição da oferta, haverá um impacto no preço dos produtos, o que dificultará ainda o acesso aos alimentos considerados mais saudáveis. Em contrapartida, durante o isolamento social, a população encontrará produtos industrializados e ultra processados, disponibilizados pelas grandes empresas alimentícias.
Porto frisa que a maioria desses alimentos têm reflexos do ponto de vista da saúde pública brasileira, porque são geradores de doenças. A diabetes e hipertensão, por exemplo, doenças que enquadram a população no grupo de risco para o coronavírus, também são geradas por maus hábitos alimentares.
“Teremos uma situação em que a população poderá garantir seu abastecimento, mas com produtos de péssima qualidade. Vamos estar desestruturando, sobretudo, canais de comercialização e de produção de alimentos mais saudáveis, oriundos da agricultura familiar e camponesa, que será, sem dúvida, a mais afetada”, avalia o especialista, que foi diretor da Conab de 2003 a 2013.
Para ele, a ausência de estoques públicos de alimentos da Companhia, autarquia responsável pela política agrícola e de abastecimento no Brasil, e principal operadora do PAA, também compromete o auxílio emergencial à populações carentes durante a pandemia.
Em 2019, a Conab anunciou o fechamento de 27 unidades de sua rede de armazéns, localizadas em regiões onde setor privado tem maior presença no mercado.
"Os estoques públicos seriam um dos elementos de composição de ação que o Estado deveria estar tomando em relação ao atendimento à população em insegurança alimentar nutricional", destaca Porto.
Confira a entrevista na íntegra.
Brasil de Fato - Qual o papel e importância da Conab e de seus estoques públicos de alimentos em meio à pandemia que estamos vivendo?
Silvio Porto - Em primeiro lugar, a Conab é o único instrumento que existe no país para a formação de estoques públicos. Historicamente sempre foi utilizada dessa forma. A política de garantia de preços mínimos começa ainda nos anos 40 mas passa a ser uma política efetiva a partir dos anos 60.
No processo de avanço da agricultura brasileira, a Conab acabou cumprindo uma série de apoios a esse processo da modernização conservadora da agricultura, sobretudo em relação às áreas de fronteira no passado, dando suporte à aquisição de alimentos que ali eram produzidos.
A partir dos anos 90, os estoques públicos, assim como outras políticas no processo da neoliberalização, começou a passar por uma desconstrução. Os estoques foram entendidos como algo que deveria ser meramente de mercado, pelos atores do mercado, e não uma ação do Estado. O que é um grande equívoco porque os estoques públicos têm uma função fundamental, e também é chamado de estoque regulador exatamente nesse sentido, de regular o mercado.
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Ano passado, por exemplo, em que pese ter colhido 100 milhões de toneladas de milho, o Brasil não comprou absolutamente nada. Quase metade dessa produção foi exportada. O país ficou com um estoque muito baixo no âmbito privado e praticamente zerado nos estoques públicos e não tem a maior capacidade de intervenção nesse momento, o que impacta o preço.
O milho é muito importante na composição das rações, por exemplo, gerando um impacto no preço das carnes, na produção do leite. Enfim, gera um desequilíbrio em que o Estado fica simplesmente como mero espectador.
O estoque público tem uma função crucial que é exatamente a regulação do mercado e, nesse caso da pandemia, seria principalmente para atuar no atendimento à parte da população que se encontra em insegurança alimentar devido à problemática econômica que estávamos vivendo, com o índice de desemprego alto, e, agora, com todo esse processo de dispensa dos trabalhadores o desemprego está aumentando ainda mais.
Os trabalhadores que estavam atuando na informalidade também estão afetados por todo esse processo que estamos enfrentando. Portanto, os estoques públicos seriam um dos elementos de composição de ação que o Estado deveria estar tomando em relação ao atendimento à população em insegurança alimentar nutricional.
Em 2019, a Conab anunciou o fechamento de 27 armazéns dos 167 que empresa pública possui. Esse processo que descreve, somado aos fechamentos, impacta a população nesse momento?
Não tenho clareza de quais unidades foram fechadas, mas a grande questão é que, em geral, se formos olhar, é que havia um plano de modernização das unidades da Conab. Ao invés de avançar no sentido de modernizá-las para melhor atendermos as necessidades e estratégias do governo, a opção foi privatizá-las ou repassá-las para estados e municípios. Dar outra finalidade para essas unidades armazenadoras.
Foi coerente a desmobilização dessas unidades no sentido de que para esse governo que está aí, e o anterior, desde Temer, estoque público deixa de ser uma função de Estado novamente. Voltamos aos anos 90, um passo atrás em pelo menos 20 anos. E essas unidades passaram a ficar efetivamente ociosas. Essa é a grande questão.
Só que neste momento em que a Conab e o governo sinaliza algum tipo de apoio, certamente essas unidades, em relação à distribuição de cestas de alimentos, em relação à retomar o próprio programa de venda de milho em balcão, que atende pequenos produtores de aves, suínos ou produtores de leite, são fundamentais. Provavelmente foram essas as unidades fechadas, desmobilizadas, porque avaliaram que economicamente "davam prejuízo", digamos assim.
Mas em uma relação em que a Conab tem um papel público a cumprir no abastecimento alimentar do país, o cálculo não pode ser meramente financeiro. Tem que ser um cálculo no sentido de qual a função pública, social, que aquela unidade armazenadora tem a cumprir. Na verdade o problema aqui é de concepção de Estado, de uma lógica de intervenção no âmbito do desenvolvimento agrícola e agrário, e da economia.
A Conab também é responsável por operar programas da agricultura familiar e os camponeses têm denunciado o corte de verbas nos últimos anos. Como enxerga esse desmonte e como ele impacta nossa resposta à pandemia nesse momento?
Ele faz parte de um conjunto de desmobilizações que estão sendo feitas. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) que foi um grande programa, extremamente exitoso na sua execução destinada especificamente à compra de alimentos da agricultura familiar e camponesa, e com o mesmo recurso, cumprindo um outro papel de extrema relevância que é o atendimento às populações vulneráveis, foi disponibilizado nessa lógica.
É evidente que a agricultura familiar e camponesa não tem, na hierarquia das políticas, a menor prioridade. Foi desmobilizado o ministério que existia, do Desenvolvimento Agrário, e um conjunto de outras políticas de assessoramento técnico, como por exemplo, a Assistência Técnica e Extensão Rural.
E vários outros programas que estavam apontando minimamente para avançar no sentido de dar suporte e fortalecimento dessa agricultura, que é a agricultura que efetivamente assegura a biodiversidade, que produz alimentos diversificados. A agricultura territorializada, modifica as relações em níveis de território. Não estamos falando aqui de monocultivo, não estamos falando de commodities.
A desmobilização do PAA vem de encontro às necessidades que o Estado deveria intervir nesse momento, em relação a dar conta de absorver a produção que hoje não está conseguindo ser comercializada em função do necessário processo da quarentena. É evidente que gerou um fechamento de canais de comercialização, então há sobras de alimentos.
Ao mesmo tempo, temos no outro lado, uma população com extrema necessidade de alimentar-se melhor, alimentar-se bem, até para enfrentar melhor o próprio processo da pandemia, mas que está fragilizada ou porque está desempregada ou porque não consegue atuar na informalidade, como vinha fazendo.
Portanto, receber alimentos seria crucial. Esse processo de desmobilização encontra as opções que o Estado brasileiro fez a partir de Temer e radicalizando agora no governo Bolsonaro, é exatamente o pior cenário que podemos ter para enfrentar uma situação como essa.
Alimento, neste momento, mais do que nunca, precisa ser entendido com o mesmo patamar de prioridade que as ações de saúde para enfrentamento da covid. A alimentação é crucial para nossa saúde e dessa forma que precisamos encarar que o abastecimento alimentar tem que estar no mesmo patamar de prioridade.
Avalia que há possibilidade real de desabastecimento durante essa crise sanitária?
Certamente parte da alimentação vai continuar chegando ao supermercado e disponível para a população. Agora, a grande questão, é que alimento é esse que estamos falando. Principalmente nesse momento, teremos a redução da disponibilidade de alimentos frescos, sobretudo frutas, verduras e legumes. Os hortigranjeiros, de forma geral, esses sim, efetivamente, podem ter um processo de desabastecimento fruto de que os canais de comercialização se rompem, e, ao mesmo tempo, não são criadas novas alternativas no sentido de dar vazão.
É uma tendência que vai afetar o nível da produção, reduzir a oferta, impactando em termos de preço e o próprio acesso da população. O que deve acontecer nesse processo da pandemia, é a população alimentar-se pior, alimentar-se muito mais de produtos ultra processados, industrializados, que são questionáveis do ponto de vista de sua própria qualidade alimentar.
São exatamente alimentos, hoje, que claramente são produtores de obesidade, que têm reflexos do ponto de vista da saúde pública porque são geradores de doenças e, portanto, teremos uma situação em que a população poderá garantir seu abastecimento, mas com produtos de péssima qualidade. Vamos estar desestruturando, sobretudo, canais de comercialização e de produção de alimentos mais saudáveis, oriundos da agricultura familiar e camponesa, que será, sem dúvida, a mais afetada.
Evidente que o impacto econômico sobre essas famílias será brutal. Do ponto de vista de quem produz, tem a lógica do auto-abastecimento. Por outro lado, temos determinado público, sobretudo quilombolas ou povos e comunidades tradicionais, de uma forma mais genérica, que merecem e precisam de uma atenção especial nesse momento porque esses sim, seguramente, poderão ter dificuldade em abastecer-se. É fundamental ter uma ação do Estado nesse sentido, de distribuição de alimentos, e de assegurar que a alimentação de qualidade chegue à essas populações.
O mundo rural também tem problemas sérios de pobreza, sobretudo porque temos cerca de 2,5 milhões de estabelecimento com menos de 10 hectares, em função de nunca termos avançado efetivamente para uma reforma agrária profunda para mudar a estrutura agrária deste país.
Temos um problema de concentração fundiária brutal, cada vez maior. Boa parte, ou metade da população que vive na área rural e que trabalha na agricultura, tem limitação de acesso aos meios de produção, sobretudo terra e água. Nesse sentido, isso se agrava ainda mais.
Neste contexto, os estoques públicos darão conta da demanda?
Na verdade, não temos estoques públicos hoje. Estão praticamente zerados, essa é a grande questão. Do ponto de vista da ação do Estado, qualquer compra é limitada. Por isso que a reativação do PAA nesse momento, e a continuidade da compra da agricultura familiar, ampliando de 30% a 50% no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), seria a forma de potencializar a oferta de alimentos para a população vulnerável que se encontra no Brasil.
Seja ela no âmbito rural, mas sobretudo nas periferias da cidade, nas favelas, onde temos sérios problemas de desabastecimento, de acesso à alimentação de qualidade por parte dessas populações.
Os restaurantes que estão fechados, por exemplo, estão dispostos, inclusive, a colaborar nesse sentido, colocando suas estruturas e funcionários para preparar alimento e distribuir para as populações vulneráveis desde que o governo garanta o fornecimento de alimentos. Poderia se aproveitar isso para potencializar a distribuição.
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Fazer processos de articulação com a Central Única das Favelas (CUFA), com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. Ou seja: uma articulação forte entre campo e cidade, entre produção e consumo, em relação a estruturar um novo formato que permita que a produção saia da agricultura familiar e camponesa, e chegue efetivamente às populações vulneráveis.
Isso seria um importantíssimo espaço, não só para esse momento da pandemia, mas para pensar o pós-pandemia. Criar relações, novos canais de comercialização, que descentralizem e estabeleçam relações mais diretas entre produção e consumo.
A Conab informou que, para esse ano, o PAA tem previsão de aporte de R$ 220 milhões para projetos com doação simultânea. Durante a pandemia, as ações se tornam mais urgentes. Esse valor é suficiente para a demanda do país?
Duas coisas. Primeiro, o valor é totalmente insuficiente. Há uma solicitação, um pedido, mostrando que para esse ano teria que ser, no mínimo, R$ 1 bi. E isso é extremamente factível. Sendo que os movimentos estão reivindicando R$3 bilhões pensando 2020 e 2021, divididos entre Conab, municípios e estados, justamente para potencializar essas ações de compra e ação simultânea. Esse é um elemento.
A Conab hoje tem, em estoque de projetos ainda do ano passado R$120 milhões de demanda. Esses R$ 220 milhões, mais da metade já vão atender demandas que estão em carteira, e demonstra muito bem esse anúncio dos R$500 milhões [para a agricultura familiar] que o governo federal fez.
Além disso, até agora não liberam. Estamos falando há 3 semanas sobre esses valores e até agora a Conab não recebeu nenhum centavo. Não operou nenhum recurso novo este ano. Com a premência, isso significa que famílias agricultoras e camponesas estão perdendo sua produção porque o governo não é ágil, não libera esses recursos.
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Segundo, do ponto de vista da modalidade da doação simultânea. Nesse momento, em face do seu modelo e formato institucional de operação, não é o modelo ideal para atuar agora. Agora tem que ser a compra direta, ou seja, definir quais são os produtos, a lista de produtos, qual o preço e onde vai ser entregue. Uma vez entregue, atesta a entrega e faz o pagamento direto. Teríamos que usar o que chamamos de compra direta ou formação de estoque, que é a possibilidade de aportar o recurso para que a organização entregue esse produto onde for combinado, para as populações vulneráveis.
Ou seja, a doação simultânea tem uma série de exigências que nesse momento da quarentena seria extremamente equivocada e veremos isso. Se o governo for por esse caminho, provavelmente o PAA vai levar de 2 a 3 meses para começar a ser operacionalizado.
Tem uma questão do ponto de vista gerencial, de decisão política, do formato a ser utilizado, que não seria a decisão simultânea nesse momento. E a outra é de ordem orçamentária. São totalmente insuficientes os recursos que os governos estão sinalizando alavancar para esse programa.
Mas, a doação simultânea, do ponto de vista de médio e longo prazo, tem relevância como política de combate à fome estruturalmente?
Com certeza. E aí o PAA como um todo, junto com a alimentação escolar, junto com ações de estruturação de abastecimento popular sobretudo nas áreas mais periféricas, onde tem concentração da população que ganha 2, 3 salários mínimos, é fundamental que se retome esse programa e se crie outras ações complementares, para que efetivamente deixemos de atuar na agenda da alimentação única e exclusivamente em processos de crise. A alimentação precisa ser entendida e encarada na forma como está na Constituição hoje. É um direito, e portanto, precisa fazer parte diuturnamente da ação do Estado e ter políticas efetivas, recursos financeiros, para que as ações sejam implementadas.
Em meio à pandemia, a Conab anunciou um leilão para aquisição de alimentos das cestas básicas em apoio às populações em situação de vulnerabilidade, agravada pela pandemia causada pelo novo coronavírus. Mas, o leilão foi adiado para esta sexta-feira (23), com entregas previstas para 14 de maio, sendo que a quarentena já dura semanas. Como enxerga essa ação, é tardia ou um processo burocrático que de fato demanda tempo?
O governo teria toda a possibilidade de fazer algo muito ágil, há um decreto de calamidade que permite que o governo possa atuar com toda agilidade possível. Isso é um problema de ordem gerencial, política, e pra mim surpreende muito uma tomada de decisão dessa. É evidente que estamos falando para uma entrega na metade de maio. Até que chegue nas populações a serem atendidas por essa distribuição de alimentos, provavelmente será no fim de maio, começo de junho.
Esse é o pior caminho. É uma decisão que efetivamente não atende, não garante que a emergência da situação seja atendida. Quando vemos a notícia de que o governo está utilizando a liberação de recursos emergenciais para fazer pressão política para flexibilizar a quarentena, não sei até que ponto isso não está no mesmo bojo da lógica que o governo vem atuando. A população vulnerável desse país está a bel prazer. Do ponto de vista do governo, é o pior que poderíamos ter para enfrentar uma calamidade como essa que estamos enfrentando.
O Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) lançou um Plano Safra Popular, em que retomam a necessidade de recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) e do Ministério do Desenvolvimento Social. Qual seria a importância da retomada desses órgãos?
É fundamental, pela relevância que a agricultura familiar e camponesa tem nesse país, que tenha uma institucionalidade própria. Se é o Ministério do Desenvolvimento Social ou outra estrutura, porque nesse momento há um debate forte e além do MPA, outros movimentos como MST e Contag, estão pautando a necessidade de ter um espaço, um locus de interlocução específico no âmbito do governo. O problema é que seria do próprio governo e imaginar que esse governo vai dar essa resposta, é difícil imaginar que isso vai acontecer.
E mesmo que isso venha acontecer, pela insensibilidade pela lógica que o governo atua, dificilmente teremos políticas que daria conta de atender as necessidades da agricultura familiar e camponesa. Do ponto de vista político, o MPA está corretíssimo. É fundamental pautar, lutar por isso, e tem que estar na agenda dos movimentos sociais diuturnamente.
Pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Catia Grisa e Paulo Niederle, que começaram pautar a necessidade de um Ministério da Alimentação, como forna de reunir tanto o conjunto dessas áreas da segurança alimentar, como as políticas da agricultura familiar. É um debate, que deve ser levado também em consideração, mas sabemos que isso, infelizmente, dificilmente será implementado em curto prazo. Mas é algo que deve entrar na agenda política para um debate profundo, consistente, para que talvez em outro cenário político consigamos retomar espaços institucionais dessa natureza.
Essa conjuntura toda que vivemos expõe, que, por mais que colocado como grande peso no PIB do país, o modelo do agronegócio é insuficiente...
Sem dúvida. Olhar pra PIB, renda per capita, é um indicador. Mas a questão é como essa riqueza se distribuí na sociedade. E o que temos exatamente é o Brasil como um dos países que tem a maior concentração de renda, dos meios de produção. O avanço da soja e da pecuária se dá em conflito com as populações, sobretudo com a agricultura familiar e camponesa, populações tradicionais, indígenas que vivem nos territórios e sofrem por grilagem e um processo de pressão em relação a esse modelo, que vai, cada vez mais, empurrando e confinando essas populações, enquanto perdemos biodiversidade e riquezas essenciais para a manutenção dos nossos próprios biomas.
É a dicotomia que temos hoje. Faz quarentena ou preocupa-se com a economia? Sempre foi essa lógica. Ao priorizar o econômico, o componente de saúde pública, ambiental e social são sempre deixados em segundo, terceiro e quarto plano. O modelo que temos, pautado a partir de uma lógica econômica, produz brutais problemas no sentido de afetar essa populações e enormes problemas no campo, invisibilizados por querer mostrar essa pujança do agronegócio, mas o que temos do ponto de vista dos territórios é um processo de desterritorialização e desconstrução de modos de vida fundamentais para que tenhamos a preservação da cultura, biodiversidade e alimentação.
Edição: Douglas Matos