Cineasta, diretora de arte e feminista. Aos 37 anos, Sophía Hernández viu sua vida mudar em dezembro de 2023, após o assassinato brutal de sua irmã, Julieta, no município de Presidente Figueiredo (AM). A artista, cicloativista e militante feminista fazia o trajeto de volta para casa, depois de oito anos vivendo no Brasil.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Sophía, agora com 38 anos, conta como foram os dias em que Julieta esteve desaparecida, aponta irregularidades no processo de investigação, e cobra que o caso seja tipificado como feminicídio. A cineasta que mora na França ainda fala sobre a relação com a irmã mais velha, os sonhos interrompidos pelo crime e seu desejo de levar adiante o legado da artista, criadora da palhaça Jujuba.
O processo está em fase de instrução, quando a justiça ouve as testemunhas e os acusados para formar um entendimento sobre a acusação apresentada pelo Ministério Público do Amazonas (MP-AM). A promotoria rejeitou o pedido de tipificação do caso como feminicídio.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Sophía como foi esse último ano para você e sua família?
Sophía Hernández: Obviamente, nesse mês, sentimos ainda mais a ausência. Além do mais, é um período de festas, então a tristeza é enorme. Depois da morte de Julieta, minha mãe perdeu a audição e agora precisa usar aparelho auditivo. Então eu tive que tocar todo esse processo e seguir firme.
Desde aquele momento eu não parei. É como estar permanentemente em uma agenda política. Obviamente eu nunca esperei viver o que eu vivi. A princípio, nos primeiros meses, foi uma realidade muito fragmentada, mas eu nunca parei.
Minha sensação é, primeiro de um cansaço físico e emocional muito grande, porque esse foi um ano de luta. Um ano em que eu vi de frente injustiças horríveis. É como um filme de terror. O sistema falha completamente e nos aterroriza pensar que nada aconteça.
Por outro lado, apesar da tristeza, tenho um sentimento de gratidão pelo povo brasileiro. Sinto que o que minha irmã plantou e colheu frutos, porque, todos os dias, as pessoas me escrevem, me mandam cartas, me chamam nas redes sociais, gente que conheceu minha irmã. Em um monte de cidades fizeram murais da minha irmã. Ou seja, tenho um sentimento de tristeza e, ao mesmo tempo, de gratidão imensa. É uma sensação agridoce.
Há alguns dias, foi realizada a segunda audiência de instrução na Justiça do Amazonas. Como vocês têm acompanhado esse processo?
Primeiro, é horrível pensar que esse caso está sendo julgado como um roubo, enquanto os números de feminicídios seguem crescendo. Assim como o caso da minha irmã, existem muitos outros, e isso não pode continuar. Matam uma mulher por ser mulher e dizem que foi suicídio ou qualquer outra coisa.
A primeira audiência foi em novembro, e para mim, foi tudo irregular. Porque não havia testemunhas, as únicas testemunhas eram os policiais que encontraram minha irmã e o senhor que encontrou a bicicleta. Não tem investigação, essa polícia nunca procurou minha irmã, além do mais, encerrou a investigação dizendo que mataram Julieta por causa de um celular. Na mesma audiência, chega a polícia e diz que a assassina tinha feito uma segunda declaração, mas esse documento nunca foi incluído no processo. Nós pensamos: 'Não é possível!' E em janeiro vamos ter uma nova audiência onde provavelmente devem falar os assassinos.
Ou seja, mais irregularidades, impossível. É um processo que está cheio de irregularidade e violações de direitos. A primeira promotora desistiu do caso porque se negava a mudar a tipificação para feminicídio. Dizia que foi um roubo e começou a revitimizar minha irmã. Disse: “Nesta cidade convivemos com estrangeiros, não existe xenofobia. Ela provocou o marido e a mulher reagiu”. E eu não podia acreditar que estava ouvindo aquilo.
Mas na audiência, a polícia confirmou algo que nós dizíamos: a polícia da cidade não tem uma linha telefônica, ou seja, como podíamos contactar a polícia durante a busca da minha irmã?
E você esteve lá, em Presidente Figueiredo, durante as buscas por Julieta?
Sim. Eu estava aqui na França, e minha mãe na Venezuela, e nos encontramos no Brasil por causa dessa tragédia. Quando eu cheguei ao Brasil eu sequer falava português, nada. E agora eu entendo o português como se fosse espanhol. Não falo, mas entendo.
No começo, quando tudo aconteceu, a polícia nunca veio falar comigo, sabendo que nós estávamos lá, e passavam as informações diretamente para a imprensa sensacionalista. E nesse momento foi que começou minha busca para conseguir os melhores advogados.
Mas imagina, eu não sabia nada. Eu nunca tinha ido ao Brasil, então para mim foi conhecer um país em meio à situação mais triste que eu já vivi na minha vida. E, por outro lado, tinha uma sobrecarga de informação. Muita gente me escrevia. Agora que passou esse tempo, eu olho para trás e me pergunto: como eu consegui chegar até aqui?
O que disse a polícia quando vocês chegaram a Presidente Figueiredo?
Veja, quando chegamos à cidade, a polícia disse que minha irmã tinha ido embora da cidade. Nós falamos: então provem que ela foi, mostrem as imagens da saída da cidade. Então eles diziam que ela estava em Roraima, que uns indígenas tinham visto ela por lá. E a gente não aceitava, porque minha irmã fazia parte de uma rede mulheres cicloativistas, e elas avisavam uma à outra, se apoiavam. E, por isso, ninguém acreditou. Daí nós fizemos um movimento imenso nas redes por conta do sumiço de Julieta. Quando as amigas da minha irmã chegaram, a pressão era tão grande que eles tiveram que encontrá-la, e estava onde sempre esteve.
Fato é que, quando chegaram as amigas da minha irmã, os policiais deram dez minutos para que elas recolhessem [os objetos] que tinha da Julieta e elas pegaram o pouco que encontraram, inclusive o celular. A polícia até tentou desbloquear o aparelho, mas não conseguiu.
Durante suas viagens, Julieta se comunicava com vocês? Chegaram a falar com ela antes de seu desaparecimento?
Minha mãe e Julieta eram muito unidas, era sua melhor amiga, se falavam sempre. Hoje minha mãe vive comigo, mas antes vivia na Venezuela e nós nos falávamos sempre. Somos muito unidas.
A última vez que falei com Julieta foi no dia 21 de dezembro, justamente para dizer a ela que eu tinha um pressentimento ruim. Isso vai me marcar para sempre na alma. No dia 21, eu tive um mau pressentimento de que algo ia acontecer com ela e eu pedi para ela que, por favor, fosse imediatamente para a Venezuela.
Ela até ficou um pouco brava comigo e, quando ela desligou o telefone, eu comecei a chorar. Quando tentamos falar com ela pela primeira vez e ela não atendeu, minha mãe disse que sentiu um aperto no peito e pensou: 'Não pode ser que o que Sophía sentiu esteja acontecendo'. E até hoje eu não consigo me consolar quando penso que, apesar de ter tido esse mau pressentimento, eu não pude fazer nada.
E nesse contato ela relatou algo sobre o casal que confessou o crime?
Minha irmã esteve dois dias em Presidente Figueiredo. No dia em que nos falamos, ela não nos disse absolutamente nada. Ela chegou a esse lugar e ia embora no dia seguinte. Acontece que ela chegou muito cansada dessa viagem, tinha caído na estrada, estava muito cansada e. por isso, decidiu ficar um dia a mais.
De acordo com o que se sabe, através de testemunhas da cidade, é que no dia 22 de dezembro, viram ela em uma praça da cidade tocando. Tem vídeos disso. E, supostamente, ela teria usado o dinheiro para comprar comida para cinco crianças que havia nessa casa [a casa do casal Thiago e Deliomara, que confessaram o crime]. Ess é a única coisa que se sabe sobre os últimos movimentos da minha irmã. Isso eu sei porque eu fui investigar por conta própria.
E por isso me surpreende que até agora sigam dizendo que mataram a minha irmã para roubar um celular. Isso não é verdade. Não mataram ela para roubar nenhum celular, isso é uma fachada construída pela polícia da cidade que não investigou nada.
Eu tenho o celular da minha irmã comigo, ou seja, a suposta investigação da polícia nunca analisou o celular, nunca revisaram. Se você mata alguém para roubar um celular, o primeiro que você faz é vender. Mas não venderam, porque não roubaram nada.
Porque vocês têm a convicção de que se trata de um crime de feminicídio?
Inclusive porque se houvesse sido justificado pelo roubo do celular, é feminicídio de qualquer forma, porque, para roubar um celular, não precisa estuprar. Então é preciso se perguntar, se fosse um homem, teria acontecido tudo isso com ele? Não. Então foi um feminicídio porque fizeram o que fizeram com minha irmã por ela ser mulher. Por isso que eu digo que essa teoria patética de roubo de celular foi o que mais me assombrou.
E tem mais, eles souberam, pelas redes, que minha irmã tinha feito uma vaquinha para comprar um celular novo antes de viajar. E usaram isso para dizer que mataram ela porque o celular era novo.
Você defende que o caso seja federalizado?
Bom, obviamente eu queria que o caso fosse federalizado, embora a gente não tenha feito nenhum pedido formal. Eu considero que o caso da minha irmã precisa ganhar o tamanho que ele tem, não só porque é minha irmã, mas por tudo o que ela representa. Minha irmã representa uma mulher artista de rua, migrante, uma mulher livre, assassinada por ser mulher. E essa luta é por tudo o que Julieta representa para as mulheres do Brasil e do mundo, que estão morrendo e que seus corpos nunca são encontrados.
E foi por isso que o Ministério das Mulheres incluiu o caso da minha irmã como parte da campanha Feminicídio Zero. Por isso eu digo, façamos com que esse caso de Julieta sirva de alerta, porque minha irmã era uma feminista, e não há melhor forma de honrar a minha irmã, além de fazer justiça, do que fazer com que essa tragédia sirva para que outras mulheres não passem pelo mesmo.
Há algumas semanas eu fiz um vídeo porque eu prometi à minha irmã que eu ia entrar em contato com Lula para manifestar essa nossa vontade, porque isso não pode ficar assim. E, toda vez que eu via o Lula falar na Telesur [cana; venezuelano de TV], eu estava atenta para ver se ele ia dizer alguma coisa. E eu sabia que esse momento ia chegar. Então eu fiz o vídeo e acho que ele cumpriu sua missão, porque o vídeo viralizou e o gabinete da Janja Silva entrou em contato com a gente. Eu pedi a ela duas coisas: primeiro que eu queria um vídeo dela apoiando a nossa causa. E depois, que ela nos recebesse em Brasília. E ela respondeu que sim, vai nos receber no final de janeiro. Agora é ver como chegar a Brasília, mas vamos chegar.
Falando de Julieta, quando ela começou sua jornada pelo Brasil?
Minha irmã começou suas viagens em 2007, quando foi para a Patagônia argentina. Mas logo ela voltou para a Venezuela e disse que queria ir ao Brasil para estudar o Teatro do Oprimido, era seu sonho. Porque minha irmã era veterinária e sempre muito brilhante. Trabalhou muitos anos como médica veterinária, em pesquisas em territórios indígenas, na selva, porque ela sempre gostava de estar com o povo, e sempre de bicicleta.
Mas, ao mesmo tempo, ela desenvolveu uma carreira no teatro. Então estava trabalhando com grupos de teatro feministas, apresentando obras... Além disso, ela gostava muito de fazer trabalhos de artes plásticas, pintar murais, camisas, tudo o que tivesse a ver com artes manuais, ela trabalhava muito com isso, seguindo os passos do nosso pai, que era um desenhista profissional, poeta, e ele nos influenciou muito com sua arte. Da minha mãe, a aventura, porque minha mãe é engenheira civil e desde sempre gostou muito de viajar. Então, nossa mãe nos ensinou a sermos mulheres livres, a viajar, a não depender de ninguém.
Julieta tinha bem marcadas essas duas características. Bom, minha irmã chegou ao Rio de Janeiro para estudar o Teatro do Oprimido. Foi de bicicleta da Venezuela, fazendo esse trajeto. Ela chegou ao Rio de Janeiro em 2016 e não conseguiu estudar teatro porque era muito caro e ela não tinha dinheiro.
E foi aí que ela conheceu uma amiga que a chamou para estudar palhaçaria, porque minha irmã fazia malabares, ela já viajou fazendo malabares, mas nunca havia estudado. Então essa amiga apresentou para ela uma escola gratuita de palhaços e aberta a todo mundo. Se chama Escola Livre de Palhaços. E aí ela começou a desenvolver seu personagem, que era a Miss Jujuba, que nasce no Rio de Janeiro, nos metrôs, nos ônibus, nas praças. Depois, ela se conecta com as Marias da Graça, que são as palhaças feministas.
Em 2019, ela disse que faria essa grande rota de bicicleta para chegar à Venezuela, à casa da nossa mãe. Logo depois, começou a pandemia de covid, o que atrasou muito a volta dela, e no caminho ela foi conhecendo muita gente. Porque Julieta era uma pessoa de redes, uma pessoa que unia, ou seja, ela podia estar com muita gente que pensasse diferente dela. E isso era um canal de conexão com muita gente.
E você sabia que ela tinha toda essa rede de contatos?
Não. Nós sabíamos que minha irmã era uma pessoa comprometida com suas causas, mas não tínhamos ideia do tamanho imenso que isso poderia ser. Meu pai foi uma pessoa muito influente para nós. Ele morreu há nove anos. E meu pai viveu uma ditadura na Venezuela, e ele era comunista. Então meu pai, desde pequenas, nos ensinou muita coisa. Mas minha irmã foi a que abraçou essa linha de pensamento do meu pai, até seu último dia, e Julieta seguiu esse caminho, fazendo revolução da sua forma, uma revolução feminista, uma revolução artística. Seu plano era levar arte ao Brasil profundo, a lugares aonde a arte não chegava. Autofinanciava seu trabalho porque era muito pouca gente que ajudava. E fora isso, ela era nômade, não tinha um lugar fixo para viver.
Mas ela tinha muita personalidade. Sempre querem pintá-la de inocente, e dizer que o que aconteceu foi porque ela acreditou nas pessoas. Não, minha irmã era uma pessoa que tinha anos viajando sozinha, de bicicleta, ela sabia se cuidar, ficava de olho antes de parar em qualquer lugar. Sua fraqueza era amar demais as crianças. Ela não queria ter filhos porque dizia que já havia muitas crianças sem pais no mundo. Mas seus filhos eram aqueles que ela encontrava pelo caminho. E lutava, se metia, tinha muitos problemas por se meter com pais que maltratavam seus filhos.
Ela tinha todo um plano social, cultural, que ia fazer na Venezuela, viajando por toda a Venezuela, em pequenas cidades, e ia levar minha mãe com ela, por isso, minha mãe estava ansiosa por ela chegar. Em dez dias minha irmã estaria em casa, já estava muito perto.
Respostas
A Assessoria de Comunicação do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM) informou à reportagem que o processo mencionado tramita na Vara Única de Presidente Figueiredo, município do interior do Amazonas. Segundo o TJ-AM, “os fatos que motivaram a referida Ação Penal causaram grande comoção local e nacional e, por questões de ordenação e de segurança, o processo tramita sob segredo de justiça. Por essa razão, está restrito somente às partes o acesso às etapas da audiência de instrução”. A nota finaliza dizendo que o processo se encontra com “tramitação regular, com a continuidade da fase instrucional realizada” no dia 3 de dezembro.
O Brasil de Fato entrou em contato com o Ministério Público, a Polícia Militar e a Polícia Civil do Estado do Amazonas para que se manifestassem sobre as citações nesta entrevista, mas não obteve retorno. Não foi possível contactar a defesa de Thiago Agles da Silva e Deliomara dos Anjos Santos, réus confessos do assassinato de Julieta Hernández.
Edição: Martina Medina