A exemplo de outras iniciativas de combate à insegurança alimentar e nutricional, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) está prestes a se tornar passado. Um dos eixos fundamentais para tirar o Brasil do Mapa da Fome tem cada vez menos recursos e rapidamente se transforma numa sombra do que foi.
O PAA atua em duas pontas. De um lado, compra de agricultores familiares. De outro, distribui parte à população mais ameaçada pela insegurança alimentar e nutricional.
Desde a criação, em 2003, os recursos destinados pelo governo federal ao programa tiveram crescimento constante de forma acentuada até 2006, e de forma mais lenta seguiram até 2012, quando se chegou ao teto de R$ 1,2 bilhão.
Em 2018 foram aplicados apenas R$ 253 milhões, “valor comparativamente menor que o aplicado no primeiro ano do programa, considerando-se a correção monetária”, aponta estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). No ano passado, o valor executado pelo PAA com recursos do Ministério da Cidadania foi de R$ 188 milhões, ou um sexto do que teve o projeto no ápice.
Para o período que se inicia, a perspectiva é ainda pior. O previsto na Lei Orçamentária Anual 2020 é de R$ 101 milhões. A estimativa para o próximo Plano Plurianual, de 2020 a 2023, é de pouco mais de R$ 520 milhões. Isso significa que o valor previsto para o programa ao longo de quatro anos é menor que o executado apenas pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) em 2012 por meio das compras públicas, com R$ 586 milhões investidos.
Naquele ano, 128,8 mil agricultores familiares foram beneficiados com 297 mil toneladas de alimentos adquiridas por meio das compras feitas pela Conab. Em 2018 foram 9.675 produtores, com 23 mil toneladas e R$ 63 milhões em compras públicas operacionalizadas pela companhia.
“O PAA praticamente acabou. Eu diria que virou uma lenda. Ficou para a história, já não representa uma alternativa. Permitir que produtos disponíveis em baixo volume, mas que podem ser aproveitados, possam ser incluídos no programa, isso tudo já se perdeu. Porque o grande diferencial era a compra simultânea que a Conab realizava”, afirma Silvio Porto, o diretor que mais tempo ficou à frente da companhia, entre 2003 e 2014.
Autarquia responsável pela política agrícola e de abastecimento no Brasil, a Conab foi a principal operadora do PAA no momento de criação. Além de recursos para a operacionalização do programa, é por meio dela que o governo realiza as compras de alimentos para doação e para a formação de estoques públicos.
Em 2012 o governo Dilma Rousseff instituiu por meio de decreto a modalidade de compra institucional pelo PAA, que permite que estados, municípios e órgãos federais (hospitais, quartéis, presídios e restaurantes universitários) possam adquirir alimentos da agricultura familiar com os próprios recursos financeiros, sem a necessidade de licitação.
A mudança levou à redução da participação da Conab no programa, que passou a ter estados e municípios como atores centrais na execução. Silvio Porto considera que a modalidade de compra institucional privilegia médias e grandes cooperativas ao trabalhar com a lógica da cadeia produtiva: grandes volumes e poucos produtos.
“Perde todo o significado que foi a estratégia de fomentar o policultivo, de trabalhar com diversidade, fomentar a biodiversidade, promover processos de resgate e de promoção de hábitos alimentares”, avalia o ex-diretor.
O papel da Conab deve diminuir ainda mais com a reestruturação da autarquia, desenhada no governo Temer e levada adiante no governo de Jair Bolsonaro. A tendência é de que a companhia tenha como papel principal a prestação de informações estratégicas ao mercado agrícola.
No primeiro semestre do ano passado começaram a ser vendidas as unidades de armazenagem. Numa primeira fase, são 27 das 92 estruturas. A aposta é em reduzir a presença em áreas de atuação do agronegócio.
Em um documento obtido pelo Joio, a Superintendência de Abastecimento Social se posicionou contra o fechamento de unidades e recordou que a rede própria é fundamental para a população de baixa renda, tendo distribuído 2,3 milhões de cestas básicas entre 2015 e 2018.
Compras institucionais
Os valores do PAA Compra Institucional saltaram de 1% em 2012 para 25% em 2017, em relação aos recursos aplicados pelas modalidades operadas com orçamento específico do programa, segundo relatório da Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas – Fian Brasil.
“O PAA fortalecia mais as associações de agricultores familiares e foi perdendo espaço para a modalidade de compra institucional. Isso gerou uma mudança no impacto do programa para as organizações que são da agricultura familiar, uma grande mudança na forma como o programa era concebido. A gente tem uma perda muito grande das associações, das cooperativas”, afirma Valéria Burity, secretária-geral da Fian Brasil.
O estudo aponta que o volume da demanda e as condições das chamadas públicas para compras institucionais se concentram nas famílias mais estruturadas, deixando de fora justamente os pequenos produtores, especialmente na região Nordeste.
A modalidade do programa que mais sofreu com os cortes orçamentários foi a compra com doação simultânea, aquela em que o governo adquire da agricultura familiar para doar a pessoas em situação de vulnerabilidade alimentar, por meio de instituições como restaurantes populares, creches, asilos e entidades voltadas para o fornecimento de cestas de alimentos a populações indígenas e quilombolas.
Já o estudo do Ipea mencionado no começo do texto aponta o PAA como um dos programas mais relevantes no âmbito da agenda de segurança alimentar porque, além de combater a fome com doação, usa o poder de compra do governo para fomentar a agricultura familiar, “o que veio a gerar impactos positivos sobre a matriz produtiva, promovendo a sustentabilidade do sistema agroalimentar e o desenvolvimento rural inclusivo”.
A estratégia de atacar a insegurança alimentar em duas frentes é reconhecida como um dos fatores que contribuíram para que o Brasil deixasse o Mapa da Fome, em 2014.
“Ao fortalecer a agricultura familiar, reduzir a pobreza rural e fornecer alimentos para populações vulneráveis, constitui um exemplo da estratégia dupla de política pública voltada para as causas básicas da fome aliada à mitigação direta da fome e da desnutrição”, apontou o relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil, da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
A agricultura familiar é uma das principais responsáveis pela produção de alimentos no país. O segmento responde por 48% do valor da produção de café e banana, 80% do valor de produção da mandioca, 69% do abacaxi e 42% da produção do feijão. Os dados são do Censo Agropecuário 2017, divulgado ao final de outubro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Dificuldade de acesso
“O PAA comprava tudo. Mandioca, cará, batata, inhame. Tudo o que você conseguisse produzir. Qualquer coisa você podia entregar pra eles, desde que fosse bom. É o projeto que abriga toda a nossa diversidade. Eu costumava dizer que o PAA foi feito diretamente pros quilombos, que produzem variedade. Sempre pensei dessa forma. É o projeto que resgata a nossa cultura, mas hoje, infelizmente, a gente está ameaçado”, lamenta Osvaldo dos Santos, presidente da Associação do Quilombo Porto Velho, que integra a Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira.
A terra de Osvaldo está no extremo sul do estado de São Paulo. O Paraná está a poucos metros dali, mas o asfalto fica bem mais longe e dificulta vender para a merenda escolar ou para os mercados urbanos.
“As prefeituras vinham aqui pegar [o alimento]. Era muito importante, porque a nossa cooperativa não tem condições de fazer transporte. Não dá para ir nas nossas 17 associações, que são de diferentes lugares do território”, explica Santos.
A venda da produção para o programa federal acontecia normalmente desde 2005, garantindo a subsistência dessas famílias até 2016. “Acessar o PAA hoje é difícil porque a concorrência é muito desleal. É pouco dinheiro, as cooperativas não conseguem acessar”, afirma Santos.
Burocracia
O documento publicado pelo Ipea confirma que os agricultores estão tendo dificuldade em acessar o programa. Entre as principais queixas estão o excesso de burocracia, a dificuldade dos mais pobres em conseguir documentos, as complicações com transporte e armazenamento e a falta de organização de produtores locais em cooperativas e associações.
“Esses problemas causam também atrasos na liberação dos recursos por falta de documentação adequada. Outro ponto destacado se relaciona à grande dificuldade dos agricultores em atender às normas higiênico-sanitárias, sobretudo no caso dos produtos de origem animal”, aponta o texto.
O documento elaborado em 2019 pela Fian-Brasil também aponta que o PAA tem se fragilizado em decorrência de ações deflagradas por órgãos de controle, “em função do desconhecimento da realidade das especificidades da agricultura familiar e da inadequação da legislação sanitária para o perfil deste segmento”.
A exigência de um registro no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento para a venda de polpa de fruta e a exigência de um selo de inspeção da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para produtos de origem animal afetaram a venda da produção de populações indígenas e ribeirinhas, como a comercialização de peixe que era feita pela Associação Floresta Protegida, na Terra Indígena Kayapó, no Pará, para as escolas da região.
“Até então não precisava de nenhum documento ou podia ser um alvará sanitário. Então, eram grupos indígenas que faziam PAAs grandes pra entregar nas próprias escolas. A Associação Floresta Protegida entregava muita coisa na Terra Indígena Kayapó. Quando começou a exigência para o peixe eles até abandonaram o programa porque grande parte do recurso era pra peixe, era o que mais compensava financeiramente pra eles”, relata Leonardo de Moura, técnico do Instituto Socioambiental (ISA) que atua na região.
Para acessar o programa, os beneficiários fornecedores precisam ter uma Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), o cadastro que os identifica como agricultores familiares e permite o acesso às políticas públicas voltadas a esse segmento. Esse documento, que era inicialmente renovado a cada seis anos, teve o prazo de renovação diminuído.
Em 2017, passou de uma renovação a cada dois anos para um processo exigido anualmente, o que na prática inviabilizou a participação de muitos agricultores, em especial dos que vivem a grandes distâncias dos centros urbanos, como no caso da população indígena e ribeirinha da Amazônia.
Atendendo a uma recomendação expedida pelo Grupo de Trabalho Agroecologia do Ministério Público Federal, o Ministério da Agricultura retomou o prazo anterior, de dois anos.
A população da Terra Indígena Xipaya fica a 368 quilômetros de Altamira, em uma região isolada, de acesso exclusivamente fluvial, um deslocamento que pode levar até três dias dependendo da embarcação. Além do problema de renovação da DAP, os agricultores da região estão com dificuldade em acessar o programa devido ao período de duração do edital, que deixou de ter fluxo contínuo e passou a operar com o prazo de um mês contado a partir da abertura da chamada pública.
“Para essas comunidades, um mês é um período pequeno para colher assinaturas. Você ainda tem que renovar um documento. Torna inviável o acesso. Da Terra Indígena Xipaya até Altamira são 600 litros de gasolina que uma embarcação gasta. É caro e demorado”, explica Moura.
Uma portaria assinada pela ministra da Agricultura, Tereza Cristina, em julho do ano passado trouxe uma nova dificuldade para essas comunidades. Para que os produtores possam acessar o programa por meio de uma associação, ela deve ser representada por meio de uma DAP jurídica e para isso o quadro de associados pessoas físicas deve ser constituído por mais da metade de agricultores familiares com DAP ativa.
No caso de as DAPs estarem vencidas, a associação não consegue acessar o programa, como ocorreu com a Associação dos Moradores do Rio Iriri (Amoreri), formada por extrativistas da Terra do Meio, que estão a cerca de 400 quilômetros de distância fluvial do centro urbano de Altamira. A Amoreri vende farinha de babaçu por meio do PAA para algumas prefeituras da região.
A associação é formada por 30 pequenos produtores extrativistas, todos registrados. Mas, durante o processo de entrada na chamada pública para a venda do produto para as prefeituras, verificaram que 15 pessoas estavam com o documento vencido, o que impediu que a associação participasse do processo.
“Por não ter DAP eles julgam como se não fosse pequeno produtor. Não é porque tá com DAP vencida que não é pequeno produtor. Isso é um absurdo. A DAP começou a justificar a exclusão, então a DAP jurídica fica travada e impossibilita que as pessoas acessem o programa enquanto associação”, explica o técnico do ISA.
Em comunicado, o Ministério da Agricultura informou que, após a apresentação das informações necessárias via sistema online é realizada uma vistoria e, “caso o estabelecimento tenha condições higiênico-sanitárias estará apto a registrar seus produtos de forma automática no sistema, produzi-los e comercializá-los”.
Em relação à polpa de frutas, aponta que a Lei 13.648 / 2018 estabelece a simplificação de procedimentos de registro e rotulagem desses produtos. “Desta forma, algumas exigências que as empresas tradicionais devem cumprir não são feitas a esses agricultores. As comunidades indígenas podem utilizar dessa previsão, que foi utilizada como referência para critérios mais brandos”, diz o texto.
O MAPA informa ainda que existe uma ação da Secretaria de Agricultura Familiar, ligada à pasta, com o Ministério Público Federal no estado do Amazonas “com o objetivo de promover a inclusão de produtos dos agricultores familiares indígenas e ribeirinhos na alimentação escolar”.
Essa nota técnica firma o entendimento de que no fornecimento para alimentação escolar nas aldeias pelos próprios indígenas como autoconsumo “há possibilidade de dispensa de registro, inspeção e fiscalização, onde não haveria interferência nos hábitos alimentares dos indígenas, permitindo que tal alimento seja consumido no ambiente escolar”.
A partir desta nota técnica, inúmeras prefeituras e a Secretaria Estadual de Educação do Amazonas têm lançado chamadas públicas específicas para as populações indígenas.
“A Secretaria de Agricultura Familiar está iniciando diálogos em outros estados da região Norte (PA, AC e AP) a partir das suas respectivas câmaras de comercialização, também criadas e apoiadas pelo Projeto Mercados Verdes e Consumo Sustentável, para elaboração de normativos similares à Nota Técnica que permitiu a dispensa no AM.”
Participação Social
Uma das marcas do PAA que guiou a política de segurança alimentar no Brasil é a participação popular na concepção e na implementação. Criado no mesmo ano da retomada do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), o programa teve nesse fórum seu espaço de gestação enquanto política pública e o acompanhamento de sua implementação.
O Consea foi extinto nos primeiros dias de governo e o PAA segue a duras penas, mantendo a execução basicamente com recursos já empenhados no governo anterior.
No primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, o Grupo Gestor do Programa de Aquisição de Alimentos, órgão colegiado de caráter deliberativo, não se reuniu uma única vez.
O mesmo acontece em relação ao comitê consultivo do PAA, composto por integrantes governamentais e da sociedade civil com a finalidade de assessorar e acompanhar as atividades do programa. Um decreto presidencial de dezembro passado evidencia mais uma vez a falta de disposição para o diálogo com a sociedade na elaboração da política ao retirar a obrigatoriedade de constituição do comitê. O decreto assinado por Bolsonaro e pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra, torna o comitê temporário, com prazo de validade de um ano e estabelece o número máximo de cinco integrantes.
Merenda escolar
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) deu importante contribuição ao PAA em 2009 ao determinar por meio da Lei 11.947 que 30% da merenda escolar deve ser comprada da produção familiar. Na prática, a medida transformou o Pnae no grande mercado da agricultura familiar no Brasil. Em 2012, 80% das entidades executoras do programa compraram da agricultura familiar, sendo que 50% das entidades alcançaram os 30% de produção da agricultura familiar previstos na lei.
Até 2017, 2.704 municípios aderiram ao programa, 2.070 ainda não haviam cumprido o percentual mínimo estabelecido e 840 ainda não compravam alimentos da agricultura familiar. No ano passado, uma ameaça ao desenvolvimento do programa surgiu por meio de um projeto de lei apresentado em outubro pelo senador Izalci Lucas (PSDB-DF). O projeto de lei 5.695/2019 transfere o salário-educação, cerca de R$ 9,3 bilhões, da União para os estados e municípios.
Após pressão de organizações ligadas ao tema, o senador decidiu retirar o projeto com o argumento de que não haveria mais tempo hábil de tramitação para que os efeitos da medida fossem sentidos já em 2020.
Edição: O Joio e o Trigo