Congresso

CPI da Funai aprova texto-base que criminaliza indígenas e antropólogos

Entre os mais de 70 indiciados pelo documento há até pessoas mortas, mas nenhum ruralista

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Indígenas denunciam falta de participação dos setores impactados pela medida
Indígenas denunciam falta de participação dos setores impactados pela medida - Mídia Ninja

O texto-base do relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que foi aprovado na tarde desta quarta-feira (17), pede o indiciamento de mais de 70 pessoas, entre indígenas, antropólogos, servidores e gestores do Incra e da Funai, professores universitários e membros de organizações não governamentais.

O colegiado ainda irá votar destaques (sugestões de alteração) apresentados pela oposição. A sessão foi suspensa no final da tarde por conta do início da ordem do dia no plenário da Casa e pode retornar ainda nesta quarta. De autoria do deputado ruralista Nilson Leitão (PSDB-MT) – o mesmo que propôs o PL 6442/2016, que prevê a possibilidade de pagamento de trabalhadores rurais com casa e comida, em vez de salário –, o documento foi aprovado ainda sem dois trechos específicos que serão votados através dos destaques.

Críticos da matéria apontam que na relação de indiciados estão duas pessoas já falecidas, mas não há sequer um ruralista. Além disso, para eles, a CPI representa uma criminalização da luta pela garantia dos direitos indígenas. Eles consideram ainda que as supostas denúncias são uma estratégia da bancada ruralista para enfraquecer os órgãos que atuam na defesa das comunidades rurais, com o objetivo de oxigenar as ações do agronegócio.

Assim como ocorreu na sessão realizada ontem, nesta quarta, novamente grupos indígenas foram impedidos de assistir a sessão da CPI e protestaram do lado de fora do Congresso Nacional.

Indiciamento

Inicialmente, o relator citava cerca de 120 pessoas, mas após intensos questionamentos da oposição, que acusou o relatório de falta de provas e de perseguição até mesmo a grupos religiosos que defendem as comunidades, Leitão resolveu retirar da relação os casos de improbidade administrativa, o que fez com que o número caísse para pouco mais de 70. O relator também incluiu na lista o nome de 14 procuradores da República, que são membros do Ministério Público Federal (MPF), instituição responsável por fiscalizar o cumprimento das leis que garantem os direitos indígenas.

Ao longo das dez sessões em que o colegiado se reuniu até agora, membros da oposição têm feito intensas críticas aos indiciamentos. Durante a reunião desta quarta, a deputada Eliziane Gama (PPS-MA) destacou o fato de o documento incluir até mesmo dois antropólogos já falecidos. “O curioso é que nenhum ruralista vivo foi indiciado por esta comissão”, comparou a parlamentar, em referência a atores que movem o motor da violência no campo.

A conduta também é alvo de críticas por parte do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão vinculado à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). “É um documento tão mal construído que eles não tiveram nem mesmo o cuidado de checar se as pessoas estavam vivas. É um indicativo da desqualificação e da deslegitimação desse relatório”, criticou Cléber Buzzato, secretário-geral da entidade.

O indígena Alberto Terena, do Mato Grosso do Sul, foi o único que participou da sessão | Foto: Mídia Ninja

Buzzato e o presidente do Conselho, o bispo Dom Roque Paloshi, foram citados pelo relator, mas Paloshi foi citado como um dos nomes que devem ser retirados do relatório. O Cimi argumenta que a iniciativa estaria relacionada a um processo de criminalização da luta pela garantia dos direitos indígenas e que os representantes não tiveram chance de defesa na CPI.

“Em nenhum momento fomos chamados para sermos ouvidos. É um demonstrativo da total parcialidade desta CPI, que foi criada por ruralistas e é comandada por eles. Portanto, trata-se de um relatório sem credibilidade”, afirmou o secretário, acrescentando que nesta quarta (17) esperou por mais de duas horas do lado de fora da Câmara Federal para ter acesso ao plenário da comissão.Segundo informou Leitão, o relatório deve ser encaminhado ao MPF, à Advocacia-Geral da União (AGU) e outros órgãos.

Funai

Um dos pontos mais polêmicos do documento diz respeito à sugestão de extinção da Funai, fortemente criticada pelos opositores da CPI. Apesar da aprovação do texto-base, ainda não está evidente qual será a situação do órgão. Isso porque, nessa terça (17), Leitão informou à imprensa que teria substituído a proposta pela ideia de “reestruturação do órgão”, através da concentração, na Funai, das atividades estatais que dizem respeito à saúde e à educação dos povos indígenas. A medida seria para “qualificar o trabalho”, segundo ele. No entanto, o tucano não apresentou detalhes da referida reestruturação.

Além disso, a oposição se queixou de que a mudança não foi oficialmente incluída no relatório. “Eu tomei as decisões de alteração durante as sessões e o documento ainda será alterado”, disse à imprensa nesta tarde, logo após a suspensão da reunião.

Contexto

Para membros da oposição e das entidades que atuam na defesa dos direitos humanos, a criação da CPI da Funai estaria diretamente relacionada ao contexto de avanço conservador que resultou no golpe parlamentar de 2016, quando a então presidenta da República, Dilma Rousseff (PT), foi deposta pelo Congresso Nacional. 

O embrião da CPI foi gestado antes mesmo do afastamento da petista. Em outubro de 2015, a Câmara Federal instalou o primeiro colegiado com esse objetivo. No entanto, a comissão não conseguiu finalizar os trabalhos dentro do prazo regimental e não houve apreciação de relatório final, como prevê o rito de uma CPI.

Apesar disso, a bancada ruralista, em associação direta com a presidência da Casa, conseguiu criar uma nova CPI, reeditando o formato da primeira, e tendo à frente o mesmo presidente, o ruralista Alceu Moreira (PMDB-RS), e o mesmo relator.

Violência no campo

Para os opositores, a articulação da CPI estaria conectada ao contexto de aumento da violência no campo. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), 2016 foi o ano mais violento para as comunidades numa série histórica de 32 anos, com um total de 1.079 conflitos por terra. Ao todo, 61 pessoas foram assassinadas, entre lideranças e trabalhadores rurais, configurando um aumento de 22% em relação a 2015.

O avanço conservador seria, na avaliação dos críticos da CPI, responsável direto pelo empoderamento dos diversos atores que patrocinam a violência contra as referidas comunidades, os mesmos que estariam por trás da articulação da CPI, alinhada com os interesses do agronegócio.

“O relatório desta CPI vem para agravar esse problema”, apontou a deputada Eliziane Gama (PPS-MA) durante os debates na comissão.

Outro lado

Provocado pela oposição por conta do perfil ruralista e por supostos interesses relacionados à desidratação dos direitos das populações do campo, Nilson Leitão negou as críticas de que estaria favorecendo os projetos políticos do agronegócio. “Não houve perseguição alguma neste relatório. (...) Demonizar o setor produtivo é algo que não ajuda o país”, disse.

Edição: Vanessa Martina Silva