Direitos indígenas

Sob protestos, Câmara Federal prepara votação do relatório da CPI da Funai

Oposição acusa bancada governista de promover uma ofensiva contra indígenas, quilombolas e sem-terra

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Indígenas foram barrados e não puderam acompanhar primeiro turno da sessão
Indígenas foram barrados e não puderam acompanhar primeiro turno da sessão - Mídia Ninja

O relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) pode ser votado ainda na noite desta terça-feira (16) na Câmara Federal. De interesse da bancada ruralista, o documento pede o indiciamento de cerca de 100 pessoas por supostas irregularidades relacionadas a demarcações de terras. Membros da oposição e entidades de defesa dos direitos das comunidades rurais acusam a bancada governista de promover uma ofensiva contra indígenas, quilombolas e sem-terra através do enfraquecimento dos órgãos que atuam na defesa desses grupos. A iniciativa seria voltada ao favorecimento de interesses políticos do agronegócio.

Com prazo final de conclusão marcado para o próximo dia 26, a CPI realizou nesta terça (16) mais uma sessão de debate sobre o tema, nos encaminhamentos finais para a votação do relatório. A sessão foi suspensa no começo da tarde por conta do início da ordem do dia no plenário da Casa, mas pode retornar a qualquer momento.

Lideranças indígenas que tentaram acompanhar a discussão foram barradas na entrada na Câmara e protestaram do lado de fora do Congresso Nacional durante a sessão.

Relatório

O relatório da CPI, produzido pelo deputado ruralista Nilson Leitão (PSDB-MT), tem mais de 3 mil páginas e pede o indiciamento de membros do Incra, da Funai, de organizações não governamentais e especialistas. Entre outras coisas, Leitão solicita que o Ministério da Justiça (MJ) reveja a análise de delimitações de territórios que estão em andamento em seis estados (Bahia, Pará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e Rio Grande do Sul).

Para oposicionistas, o alvo seria os direitos das comunidades rurais, sobretudo os indígenas, para favorecer o avanço do agronegócio sobre os territórios desses grupos.

“Esta CPI não cumpre função alguma no sentido de contribuir com a questão da terra no Brasil. É mais uma iniciativa pra servir aos opressores, os mesmos que durante tanto tempo usaram a terra como meio de manutenção das oligarquias que atuam na política, no Judiciário e no Estado como um todo”, criticou o deputado João Daniel (PT-SE), membro do Núcleo Agrário do PT na Câmara.

Quando apresentou o relatório, no início deste mês, Leitão sugeriu a extinção da Funai. Ele defendeu que a pasta fosse substituída por um órgão ligado ao MJ para concentrar as atividades estatais que dizem respeito aos povos indígenas. O objetivo seria “a qualificação do trabalho”, segundo declarou o tucano.

Para indígenas e opositores, a proposta seria uma tentativa camuflada de enfraquecimento da política indigenista no país. “Eles querem acabar com a Funai porque ela é um autarquia que tem um grau de independência pra implementar políticas de Estado, não de governo; querem que o governo possa tomar uma decisão de paralisar de vez as demarcações de terra”, disse o deputado Nilto Tatto (PT-SP).

Nesta terça, durante a sessão da CPI, Leitão disse à imprensa que teria retirado do relatório a proposta de extinção da Funai e que, em troca, estaria recomendando a necessidade de “reestruturação do órgão”.

Caso seja aprovado, o relatório da CPI será encaminhado ao Ministério Público Federal (MPF), à Polícia Federal, ao Supremo Tribunal Federal (STF) e aos governadores dos estados a que pertencem os indiciados, segundo informou o tucano.   

Voto em separado

Durante a sessão, a bancada do PT, juntamente com os deputados Glauber Braga (PSOL-RJ) e Janete Capiberipe (PSB-AP), apresentou um voto em separado, uma espécie de relatório paralelo para ser anexado ao acervo da CPI.

No documento, os oposicionistas criticam a condução da CPI e afirmam que as denúncias apresentadas pelo relator seriam inconsistentes e sem materialidade. Além disso, os parlamentares pedem o aprimoramento das políticas publicadas direcionadas às comunidades, incluindo a retomada imediata das demarcações de terras indígenas, paralisadas há cerca de um ano. Eles também criticam a negativa, por parte do colegiado, de requerimentos feitos por eles ao longo da CPI.   

 “Não foram apurados, por exemplo, os casos de financiamentos de milícias armadas que atuam em conflitos de terra, principalmente no Mato Grosso do Sul”, apontou Tatto, acrescentando que esse tipo de averiguação seria fundamental para a abordagem dos direitos das comunidades rurais.  

Segundo o petista, o relatório paralelo irá tramitar em conjunto com o relatório oficial e deve ser encaminhado às autoridades competentes para a solicitação de providências cabíveis.

“Criminalização”

Entre as pessoas citadas e indiciadas no relatório, estão 23 antropólogos – dois deles já falecidos – que atuaram em processos de demarcação de terras indígenas produzindo laudos técnicos que ajudaram a embasar a delimitação dos territórios. Entre outras coisas, Leitão alega que teria havido fraudes e falsificação de estudos.

A presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Lia Zanotta Machado, argumenta que todos os procedimentos foram feitos dentro da lei e que o trabalho da categoria estaria sendo incompreendido no debate político, dominado por interesses conservadores.

“Para o antropólogo fazer a análise da organização social, do histórico da situação em foco e da etnicidade, ele precisa ser aceito pela comunidade local. Eles [os ruralistas] estão alegando que, se o antropólogo, ao final do laudo, agradece à comunidade por ter sido recebido, é porque haveria aí um conluio pra autorizar a demarcação. Isso não tem qualquer fundamentação. É um absurdo”, rebate Machado.

Reforçando as críticas feitas pelos parlamentares de oposição, a presidente considera que o relatório estaria orientado para a “criminalização” do trabalho técnico-científico dos referidos profissionais, com o objetivo de respaldar os projetos políticos da bancada ruralista.

“Eles querem criminalizar os antropólogos pra depois aprovar a medida que coloca a demarcação de terras indígenas sob a autoridade do Congresso”, aponta a presidente, em referência à  Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que transfere do Executivo para o Legislativo a competência sobre as referidas delimitações. A proposta tem sido alvo de fortes críticas por parte de indígenas e entidades que defendem os interesses das comunidades.

Histórico

Esta é a segunda vez que a Câmara Federal realiza uma CPI da Funai e do Incra. O primeiro colegiado foi instalado em outubro de 2015, mas a comissão não conseguiu concluir os trabalhos dentro do prazo e não houve apreciação de relatório final, como pressupõe o rito de uma CPI.  

Em novembro do ano passado, após intensas articulações da bancada ruralista com a presidência da Casa e no embalo do contexto de avanço conservador pós-golpe, os governistas conseguiram criar uma nova comissão, nos mesmos moldes e tendo à frente o mesmo presidente, o ruralista Alceu Moreira (PMDB-RS), e também o mesmo relator.  

Relator

Membro da bancada ruralista, Nilson Leitão (PSDB/MT) é o presidente da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), que reúne 222 deputados e 24 senadores alinhados com os interesses do agronegócio. Entre outras coisas, é autor do polêmico projeto de lei (PL) 6442, que dispõe sobre as normativas do trabalho rural, incluindo pontos como jornada de até 18 dias seguidos sem folga e venda integral de férias. O PL tem sido apontado por opositores como uma tentativa de legalização de trabalho análogo à escravidão.

Leitão também é membro do colegiado que avalia a PEC 215, votou a favor da alteração do Código Florestal (Lei 12.650) e foi um dos principais articuladores da criação da CPI da Funai. Entre outras coisas, é alvo de inquéritos que apuram suspeitas de crimes de responsabilidade, formação de quadrilha, corrupção passiva e fraudes à Lei de Licitações. Ele nega todas as acusações.  

Segundo levantamento do site “A república dos ruralistas”, a campanha de Leitão à Câmara Federal em 2014 contou com doações de mais de R$ 500 mil por parte de ruralistas e empresas de bebidas e de exportação de açúcar. 

Edição: Vanessa Martina Silva