No dia 9 de janeiro de 2003 foi promulgada a lei federal 10.639, que implementa a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana no currículo escolar dos níveis fundamental e médio. Esta lei alterou a 9.394, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional (conhecida como LDB). Em março de 2008 a lei 10.639 foi modificada pela 11.645 que inclui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura indígena.
A promulgação da referida lei consiste no atendimento do governo federal brasileiro a uma das demandas históricas da luta do movimento negro contra o racismo: o reconhecimento da participação dos africanos e seus descendentes como sujeitos em nossa história, ou seja, como agentes sociais dotados de valores e saberes, que foram fundamentais para nossa formação cultural (o mesmo vale quando nos referimos à temática indígena).
A ideologia eurocêntrica que vigora desde os tempos de colonização aos dias de hoje, afirmou a superioridade branca sobre os negros, indígenas e asiáticos, reduzindo a história e a cultura destes povos a meros apêndices do “processo civilizador europeu”. Quando não reduziu, simplesmente negou a existência destas histórias e culturas. Assim, o branco: reduziu – ou negou – simbolicamente a humanidade dos africanos, ameríndios e asiáticos a fim de dominá-los materialmente (o que é simbólico, tem consequências materiais e vice-versa); afirmou a inferioridade destes povos para justificar a exploração da mão-de-obra, o genocídio, a apropriação de seus territórios e matérias-primas para acumulação de capital das classes dominantes europeias e seus descendentes espalhados pelo mundo.
No Brasil o peso da redução simbólica e da dominação material recaiu, sobretudo, nas costas dos negros e indígenas, o que hoje explica a necessidade da implementação de políticas públicas reparatórias, como as ações afirmativas e as referidas leis 10.639 e 11.645 contemplando ambos. Embora nos dias de hoje a afirmação de uma superioridade biológica não seja usual como fora no passado, a ideia de uma superioridade cultural branca (que inclui intelecto, estética e religião) ainda vigora. Isso pode ser notado no privilégio que é dado para tudo o que é de matriz europeia (ou ao menos se aproxima desta matriz) nos meios de comunicação, e nas instituições onde conhecimento é construído, como a academia, os museus, e as escolas.
Os espaços de cultivo do saber são espaços de poder. A prioridade dada à história e à cultura europeia e euro-brasileira – e isso inclui autores e fontes escolhidas na produção do conhecimento – é um sintoma do racismo brasileiro, que para além do senso comum, também é produzido e reproduzido nas instituições de ensino.
A luta por leis que versem sobre o negro e o indígena na educação não é apenas pela inclusão, mas também pela revisão da história afro-brasileira e indígena do ponto de vista deles próprios, objetivando o combate ao racismo no sistema educacional vigente. Reconhecer a história e a cultura destes povos, sob uma ótica que não seja a do opressor, é reconhecer plenamente suas humanidades. Para isso é necessário combater os estereótipos reducionistas que o racismo cria, tais como: reduzir os indígenas à indolência e a preguiça; reduzir as aptidões do negro à força física, à rítmica, à lascívia. É necessário combater também as imagens pejorativas criadas sobre o fenótipo africano (sobretudo o cabelo e a cor da pele).
As leis 10.639 e 11.645 possibilitam um amparo jurídico para que sejam corrigidas as disparidades do ponto de vista étnico-racial em nosso sistema educacional. Visam um equilíbrio no que diz respeito às contribuições das diferentes etnias na formação da sociedade brasileira. No entanto, as leis por si só não garantem suas aplicabilidades.
Em um balanço de 14 anos desde a promulgação da 10.639, ainda há uma série de obstáculos sendo enfrentados pelos setores comprometidos com uma educação antirracismo: 1) o tema ainda não é tratado com a devida importância nas instituições de ensino superior que formam professores; 2) nas escolas, uma pequena parcela de educadores tem formação sobre o assunto ou envolvimento com a causa, por isso, a aplicação da lei acaba se restringindo a iniciativas individuais ou de pequenos grupos; 3) o poder público ainda não garante a formação continuada de educadores nos temas tratados na lei, o que muitas vezes acaba sendo feito por empresas privadas; 4) na prática, o poder público não exige das instituições de ensino sua aplicabilidade (visto que ela não é critério de avaliação no Ideb). Tais pontos refletem a timidez – ou má vontade – com a qual ainda são tratadas as políticas públicas de combate ao racismo.
Sem perder de vista estes e outros problemas que são colocados quando pensamos a distância entre a teoria e a prática das leis 10.639 e 11.645, podemos considerar que suas promulgações representam um passo importante na luta contra o racismo. Na medida em que estas leis alteram as diretrizes e bases da educação nacional, seus conteúdos devem ser tratados para além das demandas de negros e indígenas (embora estes sejam os protagonistas desta luta). Sendo instrumentos para a construção de uma sociedade justa e igualitária – sem perder de vista questões materiais como a desconcentração das riquezas – a implementação destas leis diz respeito a todos os brasileiros, na medida em que visa, através da educação, formar uma consciência antirracismo e, oxalá, tirar a democracia racial do mito e trazê-la para a realidade.
*Gabriel Rocha é mestre em história social pela Universidade de São Paulo. Estuda a história dos afrodescendentes e da luta antirracismo na diáspora africana.
Edição: José Eduardo Bernardes
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