A Venezuela tenta construir coletivamente um novo modelo de Justiça. Para isso, os venezuelanos votaram no domingo (15) em 28.486 juízes de paz das comunas.
Comunas são coletivos que podem variar de mil a mais de 50 mil indivíduos, formados a partir de bairros urbanos e rurais, no governo Hugo Chávez. A ideia é ser uma nova forma de organização social baseada na autogestão e diálogo permanente com o Estado, recebendo prioridade na transferência de recursos.
Ao todo, cada circuito comunal (uma subdivisão das comunas) escolheu 3 juízes de paz que serão responsáveis por buscar a mediação dos conflitos nas comunas e fazer uma articulação com outras instâncias da Justiça.
O modelo inaugurado neste final de semana reestrutura a justiça voltada para as comunas venezuelanas para, segundo o governo, fortalecer o poder popular e a participação da população na tomada de decisões.
Ao todo, 52.288 pessoas se candidatarm como juízes de paz. Dos 28.486 eleitos, 15 mil são juízes titulares e o resto são suplentes. A eleição foi realizada em 4.817 centros de votação, sendo 400 deles em territórios indígenas.
Irina Marrera é comuneira do bairro de San José e professora da Universidade Nacional da Segurança. Aos 40 anos, ela decidiu se candidatar para ser uma juíza de paz. Para isso, Marrera focou a campanha na sua percepção em relação à filosofia do trabalho de um juiz de paz. Para ela, o principal ponto é buscar a resolução de conflitos através do diálogo.
"Depois de anos trabalhando com comunas e conselhos comunais decidi me candidatar para ser juíza de paz e sei que a mediação dos conflitos na comunidade não é fácil. No entanto, dentro da filosofia da segurança cidadã, estudamos o sociólogo Johan Galtung, que defende a garantia da paz através da não violência. E eu pratico essa teoria. Acho que podemos mediar por meio de uma cultura preventiva, respeitando os direitos humanos e a participação de todos", disse ao Brasil de Fato.
Os juízes de paz terão a função de mediar e resolver por meio da conciliação os problemas imediatos das comunas. Vizinhos com som alto, dívidas em comércio e até ocupação irregular de terrenos estarão na alçada dos representantes. Se as partes não chegarem em um acordo, as causas passam para os tribunais de justiça.
Eles não terão as mesmas atribuições de um juiz público do país. O governo quer testar esse modelo dentro das comunas para que isso mude a própria relação da Justiça com a população.
A articulação com as instâncias superiores também é atribuição dos juízes de paz. Eles poderão fazer um relatório e dar um parecer sobre cada situação que não foi resolvida na própria comuna.
Segundo o governo, além de um avanço político na transmissão de poder para a população, toda essa estrutura vai ajudar a desafogar os tribunais venezuelanos. O presidente Nicolás Maduro disse nesta segunda-feira (16) que a eleição dos juízes de paz transforma não só o sistema de justiça da Venezuela, como também aprofunda a democracia participativa idealizada pelo ex-mandatário Hugo Chávez.
“Os juízes de paz nasceram diretamente das mãos e do voto do povo da Venezuela. As decadentes democracias ocidentais são democracias sem povo, sem soberania ou participação e de elites. Somos a maior garantia da paz neste país, da independência política e do exercício da soberania popular. Maneira maravilhosa de comemorar os 25 anos da Constituição, com o voto popular, para eleger os juízes de paz comunais”, disse.
Para ser um juiz de paz é preciso ser venezuelano, ter ao menos 25 anos, viver há pelo menos três anos no lugar da candidatura, não ser diretor de nenhuma organização política ou sindicato e não ser militar. Já os eleitores precisavam ter ao menos 15 anos e viver em uma comuna.
Mesmo sem precisar de competências jurídicas para analisar diferentes casos, os juízes de paz têm uma representatividade nas comunas. Primeiro por conhecerem o território e as questões particulares de cada bairro. Depois por terem sido escolhidos pela própria população para ocuparem esses cargos.
Richard Bettancourt é responsável pelos Comitês Locais de Abastecimento e Produção (Clap) de San José e afirma que é necessário que o juiz de paz tenha um "espírito conciliador" e que a eleição é a forma mais democrática de medir isso.
"Eles são escolhidos do seio da comunidade. Nesse sentido, há um reconhecimento sobre a liderança de um juiz de paz, que tenha a vocação, que tenha esse espírito de conciliar e que vai tentar lidar com todos os problemas da comuna. A ideia é que ele articule com o resto dos órgãos de justiça para que se faça de uma forma mais rápida uma eventual ação que deva ser tomada", disse.
Os juízes farão parte dos Comitês de Paz de cada comuna, que são instrumentos voltados para a análise conjunta de cada caso. De acordo com o Ministério das Comunas, todos os 28 mil eleitos neste domingo passarão por um processo de formação para que eles dominem o sistema de justiça da Venezuela.
Segundo a presidenta do Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), Caryslia Beatriz Rodríguez, o órgão fará o acompanhamento desde a formação, até a execução dos trabalhos.
A criação da Justiça de Paz, no entanto, já era determinada na Lei Orgânica da Paz nas comunas criada em 2012, mas ainda não tinha sido regulamentada. Em 2020, o projeto avançou na Assembleia e foi aprovado com o nome Lei da Jurisdição Especial da Justiça de Paz Comunal para ser executado em 2024.
Para Marrera, agora que está em vigor, o principal desafio dos juízes será fazer cumprir a lei de forma que se aproxime o máximo possível de uma resolução justa dos conflitos.
“O principal desafio é fazer cumprir as leis. Inicialmente nas comunas são as normas de convivência cidadã. Depois tem instâncias superiores, que seriam a lei orgânica das comunas, a lei de segurança cidadã e outras leis complementares, que é o que ajuda a saber seu direito. Isso não é político partidista, é saber seu direito enquanto venezuelano”, disse ao Brasil de Fato.
Para ela, os juízes de paz também terão uma função crucial no combate aos atos violentos promovidos por alguns setores da extrema direita. Esses grupos realizaram atos violentos depois da eleição que teve a vitória de Nicolás Maduro para um terceiro mandato.
“Vivemos em 29 de julho uns atos que ameaçaram quebrar a segurança das nossas comunidades. Ao longo de Caracas, diversos espaços foram vandalizados e destruídos por interesses externos e políticos. Esse tipo de coisa, nós como juízes de paz temos que garantir. E isso não tem meio de negociação”, afirmou ao Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Durão Coelho