A visita do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, aos EUA na semana passada foi envolta de expectativa sobre a possível apresentação do chamado “Plano da Vitória” ucraniano ao presidente estadunidense, Joe Biden.
Além da sua participação na Assembleia Geral da ONU, Zelensky também se reuniu com os candidatos nas eleições dos EUA, Kamala Harris e Donald Trump, buscando garantir para o ano que vem o apoio da Casa Branca à Ucrânia na guerra com a Rússia. Mas as iniciativas não reduziram as incertezas sobre o futuro do conflito.
A viagem do presidente ucraniano aconteceu no contexto da discussão sobre a possibilidade de os EUA autorizarem a Ucrânia a usar armas ocidentais de longo alcance contra a Rússia. Este é, um dos principais pontos do chamado "Plano da Vitória” que Zelensky apresentou a Joe Biden.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o diretor do Instituto Ucraniano de Política, Ruslan Bortnik, explica que o plano de Zelensky carrega um caráter confidencial, por isso seus detalhes não foram amplamente divulgados. No entanto, o analista aponta que os principais pontos do documento já são de conhecimento comum.
Bortnik afirma que segundo diversas fontes do governo ucraniano, o plano de vitória consiste em medidas militares, políticas, diplomáticas e econômicas “necessárias para fortalecer a posição da Ucrânia” e forçar a Rússia a cessar as hostilidades.
Em particular, Zelensky teria apresentado aos EUA uma lista de alvos russos para serem atingidos com as novas armas de longa distância a serem fornecidas por Washington.
“Se fala em cerca de 150 alvos no território europeu da Rússia, em alvos militares, energéticos e logísticos, que a Ucrânia quer atingir usando armas de longa distância dos EUA, em primeiro lugar com mísseis Atacams, mas também as versões de longa distância dos Shadow Storm e dos franceses Scalp. Por enquanto, não parece que os EUA tenham concordado com isso”, afirma o pesquisador.
Segundo a revista The Times, entre os pontos deste plano estão o prosseguimento da operação das Forças Armadas Ucranianas na região de Kursk, garantias de segurança para a Ucrânia por parte do Ocidente e um pedido de “armas modernas específicas”, bem como assistência financeira internacional à Ucrânia.
O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, por sua vez, observou que a Rússia trata os pontos do “plano de vitória” publicado pela mídia com moderação. “Se surgir alguma informação de fontes oficiais, é claro que iremos estudá-la”, afirmou Peskov.
De acordo com Ruslan Bortnik, a principal tese da abordagem ucraniana nesta situação está baseada na lógica "me deem mais armas e nós forçaremos a Rússia a adotar as nossas condições". “É claro que nem todo mundo na própria Ucrânia acredita nisso, mas pelo menos a expectativa é que com essa tese seria possível aumentar o apoio à Ucrânia por parte dos EUA”, afirma.
Moscou, por sua vez, não demonstra sinais de ceder a quaisquer condições de Kiev ou do Ocidente. Pelo contrário, na mesma semana, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, anunciou que a doutrina nuclear do país será alterada, flexibilizando as condições em que Moscou poderá realizar um ataque com armas nucleares, no caso de uma ameaça massiva contra o seu território.
Segundo ele, o documento passará a contemplar a possibilidade de um ataque nuclear retaliatório em caso de “informações confiáveis” sobre ataques massivos de “aeronaves estratégicas ou táticas, mísseis de cruzeiro, drones e aeronaves hipersônicas” contra o território russo.
Ao fim da viagem aos EUA, Zelensky volta para a Ucrânia sem grandes resultados. Não houve nenhum novo aceno sobre a autorização para ampliar os ataques à Rússia e, segundo fontes da Casa Branca, o chamado “plano da vitória” de Zelensky foi encarado com ceticismo pela administração de Joe Biden.
De acordo com uma publicação do Wall Street Journal, citando oficiais de alto escalão dos EUA e da União Europeia que tiveram contato com o documento ucraniano, o plano de Zelensky “não oferece um caminho claro para a vitória da Ucrânia, especialmente à medida que as tropas russas avançam no leste do país”.
A publicação aponta que a administração Biden manifestou preocupação com o fato de o plano não conter uma estratégia abrangente e ser “pouco mais do que um pedido reformulado de mais armas” e de autorizar ataques com mísseis de longo alcance.
Situação crítica no front
A dificuldade da Ucrânia em garantir as suas demandas no campo político e diplomático reflete diretamente a situação difícil que as forças do país enfrentam no campo de batalha. A última vez que a Ucrânia obteve um êxito militar concreto em sua reação à intervenção russa foi no final de 2022, quando o país conseguiu reassumir o controle de grande parte da região de Kherson, criando uma expectativa sobre uma contraofensiva em 2023.
As expectativas, no entanto, foram frustradas e a linha de frente se manteve praticamente estática. A partir do final de 2023, a Rússia retomou a iniciativa das ações militares e vem conquistando novos territórios na região de Donbass desde então.
Em um cenário de uma guerra de trincheiras, em que as partes apostam no esgotamento do inimigo, Moscou leva ampla vantagem, considerando a sua superioridade em termos recursos, artilharia e capacidade de reposição de tropas.
É esta conjuntura que impulsiona Volodymyr Zelensky a escalar a retórica na direção de ampliar o escopo da participação do Ocidente na guerra e buscar alterar de alguma forma o curso do conflito, atualmente desfavorável para a Ucrânia.
Neste cenário, o cientista político Ruslan Bortnik comenta que parte dos objetivos de Zelensky com o seu “plano da vitória” é manter o protagonismo e o controle sobre os diálogos a respeito de possíveis negociações, além de buscar “dar esperança à sociedade ucraniana e aos atores internacionais que querem o fim do conflito mais rápido possível”. Ou seja, em uma situação de aumento do desgaste internacional em relação à guerra, Zelensky busca “algumas garantias dos EUA para os próximos anos, ganhar tempo e escalar a relação entre Rússia e Ocidente para não haver diálogo sem a Ucrânia”, completa Bortnik.
Ataques a Brasil e China
Esta conjuntura explica em parte a retórica hostil com que o presidente ucraniano se dirigiu ao Brasil e à China durante o seu discurso na Assembleia Geral da ONU, que ficou marcado, em particular, pelas críticas diretas aos esforços sino-brasileiros em buscar soluções diplomáticas para a guerra
O presidente ucraniano duvidou do ‘interesse real’ do Brasil de buscar a paz e classificou as propostas apresentados por Brasil, China e países africanos como "planos tímidos de resolução". Segundo ele, tais propostas ignoram os interesses e o sofrimento dos ucranianos e dão ao presidente russo, Vladimir Putin, "espaço político para continuar a guerra".
Em meados de maio, Brasil e China apresentaram uma proposta conjunta para promover negociações de paz que contassem com a participação da Ucrânia e da Rússia, visando uma "participação igualitária de todas as partes relevantes, além de uma discussão justa de todos os planos de paz". Na ocasião, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, afirmou que tal proposta legitimaria a invasão russa em seu país.
“Talvez alguém queira um Prêmio Nobel na sua biografia política por uma trégua congelada em vez de uma paz real, mas as únicas recompensas que Putin lhe dará em troca são mais sofrimento e desastres. […] E quando a dupla sino-brasileira tenta se transformar em um coro de vozes, com alguém na Europa, na África, falando sobre uma alternativa para um mundo pleno e justo, surge a pergunta: qual é o real interesse? Todos devem entender que não se pode fortalecer o seu próprio poder às custas da Ucrânia”, disse Zelensky na ONU.
Na última sexta-feira (27), simultaneamente à assembleia da ONU, em Nova York, Brasil e China criaram um grupo de países do Sul Global para trabalhar em uma solução para a guerra. A iniciativa, liderada pelo assessor especial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Celso Amorim, e pelo chanceler chinês, Wang Yi, conta com 17 países emergentes, além da França, Suíça e Hungria, que participam como observadores.
Três países - Vietnã, Emirados Árabes Unidos e Etiópia -, no entanto, não assinaram o documento. E o presidente ucraniano também já condenou a movimentação, reforçando o seu descontentamento com a visão diplomática do conflito promovida pelo Sul Global.
Desgaste com Partido Republicano
Além de tensionar a relação com os países do Sul Global, o presidente ucraniano também teve como resultado da turnê nos EUA o desgaste com o Partido Republicano. Apesar de Zelensky ter se reunido na última sexta-feira (27) com o candidato Donald Trump em tom diplomático, a relação foi marcada por ruídos . Ao longo da semana em que Zelensky esteve no país, Trump disse que a Ucrânia “está em ruínas” e defendeu que Zelensky faça concessões a Putin.
Durante o encontro, na frente dos jornalistas e ao lado de Zelensky, Trump destacou que está pronto para trabalhar em um acordo de paz e reforçou que tem um bom relacionamento com Putin, criando um clima tenso entre os dois. “Espero que tenhamos relações melhores entre nós”, interrompeu Zelensky, arrancando risadas de Trump.
No passado, o candidato republicano havia criticado várias vezes a continuidade do apoio financeiro e militar à Ucrânia. O diretor do Instituto Ucraniano de Política, Ruslan Bortnik, comenta que, de fato, “a Ucrânia perdeu o apoio bipartidário”.
“Ficou a impressão que a Ucrânia está fazendo uma aposta especificamente nos democratas e na vitória de Kamala Harris. Mas se Kamala Harris não vencer, a liderança ucraniana pode enfrentar tempos muito difíceis em relação aos EUA”, afirma.
Neste cenário, o pesquisador afirma que o resultado da turnê do presidente ucraniano “foi acompanhada por todo um espectro de conflitos”: com os republicanos e com os países do Sul Global.
Segundo ele, a escalada na retórica com o Sul Global “possivelmente está associada à situação político-militar que se encontra agora a Ucrânia, em que cada dia é tragicamente decisivo”.
É possível que seja um preço que a Ucrânia tenha que pagar pela manutenção do apoio da Casa Branca, sejamos honestos. O conflito com os republicanos e a rejeição ao plano da China e do Brasil, pode ser que seja o preço exigido à Ucrânia pela Casa Branca para a manutenção desse apoio. Por isso são essas duas crises que surgiram […] É uma bagagem muito pesada com a qual o presidente [Zelensky] está voltando para casa”, completa.
Edição: Rodrigo Durão Coelho