ARMAS DA OTAN

Com a ampliação de ataques da Ucrânia contra Rússia, qual o risco de nova escalada da guerra?

Vladimir Putin disse que liberação para a Ucrânia atacar território russo implica na entrada direta da Otan na guerra

Brasil de Fato | São Petersburgo (Rússia) |
Ucrânia dispara contra posições russas, na região de Donetsk, em 20 de janeiro de 2024 - Roman Pilipey/AFP

O Parlamento Europeu aprovou uma resolução na última quinta-feira (18) apelando para que os países da União Europeia liberem "imediatamente" o uso de armas ocidentais de longo alcance contra a Rússia. Segundo os deputados, as atuais restrições para os ataques de Kiev em territórios russo "prejudicam a capacidade da Ucrânia de concretizar plenamente o seu direito à autodefesa".

A iniciativa europeia acontece em meio à discussão sobre a possibilidade de o Ocidente autorizar a Ucrânia a atacar o território russo "em profundidade", usando armas de longo alcance. O que está em questão, em particular, são os mísseis dos EUA ATACMS, que têm um alcance de até 300 quilômetros e dos mísseis balísticos ar-solo franco-britânicos Storm Shadow com um alcance de até 560 quilômetros.

Desde o início da guerra, o Ocidente manteve restrições sobre o uso do seu apoio militar contra a Rússia, limitando a assistência para fins defensivos. No entanto, no decorrer do conflito, os EUA e os países da União Europeia passaram a permitir ataques ucranianos em território russo, mas, ainda assim, limitando-os às regiões próximas da fronteira russo-ucraniana. Caso as restrições sejam mais uma vez abrandadas, isso pode significar uma perigosa escalada na guerra.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político Andrey Zolotaryov comentou que o lobby da Ucrânia para que o Ocidente entre mais no conflito, autorizando ataques de longa distância na Rússia, está diretamente relacionado com a difícil situação das forças ucranianas no campo de batalha.

Segundo ele, o caso da intervenção ucraniana na região russa de Kursk surpreendeu no sentido de demonstrar um certo êxito das tropas, mas o analista destaca que foi um fenômeno de caráter imprevisível que pode acontecer no decorrer da guerra, e que não foi capaz de alterar a dinâmica desfavorável da Ucrânia em segurar a defesa na linha de frente.

"Sim, inicialmente foi alcançado um êxito inicial, sim, as Forças Armadas da Ucrânia impressionaram muita gente, na Rússia e no exterior, mostrando que não é tão precisa a narrativa de que as forças ucranianas estavam por um fio e que em qualquer momento o front poderia colapsar. Mas, mais para frente, o tempo corre contra a Ucrânia", afirmou.

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Um dos motivos é a situação econômica e militar ucraniana. "Não há mais tantos recursos para segurar um comprimento tão colossal da linha de frente. Além disso, o próprio Zelensky reconhece que, das 14 novas brigadas militares, está sendo possível suprir com equipamento e armamento apenas quatro delas", analisa.

"Neste contexto, há um problema econômico interno na Ucrânia. Há um déficit de 500 bilhões de Hryvnia [US$ 12 bilhões ou R$ 66 bi]. Para uma economia como a Ucrânia, isso é muito sensível. Um quarto do orçamento ucraniano vai para os militares. O que isso pode gerar? Está muito claro que não se compra uma vitória com dinheiro, mas a ausência de dinheiro pode gerar derrota. O Kremlin entende isso e, portanto, aparentemente deve pressionar a Ucrânia até conseguir uma capitulação", acrescenta.

Desta forma, o alcance limitado da intervenção ucraniana em Kursk, por um lado, e a continuidade da ofensiva russa em Donbass, mais ao sul do front, impõe à Ucrânia a busca de uma nova forma manter a sua defesa nos territórios do leste do país, e a única saída é um novo incremento no tipo de apoio militar ocidental. Uma eventual decisão neste sentido pode representar uma nova ultrapassagem das "linhas vermelhas" da Rússia no conflito e levar a uma escalada mais perigosa.

Entenda o contexto

Durante a semana passada, reportagem do jornal britânico The Guardian, citando fontes do governo britânico, informou que a Grã-Bretanha havia permitido que a Ucrânia utilizasse os mísseis de cruzeiro Storm Shadow para atingir alvos na Rússia. No entanto, isso não foi relatado oficialmente. Já o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, durante uma visita a Kiev na mesma semana, deu a entender que Washington pode permitir que a Ucrânia utilize mísseis balísticos estadunidenses para atacar a Rússia.

Na sexta-feira (13), o presidente russo, Vladimir Putin, foi categórico ao comentar a possível liberação à Ucrânia e declarou que este passo implicaria em um envolvimento direto da Otan na guerra contra a Rússia.

"Esta não é uma questão de permitir ou não que o regime ucraniano ataque a Rússia com estas armas. É uma decisão sobre se os países da Otan estão diretamente envolvidos no conflito militar ou não. Se essa decisão for tomada, isso significará nada menos do que a participação direta dos países da Otan– os EUA, os países europeus – na guerra na Ucrânia. Se for esse o caso, então, tendo em conta a mudança na natureza do conflito, tomaremos as decisões apropriadas com base nas ameaças que enfrentaremos", disse.

No mesmo dia, após a forte declaração do presidente russo, uma grande expectativa se criou sobre a possibilidade da autorização ser anunciada durante o encontro entre o presidente dos EUA, Joe Biden, e o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, em Washington. No entanto, nenhuma decisão foi tomada, e a autorização para Kiev usar armas de longo alcance permaneceu em suspenso.

A porta-voz da Casa Branca, Karine Jean-Pierre, anunciou que “não houve nenhuma mudança de política” como resultado da reunião entre Biden e Starmer. Já o diretor de Comunicações do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, John Kirby, observou que os EUA nunca deixaram de “levar a sério as ameaças de Putin”. Segundo ele, o presidente russo “provou que é capaz de escalada e agressão”.

Mas ao mesmo tempo, a ampliação dos ataques está longe de sair de pauta. O porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Matthew Miller, afirmou que, juntamente com os seus parceiros, os EUA ainda estão apenas discutindo a possibilidade de usar armas ocidentais contra a Rússia. Ao comentar a decisão do parlamento europeu de pressionar os chefes de Estado a liberar os ataques, o porta-voz afirmou que "cada país tem o direito de decidir por si mesmo se concede ou não a permissão apropriada à Ucrânia".

Foi a mesma linha adotada pelo secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, que saudou as negociações para ampliar os ataques e afirmou que a decisão para atacar a Rússia em profundidade deve ser tomada pelos membros da aliança de forma independente.

Retórica de diálogo e escalada inevitável

Paradoxalmente, apesar do aumento da tensão entre a Rússia e o Ocidente, tanto no discurso, como na magnitude dos ataques entre Rússia e Ucrânia, nos últimos meses foi notória uma mudança de retórica das partes em conflito. Cada vez mais o termo "negociação" passou a aparecer nos discursos oficiais, indicando que há interesse de buscar uma resolução para a guerra.

Por um lado, em julho Putin falou em condições que permitiriam um cessar-fogo imediato. Por outro, Kiev suavizou as restrições sobre diálogo com a Rússia e reconheceu a possibilidade de incluir Moscou em uma futura cúpula de paz. E outros sinais de promoção para negociações foram enviados por países como Turquia, Alemanha e Áustria.

No entanto, as condições que Ucrânia e Rússia vêm apresentando para este cenário ainda se mostram bastante incompatíveis. Com a intensificação da ofensiva russa em Donbass, a operação ucraniana na região russa em Kursk, a perspectiva é que as partes ainda vão buscar aumentar as suas vantagens no campo de batalha. Para Andrey Zolotaryon, o cenário mais provável no horizonte é de uma escalada do conflito.

"No meio do ano havia muita discussão sobre a possibilidade do fim da guerra, sobre a interrupção das ações militares, mas infelizmente a situação mostra que isso não acontecerá no próximo mês. A situação irá objetivamente na direção de uma escalada do conflito", afirma.

Segundo o analista, enquanto a Rússia obtém vantagem no campo de batalha e a Ucrânia, apesar das dificuldades, ainda tem recursos para resistir, não parece haver janela para concessões de nenhuma das partes.

"Quando se começa a falar de necessidade de negociações, esse é um sinal de que existe algo acontecendo nos bastidores, mas antes que as partes se sentem à mesa de negociações, um mínimo de 1,5 a 2 meses de escalada é o que nos espera, […] Por enquanto, a aposta do Kremlin, pelo que eu vejo, é de pressionar a Ucrânia com força militar até um estágio de plena falta de recursos. Nas condições atuais, tanto de Kiev, quanto do Kremlin, os recursos não estão esgotados. Sim, Kiev vive uma situação muito mais difícil, mas eles não estão esgotados. Isso quer dizer que a guerra pode se manter. Este é um cenário de inércia", completa.

Edição: Rodrigo Durão Coelho