Recentemente vimos se iniciar um debate sobre a frase Do Rio ao Mar, associada aos protestos por uma "Palestina Livre", e considerada como expressão antissemita pelas principais organizações da comunidade judaica. Foi o que aconteceu no caso do mural feito no contexto da jornada de "Murais pela Palestina", organizada pelo MST, onde o artista Kleber Pagu fazia um obra com a referida frase.
O incômodo da comunidade, e seu enorme poder de influência, levou ao cancelamento do patrocínio do projeto pela empresa MC tintas, e em alegada conversa com o Instituto Brasil Israel (IBI), sua diretora executiva, Manoela Miklos afirmou que o artista "seguiu defendendo a causa que o comove, mas mudou de ideia sobre como fazê-lo". O resultado foi que a pintura foi concluída, mas a frase do "rio ao mar" foi excluída. O que causa tanto espanto e rejeição a estas palavras? Islamofobia.
Em comunicação pelas suas redes sociais, o mesmo instituto, considerado como um porta-voz de um setor mais progressista da comunidade judaica, dizia que "Palestina Livre, do Rio ao Mar" significaria "expulsar ou massacrar os 8 milhões de não palestinos que vivem nesta terra". Eu queria discutir neste curto artigo um pouco do que está por trás desta ideia, que tem inclusive levado a casos de judicialização e criminalização de ativistas que pronunciam a frase, acusados de apoiarem um suposto genocídio do povo judeu.
Vamos começar do começo. Quem pede liberdade, busca ser livre de alguma coisa. Liberdade não é algo tão abstrato assim. Quando nos referimos à Palestina, o pedido por liberdade vem das sistemáticas violações de direitos humanos ao qual os habitantes daquele território vêm sendo submetidos há mais de 70 anos.
As renomadas Human Rights Watch, Anistia Internacional, e inclusive a israelense B'Tselem já relataram, por meio de extensa pesquisa e coleta de dados, que Israel impõe um regime de apartheid aos palestinos. Isso não é matéria de debate, é dado, ciência. Portanto quando se discute a Palestina Livre do Rio ao Mar estamos falando da demanda de uma população pelo fim de um regime de discriminação racial institucionalizado, que como constatam os referidos relatórios, incluem a Cisjordânia, a Faixa de Gaza e Israel.
Ou seja, esses territórios todos, do rio Jordão ao mar Mediterrâneo estão sujeitos a um regime de apartheid que configura crime no direito internacional, pelo Convenção Internacional sobre a Supressão e Punição do Crime de Apartheid, aprovada pela assembleia geral da ONU em 1973. Como então o debate sobre fim do apartheid desperta o receio por parte da população judaica de ser expulsa, ou massacrada?
Diversas discussões podem acontecer a partir desta pergunta, que sai de um debate sobre direito internacional, e adentra a psicologia dos israelenses. Mas um pensador precisa se destacar aqui: Edward Said, antropólogo palestino. Na sua principal obra, discute o termo que ele mesmo cunhou, Orientalismo. Refere-se a um estudo sobre a representação que é feita dos povos árabes pelos europeus ao longo dos séculos 18 e 19, período de expansão da atividade colonial principalmente no continente Africano e no Oriente Médio.
Em sua obra, Said demonstra como os árabes são sempre retratados como bárbaros, sanguinários, não civilizados, e incapazes de se auto governar ou administrar. Obviamente, como pretexto para legitimar a colonização por parte dos europeus que seriam aqueles que trariam a ciência, a civilização e o progresso.
A retórica israelense de que seriam a única democracia do Oriente Médio, por exemplo, demonstra essa visão orientalista. Temos que concordar que, de fato a região não seja um exemplo democracia, mas como mostrado anteriormente, Israel também não é regime democrático, e não pode sê-lo enquanto implementar um apartheid à população palestina. A "democracia" ao qual Israel se refere não é a do seu regime, mas a do seu alinhamento com os interesses do Ocidente, mais especificamente dos EUA. Como disse Netanyahu, primeiro ministro de Israel, em seu discurso ao congresso estadunidense no dia 25 de julho deste ano:
"(...) o "eixo de terror" do Irã confronta a América, Israel e os nossos amigos árabes. Não se trata de um choque de civilizações. É um choque entre a barbárie e a civilização. (...) No entanto, no coração do Médio Oriente (...) há uma orgulhosa democracia pró-americana - o meu país, o Estado de Israel.(...) E nós também ajudamos a manter as tropas americanas fora do território enquanto protegemos os nossos interesses comuns (...)"
Está evidente quem são os aliados de Israel, quais são seus interesses comuns, e que o que se entende por "democracia" não é apenas o regime político, mas o caráter de aliado aos EUA. Por isso, quando se enfrenta este regime, não está só enfrentando o aparheid, mas o domínio ocidental sobre as populações árabes em geral. Qual então seria a solução, e qual o medo da Palestina Livre? Pensar em democracia, é pensar em direitos iguais. E ter direitos iguais exige reconhecer a civilidade e capacidade de convivência pacífica e em sociedade. Em termos bem simples, reconhecer no outro um igual.
Isso não ocorre em Israel, e por isso o medo deste suposto massacre ou expulsão. Igualdade entre israelenses e palestinos, compartilhar um parlamento, ter um só líder eleito democraticamente, o fim do apartheid, isso só se transforma em ameaça para os israelenses se compreendidos os palestinos pela ótica orientalista: bárbaros, não civilizados, incapazes de se administrar e progredir. Porém um fato aqui deve ser lembrado, quem está expulsando quem de sua terra? Quem está massacrando quem? Parece que Israel tem se portado como o perpetuador do seu maior pesadelo, basta ver as imagens dos passados mais de 10 meses da ofensiva à Faixa de Gaza.
Seja pela rejeição à igualdade entre israelenses e palestinos, seja pela proposta de dois Estados (que visa segregar populações ao invés de agregar), a motivação que se transfigura em argumentos complexos e discussões sem fim é simples: Islamofobia. E vale destacar, que o medo que a população israelense sente é verdadeiro.
O mesmo medo que a população branca dos EUA tinha dos ex-escravizados após a guerra civil que incentivou a distribuição de armas à população (branca) e a criação das leis de segregação racial. O mesmo medo que levou à população afrikaner na África do Sul a instituir o regime de apartheid em 1948, que supostamente tinha como principal argumento a segurança. O mesmo medo que faz com que as elites e classes médias brasileiras incentivem a militarização ainda maior das polícias, e sua ação truculenta principalmente em relação à população negra e marginalizada. Este medo existe, porém ele provém de uma visão racista, na qual o outro é visto como inapto à participação na sociedade, e na qual a violência é a única linguagem que compreende.
O debate sobre a islamofobia no Brasil ainda é incipiente. Pouco se discute sobre como no nosso dia a dia ele é presente e quanto muçulmanos e árabes são vistos como uma ameaça na nossa sociedade. Isso permite que se possa pensar que o combate a um regime de apartheid represente o massacre de 8 milhões de judeus sem que ninguém levante o dedo para dizer: isso é Islamofobia!
*Shajar Goldwaser é jornalista independente, graduado em Relações Internacionais e membro do coletivo Vozes Judaicas por Libertação
**Este é um artigo de opinião e não expressa necessariamente a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Durão Coelho