Mineração, conflito fundiário, violência no campo, mudanças climáticas: o que isso tem haver com segurança alimentar e protagonismo dos povos tradicionais? Esta edição do Bem Viver, programa do Brasil de Fato, traz algumas possíveis respostas com uma conversa com a cozinheira, produtora cultural e ativista Tainá Marajoara.
No coração de Belém, ela abre as portas do Iacitatá, espaço de cultura alimentar de base comunitária onde 100% dos alimentos são oriundos de aldeias, quilombos e assentamentos do Pará. Muito além de um restaurante, é um espaço pedagógico que se insere nas lutas por terra e soberania alimentar.
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Autora do conceito de cultura alimentar, Tainá participou diretamente dos debates e articulações para que a comida fosse considerada como cultura no Brasil, por meio de lei de 2013, mas aponta os desafios a serem superados.
Entre eles, destaca especialmente o racismo alimentar e a expropriação das capacidades dos povos originários e comunidades tradicionais.
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"Essa colonização contemporânea também coloca a nós, enquanto povos da região Norte como esse povo que não conseguiu se estabelecer ao longo do tempo pelos seus próprios saberes e suas próprias competências, mas não somos nós que não aprimoramos os nossos conhecimentos e nossas técnicas, porque o que a gente sempre soube fazer foi o melhoramento genético. Se a gente consome cupuaçu é por conta do melhoramento genético, o pequi é por conta do melhoramento genético indígena", explica.
Confira alguns trechos da entrevista:
Brasil de Fato - O que podemos entender por cultura alimentar?
Tainá Marajoara - A gente distingue cultura alimentar de gastronomia porque de acordo com o conceito que a gente cria de cultura alimentar, cultura alimentar vai ser o saber, o falar, curar, cuidar, cultivar... os processos de arquitetura, de construção artesanal. As casas de farinha são processos de uma arquitetura tradicional, ainda que ela não tenha o nome de arquitetura, então todos esses processos fazem parte das culturas, porque carregam ancestralidade, carregam identidade, são aquilo que a gente se reconhece nele. Nós nos reconhecemos nele, e não em uma lata de sopa, nós não nos reconhecemos em um avião que joga veneno e contamina crianças, mas a gente se reconhece nos roçados.
Qual a importância de cardápios sazonais?
O cardápio fixo é para quem acha que a cultura é absolutamente imutável, assim como a natureza pode ser padronizada e não é isso que a gente faz. A gente respeita a terra, respeita o tempo da natureza e respeita os ciclos, isso é muito importante. Isso é muito importante porque além de não massacrar a terra, além de não esgotar a lavoura, a gente também está levando a diversidade para nossos corpos e paladares. Isso enrique nosso paladar e também coloca teu corpo, teu organismo, com outras formas de nutrientes e faz bem para todo mundo.
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E quando falamos disso em um estado que é como o Pará, um dos nossos maiores massacres simbólicos é de nos boicotar, de nos censurar e de nos impedir acesso a financiamentos, a fomentos e a espaços do poder público, como por exemplo feiras internacionais de turismo, iniciativas de comercialização, agora de clima, que está sendo veiculado todo o tempo por causa da COP-30.
Assim como em outras áreas da cultura, na alimentar os sentidos, as simbologias e as memórias também sofrem silenciamento e apropriação. Como a gente pode perceber e combater esse racismo no dia a dia?
O racismo alimentar é uma das partes mais cruéis da gourmetização. Ninguém fala sobre isso, porque nenhum chefe vai querer ser racista, mas quando se quebra um processo estético sobre aquilo que vai para o prato, é porque imediatamente a estética local é negada, mas a estética não é dissociada do conhecimento tradicional, da cultura.
A estética do povo preto, dos povos indígenas, da periferias, as nossas culturas populares que também tem suas formas especiais de colocar um prato à mesa, de trazer uma cuia, uma tigela, um alguidar, isso é negado pela gourmetização, porque é sinônimo de qualidade aquela cozinha branca, norte centrada, que seja europeizada ou que venha da américa do norte, como um processo de higienização estético e visual, que vai olhar aquilo com o ar que acompanha esse discurso de dizer que isso é um passo civilizatório na cozinha, porque é uma cozinha que foi sistematizada, com técnica, aprimorada, diferente das cozinhas dos povos indígenas e tradicionais. Então esse discurso que coloca essa cozinha europeizada como superior à nossa, é um discurso colonialista.
E não é só uma apropriação cultural, a gente precisa falar isso de uma forma muito séria. É uma expropriação das nossas capacidades enquanto povos originários e comunidades tradicionais, e aqui na região Norte a gente sofre o colonialismo interno onde essa expropriação também é acima das nossas competências, porque aquilo tudo que a gente sempre fez, inclusive tirando, colhendo, sabendo fazer a tiração do óleo do bicho, as fazeções de cultura alimentar, os processos de extrativismo, de coleta de colheita...
Essa colonização contemporânea também coloca a nós, enquanto povos da região Norte como esse povo que não conseguiu se estabelecer ao longo do tempo pelos seus próprios saberes e suas próprias competências, mas não somos nós que não aprimoramos os nossos conhecimentos e nossas técnicas, porque o que a gente sempre soube fazer foi o melhoramento genético. Se a gente consome cupuaçu é por conta do melhoramento genético, o pequi é por conta do melhoramento genético indígena. As nossas grandes capacidades de conhecimentos complexos sobre medicina, alimentação, produção de alimentos, cultivos, águas e tudo isso que é visto hoje como sustentável e como esse futuro ancestral colocado muitas vezes como greenwashing para a indústria de alimentos é o que a gente vem fazendo, então alguém não tem essa capacidade de compreender a complexidade de tudo isso que a gente faz e que isso atravessa milênios, mas a dominação pelo capital, a dominação pela força, porque é isso que se vê em Gaza, é uma dominação pela arma sob um povo extremamente sábio e é isso que também se tenta fazer na Amazônia, quando esse alto índice de conflito agrário acontece, mas uma liderança tombada é um guardião de alimentos a menos, aquela sindicalista assassinada guardava sementes, ela não usava semente transgênica. O conflito agrário tem um impacto direto à segurança e soberania alimentar.
Premiar um prato onde as nossas formigas precisam ser cobertas de ouro para aquele que detém o acumulo da riqueza consiga achar ela apetecível, isso é o ápice, a síntese, o resumo histórico do processo de colonização onde a sociobiodiversidade, o conhecimento tradicional precisa ser superado pelo garimpo. Então reconhecer isso como além de uma apropriação, uma expropriação e uma aniquilação é urgente.
Quais os desafios da cultura alimentar hoje?
O maior desafio hoje, para a cultura alimentar é a própria compreensão do Ministério da Cultura sobre o conceito de cultura alimentar e os impactos positivos que a gente pode gerar não só para o Brasil, mas para o mundo, porque a gente traz esse acumulo histórico de uma jornada, onde em 2013 a gente provoca um marco histórico mundial quando o conceito de cultura alimentar atinge o espaço público, é colocado no campo de discussão que foi a Conferência Nacional de Cultura e lá é formalizado o Colegiado Setorial de Cultura Alimentar, a partir da aprovação da moção 094, então isso é um marco histórico. A partir daí passa a incidir junto à FAL, junto a outros ministérios como da saúde, do desenvolvimento agrário, todos fazendo diálogos transversais, por exemplo, o meio ambiente, onde a gente estabelece nas metas de que a cultura alimentar é um grande fator de mitigação do sofrimento climático e uma grande contribuição para que a gente consiga ter emissões de baixo carbono.
Outro ponto é conseguir que as políticas hoje, em 2024, agora no governo Lula, consigam ter a dimensão do que a gente está trabalhando, especialmente no Ministério da Cultura, porque ele provoca retrocessos quando divide no mesmo edital, cultura alimentar e gastronomia, quando ele coloca no mesmo edital que povos do campo são todos os povos, não somos. É preciso respeitar a 169 e a OIT, é preciso respeitar a alteridade dos povos e isso é cultura alimentar.
E tem mais...
O programa traz também a história de mais 15 anos do Iala, Instituto de Agroegolocia Latino-Americano, que atua na Amazônia trazendo formação e conhecimentos que fortalecem a floresta.
No Recife (PE), hortas agroecológicas transformam a vida de mulheres com renda e comida saudável.
Tem receita com a chef Gema Soto para transformar aquele pão velho numa deliciosa torta.
A Pequena África: o berço do samba no Rio de Janeiro conta a história do Brasil que não pode ser esquecida.
Quando e onde assistir?
No YouTube do Brasil de Fato todo sábado às 13h30, tem programa inédito. Basta clicar aqui.
Na TVT: sábado às 13h30; com reprise domingo às 6h30 e terça-feira às 20h no canal 44.1 – sinal digital HD aberto na Grande São Paulo e canal 512 NET HD-ABC.
Na TV Brasil (EBC), sexta-feira às 6h30.
Na TVCom Maceió: sábado às 10h30, com reprise domingo às 10h, no canal 12 da NET.
Na TV Floripa: sábado às 13h30, reprises ao longo da programação, no canal 12 da NET.
Na TVU Recife: sábados às 12h30, com reprise terça-feira às 21h, no canal 40 UHF digital.
Na TVE Bahia: sábado às 12h30, com reprise quinta-feira às 7h30, no canal 30 (7.1 no aparelho) do sinal digital.
Na UnBTV: sextas-feiras às 10h30 e 16h30, em Brasília no Canal 15 da NET.
TV UFMA Maranhão: quinta-feira às 10h40, no canal aberto 16.1, Sky 316, TVN 16 e Claro 17.
Sintonize
No rádio, o programa Bem Viver vai ao ar de segunda a sexta-feira, das 11h às 12h, com reprise aos domingos, às 10h, na Rádio Brasil Atual. A sintonia é 98,9 FM na Grande São Paulo e 93,3 FM na Baixada Santista.
O programa também é transmitido pela Rádio Brasil de Fato, das 11h às 12h, de segunda a sexta-feira. O programa Bem Viver também está nas plataformas Spotify, Google Podcasts, Itunes, Pocket Casts e Deezer.
Edição: Marina Duarte de Souza