Agrotóxico

Glifosato: como a Monsanto impôs substância cancerígena à agricultura e por que seu uso não é proibido no Brasil

Organizações da América do Sul e Europa alertam para danos causados à saúde humana e ao meio ambiente

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Atualmente, mais de 100 agrotóxicos diferentes usam o glifosato em sua composição - PABLO AHARONIAN / AFP

O glifosato é o principal ingrediente ativo de agrotóxicos, largamente utilizado no mundo e o mais vendido em território brasileiro. A substância passou a ser produzida na década de 1970 para matar ervas daninhas, que são aquelas plantas que nascem de maneira espontânea nas lavouras e prejudicam o surgimento dos produtos cultivados, como soja e milho. Mais tarde, porém, estudos científicos apontaram as primeiras relações entre a substância e o surgimento de doenças graves em humanos, além de danos ao meio ambiente.

O uso do glifosato só se tornou possível a partir do surgimento de sementes geneticamente modificadas, uma vez que, ao bloquear a capacidade da planta de absorver nutrientes, a substância também destruía as plantas que se queria cultivar. Com alterações nas sementes, porém, passou a ser utilizado em larga escala.

A substância foi descoberta pelo químico suíço Henri Martin, da farmacêutica Cilag, em 1950, e comercializada como produto para limpar metais pela empresa estadunidense Stauffer Chemical. Após 20 anos, o glifosato começou a ser utilizado em herbicidas produzidos pela Monsanto

Foi somente em 1995, quando as sementes transgênicas de soja, milho e algodão Roundup Ready, também da Monsanto, chegaram ao Brasil, que o agrotóxico se tornou largamente utilizado no país. Em 2000, quando a patente da Monsanto sobre o glifosato perdeu a validade, o produto foi incorporado por diversas empresas nacionais em outras composições. Atualmente, mais de 100 agrotóxicos têm o glifosato em sua composição. 


O herbicida Roundup tem como princípio ativo o glifosato; nos Estados Unidos, trabalhador exposto ao produto desenvolveu câncer / Mike Mozart/Flickr

Hoje, o Roundup é a referência em agrotóxico à base de glifosato. A bioquímica foi comprada em 2018 pela alemã Bayer por US$ 66 bilhões (o equivalente a R$ 346 bilhões, de acordo com a taxa de câmbio de hoje), tornando-se a maior empresa de pesticidas e sementes no mundo.  

Prejuízos à saúde e ao meio ambiente 

Se por um lado o uso do glifosato permitiu ao agronegócio o aumento da lucratividade, por outro, começou a ser associado ao surgimento de doenças como o câncer e a danos ambientais.  

Em 2015, a Agência Internacional para a Pesquisa do Câncer (AIPC), órgão ligado à Organização Mundial da Saúde (OMS), publicou um relatório no qual afirma que o glifosato é um agente potencialmente causador de câncer, mais precisamente o linfoma não Hodgkin, considerando a literatura já existente. 

No primeiro semestre deste ano, quatro organizações de países da América Latina e uma da Alemanha se juntaram para denunciar a Bayer na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) pelos impactos do agrotóxico glifosato no meio ambiente e na saúde humana

De acordo com as organizações, os impactos do glifosato violam os direitos humanos dos países do Cone Sul. “O uso intensivo de agrotóxicos contamina rios, alimentos, animais e povos indígenas. Os pesticidas são usados como arma química para confinar os povos indígenas a uma faixa de terra cada vez menor. Dependentes de rios e nascentes para acesso à água, as aldeias relatam doenças frequentes, como vômitos, dores de cabeça, abortos espontâneos, dificuldade para respirar, entre outras, principalmente entre idosos e crianças”, relatam as organizações.   

Também afirmam que há “o desaparecimento de espécies silvestres de pássaros, abelhas, borboletas, animais de caça e diminuição do número de peixes nos rios e perda da capacidade de produção de alimentos devido às águas e rios contaminados, gerando impactos na soberania alimentar dessas pessoas. Existem áreas fumigadas com agrotóxicos próximas às casas ou estradas indígenas”.


Ação de organizações da América Latina denuncia Bayer à OCDE por danos causados pelo glifosato / Caroline Oliveira / Brasil de Fato

Jaqueline Andrade, advogada da Terra de Direitos, uma das organizações que denunciou a Bayer à OCDE, explica que no Brasil “o nível de contaminação do solo e da água e a intoxicação tanto aguda como crônica são latentes. Somado a isso, há perda da biodiversidade, perda dos cultivos para subsistência, como mandioca, milho e feijão, porque os agrotóxicos atingem essas plantas, essas plantas murcham, as raízes apodrecem e os frutos não vingam”, afirma.   

Nas palavras da advogada, trata-se também de um estado de “insegurança alimentar” somado às questões de saúde. Há “casos relatados de coceira na pele, febre, vômito, dor de cabeça, que são sintomas clássicos da intoxicação aguda, bem como muitos casos de depressão e suicídio. Pelos estudos que a gente já tem aprofundados, os agrotóxicos cumprem um papel relevante na contribuição do adoecimento mental”. 

“Também há registro de abortos espontâneos justamente por conta da deriva dos agrotóxicos. Há vários estudos que comprovam que a presença de agrotóxicos nessas áreas representa um risco justamente porque há uma influência por doenças endócrinas e cancerígenas, doenças que influenciam a contaminação, inclusive, do leite materno.”   

No mesmo ano em que comprou a Monsanto, a Bayer foi condenada a pagar US$ 289 milhões (R$ 1,1 bilhão) ao ex-jardineiro Dewayne Johnson, que teve câncer após a exposição prolongada ao glifosato. No ano seguinte, foi condenada a pagar mais US$ 80 milhões (R$ 315 milhões), desta vez ao estadunidense Edwin Hardeman, que também teve câncer, por não alertar sobre os riscos do produto. 

Neste ano, a empresa perdeu mais um processo e teve de pagar US$ 2,25 bilhões a John McKivison, 49, que foi diagnosticado com linfoma não Hodgkin após utilizar o Roundup por anos em sua propriedade. A Justiça dos Estados Unidos concluiu que o Roundup “é um produto defeituoso e causador de câncer, que a Monsanto foi negligente e que a Monsanto não alertou sobre os perigos”. 

Após sucessivas condenações, as ações da Bayer despencaram em valor de mercado. Em 2015, chegou ao preço médio de 140 euros por ação. Em 2018, no ano em que comprou a Monsanto, caiu para 98,94 euros. Hoje, em 2024, diminuiu para 26,22 euros, de acordo com dados do European Center for Constitutional and Human Rights. 

Brasil 

No Brasil, em dezembro de 2020, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) emitiu algumas restrições ao glifosato, mas manteve a autorização do produto. No ano anterior, em março de 2019, o órgão publicou um parecer apontando que o glifosato "não apresenta características mutagênicas e carcinogênicas" e que "não é um desregulador endócrino", ou seja, não interfere na produção de hormônios. Em 2021, a agência fez uma nova avaliação do agrotóxico e manteve o posicionamento. 

Hoje, as regras de aplicação dos produtos que contêm o glifosato dependem de cada marca. A bula da marca Glifosato Nortox 480 NA, por exemplo, determina que haja uma faixa de contenção de 30 metros de distância de corpos d’água sem a aplicação do produto. Também determina que as embalagens ou os equipamentos de aplicação não sejam lavados em lagos, fontes, rios e demais corpos d’água.  

O herbicida Glifosato Fersol 480 NA, por sua vez, também determina que o produto não deve ser aplicado em “áreas situadas a uma distância inferior a 500 metros de povoação e de mananciais de captação de água para abastecimento público e de 250 metros de mananciais de água, moradias isoladas, agrupamentos de animais e vegetação suscetível a danos”, de acordo com a bula.  

Não há, no entanto, uma legislação nacional que regulamente a aplicação dos agrotóxicos. Cada estado e município pode editar suas próprias regras. Por enquanto, por exemplo, somente o Ceará proíbe a pulverização aérea dos agroquímicos, por meio da Lei Zé Maria do Tomé, em referência ao ativista ambiental que foi morto em 2010, no interior do estado. A prática é proibida na União Europeia desde 2009. 

A fiscalização da aplicação do produto também é precária. Um levantamento de 2023 da Comissão Guarani Yvyrupá (CGY), que reúne coletivos do povo Guarani nas regiões Sul e Sudeste do Brasil na luta pela terra, mostrou que, com exceção de três aldeias localizadas na área urbana, todas as demais aldeias Avá-Guarani estão ao lado dos plantios e sofrem os danos do glifosato. 

Em alguns casos, a distância entre as plantações e as casas dos indígenas é menor do que dois metros, muito aquém do que determina a Portaria 129/2023, do governo do Paraná, que exige a distância mínima de 50 metros de mananciais de captação de água, núcleos populacionais, escolas, entre outros, para aplicação terrestre de agrotóxicos. O levantamento aponta ainda que as aldeias estão com cerca de 60% de seus territórios apropriados pelo agronegócio, com apenas 1,3% ocupada por roças e moradias indígenas e 12% por áreas florestadas. 

Larissa Bombardi, professora associada do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), afirma que a regulamentação brasileira para o glifosato “não é nem de longe o suficiente”. A pesquisadora cita os valores de referência toxicológicos da Anvisa para o glifosato, que permitem um limite do agrotóxico de cinco mil vezes maior do que o limite autorizado na União Europeia para água potável.  

“Para ser precisa, a União Europeia autoriza um limite máximo para glifosato e para quaisquer outras substâncias de 0,1 microgramas por litro de resíduo glifosato, e o Brasil autoriza 500 microgramas por litro de resíduos de glifosato, que é cinco mil vezes mais”, explica. “Obviamente que não é razoável a gente pensar que um ser humano no Brasil pode suportar cinco mil vezes mais resíduos de glifosato no seu próprio corpo do que uma pessoa na União Europeia." 

A autora do atlas “Uma geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e suas relações com a União Europeia” afirma que, além de uma legislação insuficiente, retrocessos têm sido implementados. “Não há uma evolução no cenário de regulamentação, porque tem um lobby enorme das indústrias de agroquímicos em parceria com os grandes proprietários rurais que forçam com que a legislação, além de não evoluir, regrida”, afirma Bombardi. 

Como exemplo, a docente cita a aprovação e sanção do Projeto de Lei (PL) 1459/2022, em dezembro do ano passado, apelidado de “PL do Veneno” por afrouxar as leis que regulam o uso de agrotóxicos no país. Na prática, a nova legislação concentra toda a autoridade sobre os agrotóxicos no Ministério da Agricultura, historicamente controlado por ruralistas. O PL, inclusive, é de autoria do ex-senador Blairo Maggi, conhecido como o “rei da soja” no Mato Grosso. 

A também integrante do Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos chama atenção para as isenções fiscais que são cedidas aos produtos. Hoje, há uma redução de 60% do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços) e a isenção total do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) para determinados agrotóxicos.  

Ambas as tributações devem ser substituídas por novos impostos, de acordo com a reforma tributária aprovada pelo Congresso Nacional em dezembro do ano passado. Não há previsão, entretanto, de que os agrotóxicos deixem de ter isenção, segundo a regulamentação da reforma em debate atualmente. “Eu entendo que é necessário que isso entre na reforma tributária, ou seja, que deixem de gozar dessa isenção. Eu penso que essas isenções são imorais, levianas e um atentado à saúde humana e à saúde ambiental”, defende a pesquisadora. 

Segundo Bombardi, “as indústrias atuam de forma muito forte, tanto no Brasil quanto fora. Também não temos boas notícias da Europa em termos de regulação. A Europa deu um passo atrás agora no Green Deal, cedendo à pressão dos movimentos dos agricultores em parceria com essas indústrias de agroquímicos, voltando atrás na ideia de diminuir 50% do uso de agrotóxicos nos próximos anos. Também deu outro passo atrás renovando a licença do glifosato”. 

É nesse cenário que, no Brasil, a Bayer lidera o mercado de agrotóxicos, bem como de sementes geneticamente modificadas. Segundo um relatório de 2022 da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), o glifosato é o agrotóxico mais vendido em território brasileiro. Apenas naquele ano foram comercializados cerca de 800 mil ingredientes ativos de agrotóxicos, sendo 230.519 toneladas de glifosato. Apenas no Paraná, foram 31.270 toneladas do ativo.  

Na mesma linha, dados da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida mostram que dos 2.007 novos agrotóxicos registrados no governo Bolsonaro, de primeiro de janeiro de 2019 até 20 de novembro de 2022, 30% são proibidos na União Europeia. Outro dado utilizado na denúncia contra a Bayer é que em 2019 foram contabilizadas 8.412 intoxicações por agrotóxicos, o que representa um aumento de 109% em relação a 2010. Entre as crianças de zero a 14 anos, foram 9.806 intoxicações de 2010 a 2021, das quais 91 morreram. 

Europa e o conflito de interesses 

Na União Europeia, em 2023, os 27 Estados-membros que compõem o bloco se reuniram para decidir sobre a proibição do agrotóxico. Distante de um consenso, porém, a autorização de produção e comercialização do glifosato foi prorrogada por mais 10 anos, até dezembro de 2033. A autorização anterior, que foi renovada em 2017 por cinco anos, expirou em dezembro de 2022. A licença, então, foi prorrogada por mais um ano à espera de uma análise científica e da União Europeia sobre a sua proibição.  

Na ocasião, a Alemanha era o país relator da análise da renovação. Karen Friedrich, especialista em Toxicologia e Saúde Ambiental no Departamento de Imunologia da Fiocruz, afirma que tanto a agência reguladora alemã quanto a da União Europeia deram maior peso aos estudos sobre os impactos do glifosato produzidos pelas próprias empresas bioquímicas, desconsiderando os achados científicos da Agência Internacional para a Pesquisa do Câncer. 

“A Europa renovou num contexto em que os agricultores europeus, principalmente na França, fizeram movimentos reivindicando a flexibilização das leis ambientais na Europa justamente para serem mais competitivos no mercado internacional. Todo esse avanço da destruição ambiental e da linha ideológica da extrema direita avança para destruir a legislação”, afirma Friedrich. 

“Na Europa, houve uma pressão muito forte sobre a agência regulatória alemã, primeiramente, depois a agência regulatória europeia como um todo, para que se mantivesse o registo do glifosato”, conclui a pesquisadora. 

Em suas palavras, as decisões não são embasadas cientificamente. “As empresas têm espaço e voz nesses processos decisórios. Isso é permitido dentro do sistema capitalista. Mas a gente não vê o mesmo espaço, por exemplo, para organizações de trabalhadores e de proteção ambiental.” 

O caso alemão 

Na Alemanha, uma das promessas do primeiro-ministro Olaf Scholz, do Partido Social-Democrata (SPD), em dezembro de 2021 – ano em que foi eleito para assumir a chancelaria alemã – era a de acabar com a produção e comercialização do glifosato até o ano passado. As organizações relacionam a demora principalmente ao Partido Liberal, que junto do Partido Verde forma a coalizão de centro-esquerda do governo, por barrar projetos no sentido da proibição do agrotóxico.  

Christian Schliemann-Radbruch, do European Center for Constitutional and Human Rights, a organização alemã que somou à denúncia contra a Bayer, explica que a Lei da Cadeia de Abastecimento, sancionada em 2021 e em vigor desde o ano passado, obriga as empresas alemãs com mais de mil funcionários a se responsabilizarem pelo cumprimento dos direitos humanos nas cadeias de abastecimento globais. Isso envolve, por exemplo, proteção contra trabalho infantil, à saúde humana e ao meio ambiente.    

Apesar de estar em vigor, as organizações defendem que a atuação da Bayer, que tem 100 mil funcionários, sendo 22 mil apenas na Alemanha, foge aos critérios estabelecidos pela legislação.    


Manifestação em frente à sede da Bayer no Brasil / Telesur

“Sobre responsabilidade empresarial, não só da Bayer, como de outras grandes empresas que têm o mesmo negócio, se espera das empresas a garantia de que os direitos humanos não serão violados em sua cadeia de valor descendente, ou seja, da produção ao consumo do usuário final”, afirma Schliemann-Radbruch.   

O advogado explica que, a despeito das sementes transgênicas serem proibidas na Alemanha, a tecnologia para este tipo de produto provém de quatro empresas que têm a maioria do poder de mercado. “Duas dessas empresas, a Bayer e a Basf, são da Alemanha, que estão produzindo esse tipo de sementes. Existem relações contratuais e com essa tecnologia, as empresas têm influência sobre toda a cadeia de valor nesses países”, afirma.   

“Dado esse poder, tem também uma responsabilidade para os impactos. Com essa perspectiva, temos que voltar à Alemanha para analisar o que podemos fazer, porque a sede está aqui, o dinheiro que as empresas ganham vai para a Alemanha. Então também tem a ver com a sociedade alemã. Se aqui está seguro, não é a mesma coisa quando estamos exportando e produzindo impactos negativos na saúde e em outros diretos em outros países.” 

Outros países europeus têm algum nível de restrição ao químico, mas sem uma proibição total, tendo em vista que não há um consenso sobre se os países-membros da União Europeia podem legislar sobre o assunto a despeito das decisões do Comitê Europeu. Na França, seu uso por particulares está proibido desde 2019, bem como nos Países Baixos e na Bélgica. Em Portugal, a proibição é para espaços públicos.   

Edição: Nathallia Fonseca