A corrida eleitoral pela presidência dos EUA teve um início oficial na última semana com o primeiro debate entre Joe Biden e Donald Trump. Enquanto o Partido Democrata ainda digere a participação desastrosa do presidente Biden no debate e busca uma estratégia para contornar o cenário desfavorável, as plataformas de campanha de ambos os partidos ganham contornos mais claros sobre o peso que a Rússia e a guerra da Ucrânia terão na disputa presidencial estadunidense.
A primeira questão que coloca Biden e Trump em posições diferentes em relação à guerra da Ucrânia é a política que os Partidos Republicano e Democrata historicamente promovem em relação à Otan (a aliança militar do Ocidente). Se, por um lado, Joe Biden fez da expansão da influência da Otan e a defesa irrestrita da Ucrânia carro-chefe de sua política externa nos últimos anos, o discurso nacionalista de Donald Trump – permeado por uma xenofobia anti-imigrante – diversas vezes se colocou de forma contrária ao investimento tão robusto em uma aliança militar no estrangeiro (seguindo o slogan “América para os americanos”).
No primeiro debate presidencial, realizado na quinta-feira (27), ficou claro esse antagonismo em relação à visão de como os EUA devem se comportar diante da guerra e da sua influência. Ambos trocaram acusações mútuas sobre não terem conseguido impedir a intervenção da Rússia e fracassar em buscar uma solução para a guerra.
De acordo com o ex-presidente Donald Trump, se os EUA tivessem “um verdadeiro presidente”, um presidente "que fosse respeitado por Putin, ele nunca teria invadido a Ucrânia". O republicano disse ainda que Biden "encorajou a Rússia" a invadir, retirando as tropas estadunidenses do Afeganistão. Ao se referir à operação de agosto de 2021, o ex-presidente dos EUA afirmou que "Putin assistiu isso e viu incompetência”.
:: Solução para guerra na Ucrânia divide Biden e Trump no primeiro debate presidencial nos EUA ::
Ao se referir aos gastos com o apoio econômico e militar dos EUA a Kiev, Trump repetiu a uma fala já usada anteriormente em sua campanha, de que o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, talvez fosse “o maior vendedor entre qualquer político que já existiu”. “Cada vez que ele vem ao nosso país, ele sai com 60 bilhões de dólares”, afirmou.
O candidato democrata, Joe Biden, por sua vez, defendeu a ajuda militar que os EUA e a Otan fornecem à Ucrânia. O atual presidente argumentou que o amplo apoio a Kiev é justamente o que faz o Ocidente forte. No último debate, Biden atrelou uma eventual vitória de Trump aos riscos de uma terceira guerra mundial.
"Ele quer restaurar o que fazia parte do império soviético", disse o presidente dos EUA. O mandatário destacou que se a Rússia tomar Kiev, terá início a terceira guerra mundial. "Se querem uma terceira guerra mundial, deixem-no vencer e digam a Putin: façam o que quiserem com a Otan", disse o presidente.
O próprio momento em que a guerra da Ucrânia entrou no debate presidencial deu o tom de como a política externa terá um peso central na disputa presidencial este anos. É o que afirma a cientista política e especialista em política dos EUA, Alexandra Filippenko, em entrevista ao Brasil de Fato.
“Em geral, o próprio debate foi muito demonstrativo nesse sentido, pois já no minuto 30 do debate surgiu o tema da política externa, e isso é muito antecipado para um primeiro debate, muito cedo. A primeira pergunta sobre a Ucrânia, a segunda sobre Israel, após os 30 primeiros minutos, é um indicador de uma grande influência da política externa na política interna dos EUA. Me parece que nunca houve tamanha influência da política externa, se não levarmos em conta, é claro, as guerras em que os soldados dos EUA participaram diretamente”, aponta.
Outro aspecto que entrará no cálculo das campanhas dos partidos Republicano e Democrata é a oscilação da opinião pública dos EUA em relação à guerra, que já esboça um certo desgaste em relação ao apoio do país ao prolongamento do conflito.
De acordo com a analista Alexandra Filippenko, as pesquisas do país mostram que o engajamento que a guerra da Ucrânia gera em favor do apoio estadunidense a Kiev e a permanente confrontação com Moscou voltou para um espécie de “normalidade”, se comparado com o choque que o início da guerra causou em 2022.
“Hoje a impressão é de que a opinião pública voltou para um patamar de ‘normalidade’, porque em março de 2022 a cifra era mais chocante, com 70% dos americanos considerando que é preciso ajudar a Ucrânia. Estes indicadores estavam fora da ‘normalidade’ da política norte-americana, anormal para a história dos EUA. Já os indicadores de 50% por 50%, um pouco mais ou um pouco menos dependendo das pesquisas, isso sim representa o retorno ao que é normal nos EUA”, destaca.
Como a Rússia vê a disputa eleitoral dos EUA?
A Rússia, por sua vez, afirma repetidamente que não interfere e não opina nos assuntos internos de outros países, destacando que vai trabalhar a partir do resultado que se apresentar. No entanto, nas falas do próprio presidente russo, Vladimir Putin, é possível ver uma inclinação mais favorável ao republicano Donald Trump.
O ex-presidente dos EUA tem afirmado repetidamente que tem um plano para acabar com a guerra da Ucrânia e que, se reeleito, ele poderia acabar com a guerra em 24 horas. Trump, no entanto, nunca especificou detalhes sobre como seria este plano.
Ao comentar às declarações do ex-presidente dos EUA, Vladimir Putin afirmou na última segunda-feira (1º) que leva "a sério" a disposição de Donald Trump de encerrar rapidamente a guerra. No entanto, o líder russo disse não estar familiarizado com as propostas específicas do candidato.
Este discreto aceno de que Trump seria uma opção mais favorável para Moscou é previsível, considerando que sob a presidência de Biden, as relações entre Rússia e EUA mergulharam no seu período de maior crise das últimas décadas, impulsionada sobretudo pelo início da guerra da Ucrânia.
Mas, se nas eleições dos EUA de 2016, o Kremlin não escondeu uma simpatia mais explícita à vitória do republicano contra a então candidata Hillary Clinton, o mandato de quatro anos de Trump na presidência, permeado por reforço de sanções econômicas contra a Rússia e atritos por conta da Síria e da Ucrânia, tornou a relação entre o governo russo e Donald Trump mais ambígua.
A cientista política Alexandra Filippenko aponta que a aposta do Kremlin não é direcionada especificamente ao Donald Trump, seguindo um alinhamento de política externa ou ideologia. Segundo ela, o que a Rússia parece contar é com o elemento de imprevisibilidade e “caos” que Trump pode causar na política interna dos EUA, dando mais margem de atuação da Rússia no que ela considera como sua esfera de influência no Leste Europeu.
“Em geral, me parece que [a Rússia] não faz uma aposta no Trump, e mesmo em 2016 a aposta do Kremlin não era no Trump. Me parece que em primeiro nível a aposta é feita no caos, porque Donald Trump trouxe caos à Casa Branca em 2016. Naquele momento os EUA não tinham tempo para dar atenção à política externa. E justamente nisso que é feito o cálculo, de que Donald Trump trará caos a Washington”, analisa.
“Por isso é importante [para a Rússia] que os EUA se voltem para os próprios problemas internos, para as próprias demandas e, dessa forma, [a Rússia] pode tocar a sua política externa, na Ucrânia e outros países que podem ficar sob o arbítrio dos interesses do Kremlin”, completa.
Edição: Rodrigo Durão Coelho