Na manhã de 20 de dezembro de 2023 – dia da primeira marcha contra o governo de Javier Milei convocada pelos movimentos sociais argentinos –, os alto-falantes dos trens que ligam a região metropolitana à cidade de Buenos Aires ameaçavam em alto e bom som: “el que corta, no cobra”, quem protestar, não recebe. A voz indicava um número de telefone para denunciar os líderes e participantes da manifestação. Horas antes, Milei havia anunciado seu Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), e a primeira medida do Ministério da Segurança, liderado pela ministra Patricia Bullrich, foi seu “plano antipiquete”.
O DNU não apenas previa um plano econômico de empobrecimento, rendição e espoliação dos recursos naturais, como também deixava clara sua intenção de reprimir fortemente os movimentos populares. Se aquela realidade parecia um cenário distópico, a realidade dos meses seguintes superou qualquer ideia de como seria o governo de Javier Milei.
A guerra contra os pobres
Passados pouco mais de cinco meses de seu mandato, o novo presidente tem se consolidado como a principal referência da extrema direita na América Latina e, apesar dos solavancos, segue reafirmando um projeto de refundação da sociedade argentina com base em um libertarianismo conservador, concentrador de renda e repleto de ódio. Apresenta a si próprio como Messias e, invocando as forças divinas, caracteriza sua política macroeconômica como uma tarefa messiânica de purificação.
Na prática, Milei se propôs a entregar – com uma enorme vocação colonial – a soberania e os recursos do país ao capital privado e a revogar toda lei ou política pública que dê alguma dignidade e direitos aos setores populares e às classes médias. Desde que assumiu o cargo, nos últimos dias de 2023, pobreza aumentou para 55%, e 17% de extrema-pobreza (indigência), com uma desvalorização de 118% do peso argentino. A inflação chegou a 68% em apenas três meses.
O cinismo da administração não está apenas nos números que mostram a precariedade da vida, mas também no fato de que o novo governo ataca principalmente as populações mais vulneráveis, indo direto ao que sustenta a vida: alimentação e saúde. Logo que assumiu, Milei interrompeu programas públicos de entrega de alimentos para e suspendeu entrega de medicamentos para pacientes com câncer que não podem pagar por eles.
Para impor esse projeto de destruição, o governo precisa desarticular as capacidades de resistência da sociedade e, por essa razão, procura criminalizar e enfraquecer os movimentos populares. Com a longa história de organização popular da Argentina, o inimigo público deste governo são as organizações que criaram cooperativas para gerar trabalho, que apoiaram mais de 40 mil refeitórios em todo o país, que construíram melhorias nos bairros, que organizaram espaços para cuidar da vida. E o governo está agindo intensamente para desarmá-las.
Como parte do mesmo processo, o Ministério do Capital Humano, dirigido por Sandra Pettovello, substituiu o Potenciar Trabajo (Capacitação para o Trabalho) por programas de tipo assistencialista – as empresas produtivas que as organizações vinham desenvolvendo correm o risco de desaparecer – e desfinanciou o programa de urbanização de bairros populares que gerava trabalho nas favelas. Essas mudanças foram acompanhadas de uma ofensiva discursiva, que busca instalar a ideia de que os movimentos são máfias, administradas por líderes que “ganham dinheiro com os pobres”.
Mas, para destruir os movimentos sociais, é preciso eliminar todas as políticas públicas populares. Essa estratégia às vezes inclui mecanismos de guerra judicial: argumentos mentirosos na mídia, acusações falsas, mas nenhuma investigação. Uma vez que essa ideia é veiculada na mídia, eles fecham ou retiram o financiamento de uma política pública, com a justificativa de que ela precisa ser “auditada”.
Esse modus operandi chegou ao seu extremo com a instalação da ideia de que “as cozinhas comunitárias não existem”. Um pretexto para deliberadamente matar o povo de fome, implementando um ajuste que só levará a mais pobreza, e que só será possível sustentar destruindo as redes comunitárias e as organizações sociais que durante décadas sustentaram processos territoriais de organização popular.
“As cozinhas populares não existem”, repetem, enquanto imagens dos depósitos do governo com cinco toneladas de alimentos se tornam virais de forma obscena. Esse cinismo chega ao limite de deixar cinco toneladas de alimentos – compradas pela administração anterior – apodrecerem antes de entregá-las aos que estão morrendo de fome.
E não é preciso ir muito longe para ver a fome. Basta andar pelo sul de Buenos Aires, bem perto da Casa do Governo, para ver as cozinhas improvisadas nas calçadas, como no bairro de Constitución, a iniciativa da União dos Trabalhadores e das Trabalhadoras da Economia Popular (UTEP) que serve comida para 3.500 pessoas. E esse é apenas um dos milhares que ainda podem ser mantidos.
Durante todo esse tempo, os movimentos sociais resistiram, denunciaram, realizaram campanhas de solidariedade, receberam auditorias e pediram sistematicamente para serem atendidos pelas autoridades. Apresentaram formalmente uma queixa criminal contra a ministra Sandra Petovello por abandono de pessoa. Desde fevereiro, têm se mobilizado semanalmente, organizando jornadas para dar visibilidade ao problema.
Se antes estavam organizando cooperativas de trabalho, construindo bairros, sindicalizando trabalhadores da economia popular, agora precisam lutar sobretudo pelo pão de cada dia. Há alguns dias, um juiz ordenou que o governo apresentasse um plano para distribuir os alimentos, o que ainda não ocorreu.
Cinismo sem limites
Se pensávamos que não poderíamos esperar mais nada, depois de seu show musical no Luna Park, na véspera do Dia da Pátria, em 25 de maio, Milei declarou: “Se as pessoas não tivessem dinheiro para pagar as contas, estariam morrendo na rua”. O jornalista que lhe entrevistava argumentou: “Mas eu não tenho dinheiro para pagar as contas”. A resposta do presidente foi curta: “Então você deveria estar morto, e não está”.
Talvez o governo não veja que a demanda por alimentos nas cozinhas populares está nos mesmos níveis da pandemia, ou que está começando a haver violência nas filas das cozinhas populares porque a comida não é suficiente. E, sim, talvez ele não esteja vendo isso. Milei nunca pôs os pés em um bairro de classe trabalhadora e saiu de Buenos Aires para visitar outra província do país por mais de duas horas. E, sim, talvez seja realmente um governo que faça do cinismo e da farsa uma política de Estado como nunca se viu antes.
O sentimento diário na Argentina hoje é que esse experimento está chegando com a força destrutiva do irreversível. Somente a unidade popular e a força da organização comunitária, que sem dúvida está no DNA da memória histórica do povo argentino, poderão lutar contra esse experimento: a revolta na província de Misiones, que já dura mais de três semanas, ou as milhares de panelas que, com autogestão e solidariedade, continuam a alimentar as pessoas que o governo está matando de fome, estão provando isso.
Patricia Lizárraga - Antropologa Social. Trabalha temas de Soberania Alimentar e Economía Popular. Coordenadora de projetos na Fundaçao Rosa Luxemburgo - Cone Sul
Edição: Leandro Melito