Entre as muitas definições para o povo da Venezuela — hospitaleiro, alegre, patriota — pelo menos uma delas está diretamente ligada à política local: o gosto pelo voto.
A informação pode parecer estranha e até suspeita para quem está acostumado a ver o país associado a supostos "autoritarismos", "ataques à democracia", "ausência do Estado democrático de direito" e outros conceitos atrelados à política. Mas o fato é que o venezuelano adora opinar, se posicionar, comprar briga, levantar debates e decidir.
E essa não é a percepção só de quem viveu quase dois anos em Caracas como correspondente do Brasil de Fato, testemunhando esse atributo na vida cotidiana. Tampouco é a percepção apenas de quem já cobriu in loco três processos eleitorais recentes que definiram os rumos legislativos e regionais de 23 estados e mais de 330 municípios no país.
Esse é um fato histórico, refletido no número recorde de 30 eleições realizadas nos últimos 25 anos. Isso significa que, desde 1999, milhões de venezuelanos foram às urnas 30 vezes diferentes para escolher novos presidentes, se queriam ou não o fim do mandato, decidir seus legisladores, prefeitos, governadores e vereadores, se queriam reformar a Constituição, quem seria responsável pela elaboração da Carta Magna e até mesmo para reivindicar territórios fronteiriços em disputa.
Agora, em 2024, o país se vê às vésperas da eleição que promete ser uma das mais importantes dos últimos tempos: em 28 de julho, cerca de 20 milhões de eleitores podem ir às urnas escolher o presidente do país. No pleito, além do mandatário, estará implícita a disputa pela continuidade do projeto chavista no governo, a escolha de como explorar e distribuir os recursos naturais do país, o enfrentamento ao bloqueio imposto pelos EUA e a definição do destino venezuelano.
Muita coisa para ser resolvida em um só dia? Claro. Mas, como eu disse, o venezuelano adora decidir. E isso ficou provado no último domingo (21), quando o país organizou, a nível nacional, uma consulta que envolveu 49 mil conselhos comunais para decidir os projetos sociais que seriam prioritários em investimentos.
E para quem ainda não está familiarizado com o vocabulário venezuelano de organização popular, aqui vai uma explicação: as comunidades podem se organizar em conselhos comunais que, juntos, formam as comunas, entidades reconhecidas e encorajadas pelo Estado que podem receber recursos para a elaboração e implementação direta e autogestionada de políticas públicas nos territórios.
Era isso que estava sendo discutido e votado no último domingo: como e para onde iriam os recursos estatais destinados às comunas. Compra de telhas para reformar casas, compra de reservatórios de água para bairros afetados por cortes, compra de ônibus para ampliar o transporte público e reparação de sistemas elétricos foram alguns dos projetos que poderiam ser votados pelos próprios moradores.
"Não é a democracia representativa. Aqui a democracia é participativa e protagônica", disse ao Brasil de Fato a educadora Dahis Escobar, que trabalha em um projeto de universidade comunal na zona oeste de Caracas.
Como Escobar, outros "comuneros" têm bem claro o conceito de democracia participativa e protagônica tão difundido pelo ex-presidente Hugo Chávez que, meses antes de morrer, defendeu um aprofundamento do movimento das comunas no país, eternizado no discurso que passou para a história como o "Golpe de Timón" (uma virada brusca no leme, em tradução livre), quando cunhou a expressão "comuna ou nada".
Mas a conjuntura mudou com a ausência de Chávez. A Venezuela se viu afetada pela queda brusca nos preços do barril de petróleo, além de ser alvo de sanções financeiras ainda no governo de Obama. O bloqueio piorou com Trump, que literalmente asfixiou a economia venezuelana, praticamente proibindo qualquer transação da estatal energética PDVSA.
O resultado foi catastrófico: uma queda de 98% do ingresso de dólares, uma contração de mais de 80% no PIB, um ciclo de hiperinflação que só foi controlado em 2022 e uma redução enorme do poder de compra dos trabalhadores que gerou um grave empobrecimento no país.
Nesse cenário, o movimento comunal foi o alicerce de milhões de venezuelanos nas comunidades pobres de Caracas e do interior: produção e distribuição equitativa de alimentos e comercialização a preços justos para escapar da inflação e dos especuladores foram ações elaboradas pelas comunas para enfrentar a crise.
"O inimigo atacou onde dói mais, na barriga", me disse uma vez Robert Longa, um dos dirigentes da Comuna Panal 2021. Hoje, embora não esteja totalmente superada, a crise está controlada e as comunas seguem exercendo democracia e cuidando do povo.
Essa ação popular seguramente terá influência nas eleições presidenciais de 28 de julho já que, por um lado, a oposição percebe que não pode subestimar a capacidade organizativa das bases mais mobilizadas do chavismo. E por outro, o governo tem a comprovação de que não pode prescindir do apoio das comunas e do chavismo radical se quiser continuar a comandar um projeto de desenvolvimento alternativo ao neoliberalismo.
E o voto está no centro de tudo. Que decida o povo. Seguimos.
* Lucas Estanislau é coordenador de Internacional.
Edição: Rodrigo Chagas