A espiral de crise da Argentina afeta todos os setores. Desde os trabalhadores formais de empresa até os funcionários públicos, todos os grupos sentem de alguma maneira a alta inflação e, agora, os cortes do governo de Javier Milei. Mas uma parcela da população foi atingida de uma maneira mais forte: quem trabalha com a economia popular.
Dina Sánchez é secretária-geral da União dos Trabalhadores da Economia Popular (UTEP). Peruana, foi à Buenos Aires com 15 anos e hoje é uma das principais articuladoras da economia popular na Argentina. Ao Brasil de Fato, ela afirma que, com os cortes do governo de Milei, algumas demandas passaram a ser prioritárias. A primeira delas, a emergência alimentar.
“Nosso setor está lutando para que se declare emergência alimentar na Argentina, porque a compra de produtos de primeira necessidade hoje é privilégio na Argentina. Comprar carne, verdura, lácteos, é privilégio que os setores humildes não têm."
"Por isso, acreditamos ser importante essa emergência imediata e que os alimentos cheguem agora aos restaurantes comunitários”, diz ela.
Cortes e mais cortes
A economia popular faz parte da vida de Sánchez desde que deixou seu último emprego formal em uma rede de supermercados. Segundo ela mesma, a necessidade de garantir renda e alimentação para seus filhos a levou à economia popular. Sanchez define a economia popular como trabalho que envolve todos as pessoas fora do sistema formal. Seja vendedor ambulante, artesão, ou catador, mais de 10 milhões de pessoas trabalham com economia popular na Argentina. Desse grupo, cerca de 1 milhão está organizado sob o guarda-chuva da União dos Trabalhadores da Economia Popular (UTEP).
Na entrevista, ela disse que, desde a posse do presidente da Argentina, a situação se agravou e as pessoas que vivem na informalidade perderam grande parte dos benefícios e foram excluídas de programas sociais do governo. A renda que oscila mês a mês fica mais inconstante sem os auxílios e a fome aumentou.
“A classe média está vendendo seu carro, para chegar ao fim do mês, sacando sua poupança, gastando suas economias. Alguns setores se ajustam, em vez de sair para comer todo fim de semana, saem uma vez por mês. E setores mais humildes estão escolhendo entre pagar aluguel ou comer. Temos companheiras que hoje não podem garantir o leite diário para as crianças em suas casas. As crianças comem uma vez e à noite um mate cozido com pão e vão dormir”, disse ao Brasil de Fato.
Desde que assumiu, em dezembro do ano passado, Javier Milei vem cortando benefícios a milhares de pessoas. De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), cerca de 70% das crianças estão abaixo da linha da pobreza no país. O argentino executou somente 24% do orçamento destinado ao abastecimento das cozinhas populares, um dos principais trabalhos realizados pela economia popular organizada. Pior: em fevereiro, o governo zerou esses recursos.
Segundo Sanchez, o aumento da pobreza e o corte nos benefícios levam a um ciclo vicioso que coloca a população em situação de vulnerabilidade cada vez maior.
“Hoje a demanda de pessoas que procuram restaurantes comunitários aumentou muito, mas a comida não chega nesses lugares. Crianças vão passar para a indigência. E os principais atingidos são mulheres, crianças e aposentados. Hoje estamos vendo muitos avós esperando para levar comida para suas casas nos restaurantes populares”, afirma.
A organização de um setor não registrado é a principal dificuldade da UTEP. Sanchez diz que, primeiro há uma dificuldade de entender que a economia popular também gera trabalho e que a organização de um restaurante popular também pode ser fonte de renda. De acordo com ela, mesmo na gestão de Alberto Fernández, o governo não deu a devida importância para a economia popular e não ajudou a organizar esses trabalhos por entender que o caminho seria buscar o pleno emprego.
“Há uma ideia de que a economia popular não pode ser saída, mas sim o pleno emprego. Para mim, o debate correto seria: temos uma realidade, o que fazemos com isso? Essas 10 milhões de pessoas não trabalham, então o que fazem? A economia popular pode ser uma saída sim. Na Argentina, ninguém pode se dar ao direito de não trabalhar”, disse ela.
Demandas e conquistas da economia popular
Com quase 13 anos de luta, a UTEP cresceu e passou a se articular e manter diálogo permanente na política nacional. Uma das coisas que Dina Sanchez se orgulha é ter representações no Congresso e nas Assembleias locais. A militância nas ruas e a entrada na política convencional levou a uma série de conquistas para as pessoas que estão fora do mercado de trabalho formal.
A começar pela lei da emergência social de 2016, que foi válida até 2019. O texto determinava auxílio básico para quem está fora do mercado de trabalho, além da criação de um Conselho da Economia Popular e do Salário Social Complementar, responsável por levantar demandas e criar políticas voltadas especificamente aos trabalhadores da economia popular.
Para Sánchez, no entanto, com os cortes do governo de Milei, algumas demandas passaram a ser prioritárias. Uma das ferramentas para garantir o consumo mínimo das famílias seria o salário básico universal. Segundo Dina, a demanda que surgiu na pandemia se estendeu até 2024 pelo aumento desenfreado dos preços no país.
“Durante a pandemia, algumas organizações que fazem parte da UTEP reivindicamos um salário básico universal e muitos diziam “como um salário básico universal”. Chegou a pandemia e qual era a mensagem? Fique em casa, porque se você sair pode ser contagiado. As pessoas que não tem um salário garantido todo mês tinham que escolher entre morrer de fome ou sair de casa e morrer também. E essa necessidade ainda é válida”.
Pressão sobre o governo
Nos governos anteriores a UTEP tinha um canal de diálogo estabelecido com a Casa Rosada. Na gestão de Javier Milei os termos são outros. Segundo Dina, a relação com a ministra de Capital Humano, Sandra Pettovello, é muito conflituosa e a única maneira de expressar as reivindicações é por meio de manifestações e cobranças nas ruas.
Ao mesmo tempo em que o setor se posiciona sobre as particularidades das pessoas que trabalham na economia popular, a UTEP também precisa reagir às medidas do governo. Primeiro, foram protestos contra a lei ônibus – pacote com centenas de medidas econômicas que busca reduzir drasticamente a participação do Estado na economia argentina. O projeto original tinha mais de 300 medidas que apontavam nesse sentido, mas o texto aprovado na Câmara acabou com pouco menos de 200 artigos e ainda será votado no Senado.
Outro pacote de medidas ultraliberais apresentado por Milei foram os Decretos de Necessidade e Urgência (DNU). Composto por uma série de medidas legislativas que permitem ao Executivo legislar sem passar pelo rito tradicional do Congresso, o pacote foi derrotado no Senado argentino também depois de enfrentar manifestações de rua. Para Dina, a posição dos movimento foi fundamental nessas derrotas.
“Essa luta construímos de maneira coletiva, mas também levamos adiante a construção de multissetoriais para chegar a uma greve geral. A CGT convoca todos os setores e fizemos uma greve geral que foi muito boa, que mostrou a nossa posição de maneira contundente. Se o Congresso reprovar o DNU, significa que a Argentina pode ter esperança”, afirma Dina.
Para ela, a Argentina só voltará a traçar um caminho de retomada da economia e de inclusão dos diferentes setores com o fim do governo de Javier Milei.
“A única saída [para essa crise] é o fim desse governo. Não acredito que Milei tenha intenção de que a situação dos setores mais empobrecidos mude. É um personagem que as corporações colocam para beneficiar os setores que estão acostumados a levar o maior pedaço do bolo. Todas as políticas do Milei impactam para mal. Não beneficiam os setores populares”, conclui.
Edição: Rodrigo Durão Coelho