20 anos da Minustah

Brasil precisa de uma Comissão da Verdade sobre atuação do Exército no Haiti, diz pesquisador

Para o antropólogo Rodrigo Charafeddine Bulamah, violência e autoritarismo da Minustah devem ser investigados

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Tropa brasileira durante a cerimônia de encerramento oficial da Minustah em outubro de 2017 - Pierre Michel Jean / AFP

A missão das Nações Unidas liderada pelo Brasil no Haiti, Missão de Estabilização do Haiti (Minustah), completa 20 anos de sua criação neste mês de abril, momento em que uma nova missão da ONU, desta vez liderada pelo Quênia, pode ser enviada ao país, sob a justificativa de combater a atuação de gangues armadas.

Para o antropólogo Rodrigo Charafeddine Bulamah, professor adjunto do Departamento de Antropologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), é necessário que o Brasil instaure uma Comissão da Verdade para investigar a atuação do Exército brasileiro naquele período. Além de esclarecer os crimes cometidos pelas tropas da ONU sob o comando brasileiro, com o objetivo de esclarecer sua atuação e oferecer uma reparação à sociedade haitiana, Bulamah aponta que a ligação dos militares que atuaram no Haiti com a ascensão do bolsonarismo no Brasil também deve ser objeto de análise.

"Houve a operação em Cité Soleil dirigida pelo general Heleno com mortes que ainda precisam ser elucidadas. A gente ainda precisa, dentro do Brasil, formular uma Comissão da Verdade, inclusive porque isso teve e tem consequências internas. A ascensão do Bolsonaro está ligada a esse grupo no Haiti. O próprio governador Tarciso também serviu lá. Por isso, há muita coisa que precisa ser esclarecida", aponta Bulamah. 

Na madrugada de 6 de julho de 2005, tropas da Minustah, comandadas pelo Exército Brasileiro, fizeram uma operação de “pacificação” na maior favela da capital haitiana, Porto Príncipe, conhecida como Cité Soleil. Segundo testemunhas, cerca de 300 homens fortemente armados invadiram o bairro e assassinaram 63 pessoas, deixando outras 30 feridas. Na época, o comandante das tropas era o general brasileiro Augusto Heleno.

Além de Heleno, ex-ministro-chefe do GSI, hoje investigado por sua participação no ataque contra as sedes dos Três Poderes em Brasília, em 8 de janeiro de 2023, mais sete militares do Exército Brasileiro que atuaram na Minustah integraram o primeiro escalão do governo de Jair Bolsonaro

O ex-ministro da Infraestrutura e atual governador de São Paulo, Tarcísio Gomes de Freitas, atuou de 2005 a 2006 na Minustah; o ex-ministro da Secretaria de Governo, Carlos Alberto dos Santos Cruz (atuação de 2007 a 2009); o ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência e ex-presidente dos Correios, Floriano Peixoto Vieira Neto (atuação de 2009 a 2010); o ex-comandante do Exército Brasileiro, Edson Leal Pujol (atuação de 2013 a 2014); o ex-ministro-chefe da Casa Civil, Luís Eduardo Ramos, (atuação de 2011 a 2012); o ex-ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva foi chefe de operações do contingente brasileiro no Haiti (2004 a 2005) e o ex-porta-voz do governo Bolsonaro, Otávio Rêgo Barros, atuou como comandante do 1º Batalhão de Infantaria de Força de Paz.

Durante 13 anos, de 2004 a 2017, cerca de 37 mil oficiais das Forças Armadas do Brasil foram deslocados para o Haiti. Entre os temas que precisam ser investigados em relação à missão liderada pelo Brasil no Haiti, Bulamah aponta a chegada da cólera ao país, levada por soldados do Nepal, a violência sexual contra mulheres e crianças haitianas, e a chegada de armamentos pesados ao país, hoje nas mãos das gangues.

"É no momento da missão da ONU, que o Haiti passa a fazer parte de maneira mais expressiva do circuito de distribuição de armas e das rotas de drogas. Essa é uma questão: como a Minustah pode ter facilitado o armamento dessas gangues? Antes as pessoas utilizavam armas menos elaboradas, não havia armamentos pesados, que vemos hoje. Como essas gangues conseguem esse arsenal, algo que só com grupos de operação especial possuem?", questiona.

O antropólogo aponta que, apesar da atuação violenta de gangues que controlam territórios na capital Porto Príncipe, a crise no Haiti é mais complexa e envolve também a demanda legítima da população que vai às ruas protestar por participação popular nas decisões do país e acabam, muitas vezes, tendo sua atuação atrelada à ação de grupos criminosos. 

"Existem gangues, não dá para negar a realidade desse fato, mas se você acompanhar a história recente do Haiti, há um processo anterior à própria morte do Jovenel Moïse, de pessoas nas ruas pedindo participação popular nas decisões do país. Temos que lembrar que ainda há associações civis haitianas, de advogados, de direitos humanos, etc, que estão muito atentas ao que está acontecendo no país. A política é um assunto muito cotidiano no Haiti, para todo mundo."

Confira a entrevista na íntegra

Brasil de Fato: O Haiti está enfrentando uma crise humanitária, complexa e multidimensional, como definem algumas lideranças haitianas. Mas essa crise está também muito caracterizada por uma crise de segurança, com partes consideráveis do território ocupadas por gangues. Quem são essas gangues que atuam no Haiti, como elas se formaram e qual o estopim para o crescimento da atuação desses grupos no período recente?

Rodrigo Bulamah: Há algumas coisas que a gente precisa pensar quando falamos sobre gangues. Eu não acredito que esse seja o termo mais apropriado para descrever a realidade haitiana, sobretudo pela mídia tradicional, os conglomerados midiáticos e por alguns governantes. A ideia de gangues tem algumas implicações porque funciona meio um guarda-chuva, como a palavra terrorista, você rotula aquele grupo desse modo, e isso tem consequências. De alguma forma, uma descrição sempre resulta em uma prescrição. É claro que quando olhamos para um cara como o Jimmy Barbecue, a gente sabe que ele é uma liderança de gangue.

Existem gangues, não dá para negar a realidade desse fato, mas eu acho que, na história recente do Haiti, há um processo anterior à própria morte do Jovenel Moïse, que era o presidente, em que pessoas estavam nas ruas pedindo participação popular nas decisões do país. Jovenel, na época, não tinha chamado eleições para o Parlamento, estava tendo uma guinada autoritária, e as pessoas no Haiti perceberam isso muito rápido. Temos que lembrar ainda que há associações civis haitianas, de advogados, direitos humanos, etc, que estão muito atentas ao que está acontecendo no país. A política é um assunto muito cotidiano no Haiti, para todo mundo.

Se a gente comparar com o Brasil, falamos muito pouco de política, a gente fala por outros meios talvez. No Haiti não, no Haiti as pessoas são muito conscientes do que está acontecendo, sobretudo do que se passa nas esferas do Estado. Então, havia pessoas que estavam indo nas ruas com demandas para que o Jovenel chamasse eleições. E logo depois da sua morte, quando assume Ariel Henry, fica evidente para todo mundo que há alguma coisa errada. Ele não podia estar lá, era inconstitucional, que ele assumisse e ficasse tanto tempo no poder. Além disso, era algo que as pessoas não queriam, a população em geral e também as organizações da sociedade civil.

Quando a gente pensa que são essas massas que estão indo às ruas e que, logo depois da ascensão de Ariel Henry, vão ser chamadas de gangues, isso acende um pouco o alerta. O que é isso que está acontecendo e que as pessoas de fora não estão conseguindo dar um nome? É importante fazermos essa diferenciação, para não dizer que se trata simplesmente de gangues. Quando fica evidente que Ariel Henry não vai deixar a cadeira da presidência, esse é o momento em que gangues ganham força de atuação política. Em certo sentido, eles passam a ter mais poder de barganha, pois começam a controlar recursos e toda a circulação da capital. O Haiti é um país no qual a circulação é algo muito importante. Não é o espaço da produção, a fábrica, o local onde as pessoas miram quando querem fazer uma demanda política, como são as greves. Quando as pessoas querem expressar um descontentamento, vão para as ruas e bloqueiam a circulação e a mobilidade.

E as gangues fizeram isso, começaram a controlar circuitos de distribuição de gasolina, de alimentos, etc. Então isso aconteceu, mas em paralelo, antes da ascensão do controle territorial das gangues, sobretudo em Porto Príncipe, o que você tem é uma série de pessoas insatisfeitas com o que está acontecendo. O país tinha uma demanda legítima de que as forças internacionais que estão lá, que no Haiti são conhecidas como Core Group, um grupo de potencias internacionais que trabalha junto com políticos haitianos tomassem providências seguindo a Constituição. Acho que não tem mistério aqui, as pessoas estavam pedindo que a política acontecesse enquanto política, no espaço democrático, seguindo princípios democráticos, e não em uma antessala, onde alguns países estrangeiros, inclusive o Brasil, decidissem o rumo da nação, mantendo um presidente fantoche lá, como era o Ariel Henry.

Agora mais especificamente sobre a história das gangues, é preciso pensar na figura de Jean Bertrand Aristide [ex-presidente progressista que renunciou após um golpe em 2004, ligado à Teologia da Libertação], que ascendeu com um diálogo muito grande com a diáspora haitiana, em resistência ao que foi por muitos anos a ditadura do François Duvalier e de seu filho, o Baby Doc, Jean Claude Duvalier. Apoiando Aristide, há um conjunto de organizações populares, muitas delas ligadas à Igreja Católica, que começam a fazer parte da política nacional e que depois, com o golpe que depôs o presidente, vão formar aquilo que a gente chamava de chimè,  as quimeras.

Se, hoje em dia, a gente pode considerá-los como gangues,  a origem do seu armamento coincide com o momento da missão da ONU, quando o Haiti passa a fazer parte de maneira mais expressiva do circuito de distribuição de armas e das rotas de drogas. Essa é uma questão: como a Minustah pode ter facilitado o armamento dessas gangues? Antes as pessoas utilizavam armas menos elaboradas, não havia armamentos pesados que vemos hoje. Como é que essas gangues conseguem esse arsenal, algo que só grupos de operação especial possuem? Como é que isso chega às mãos dessas pessoas? Ou seja, quem lucra com essas gangues?

Você falou sobre o assassinato do Jovenel Moïse em julho de 2021. Naquele momento estava sendo discutido o Acordo de Montana, que envolveu uma série de organizações populares da sociedade haitiana, partidos políticos e grupos da diáspora. 

Esse acordo propõe uma solução nacional para a crise e, após o assassinato de Moïse, ele estipulou também como deveria ser composto o governo de transição. Com a renúncia de Ariel Henry no último mês, o Haiti passa novamente por um governo de transição, que foi atrelado pela Caricom à garantia do envio de tropas da ONU, lideradas pelo Quênia.

Mas o governo de transição tem um representante do Acordo de Montana, que se coloca contra o envio de uma nova missão ao país, assim como outras organizações populares. Como a gente olha para esse cenário, o que esse governo de transição aponta? 

Nesse caso, me parece que há atores haitianos importantes que estão sendo ouvidos. A questão é saber se isso vai se manter. A gente sabe historicamente e também conversando com colegas do Haiti, que eles não querem uma nova ocupação. Não nesses moldes, que tem sido meio estruturante das intervenções desde, pelo menos, a ocupação dos Estados Unidos no começo do século 20.

As pessoas estão cansadas, não querem gente estrangeira apitando na política interna e menos ainda tropas estrangeiras, sem compromisso algum com o país, fazendo a segurança. O resultado disso é e sempre foi catastrófico. Houve a operação em Cité Soleil, dirigida pelo general Heleno, com mortes que ainda precisam ser elucidadas. A gente ainda precisa, dentro do Brasil, pensar e formular uma Comissão da Verdade para as questões envolvendo o Haiti, inclusive porque isso teve e tem consequências internas. Sabemos que a ascensão do Bolsonaro está ligada a esse grupo do Haiti.

O próprio governador Tarciso também serviu lá. Por isso, há muita coisa que precisa ser esclarecida. Os haitianos precisam saber a verdade e nós precisamos saber a verdade. O cólera, por exemplo, que não existia no Haiti, foi levado por tropas do Nepal pra lá, e a ONU até agora, pelo estatuto de imunidade diplomática, não se responsabiliza pelo que aconteceu. Pediu desculpas, mas de maneira muito tangencial. E sem falar na violência contra mulheres, contra jovens, inúmeros casos de estupro.

No Haiti, os soldados da Minustah são conhecidos como ladrões de cabrito. Cabrito é um animal muito valorizado por lá e ladrão, para os haitianos, é o pior xingamento que alguma pessoa pode receber. Acusar alguém de ser ladrão é meio como ofender a honra da mãe aqui no Brasil, é algo muito, muito ofensivo. E era o que acontecia, a Minustah ia e roubava cabritos de camponeses que viviam ali, que tinham ali sua roça, sua criação de animais. Então isso tudo revela como os haitianos enxergam essa presença estrangeira. Porque, quando tudo já deu errado, ainda se fala em uma intervenção nos mesmos moldes.

A Minustah estava lá para treinar a polícia, não treinou a polícia? Por que isso que aconteceu? Acho que isso precisa ser elucidado para evitar esse erro recorrente, de novo a gente volta naquela questão: quem ganha com isso? Quem ganha com uma ocupação?

O treinamento da Polícia Nacional Haitiana foi algo lateral. Não houve algo sistemático nesse ponto, como prometeram. A gente sabe os ganhos entre muitas aspas que o Brasil teve com a Minustah. A centralização do Exército foi uma delas, pois garantiu uma experiência coletiva sem paralelo desde 1984. Quando a gente fala de Haiti, é claro que há pessoas lá dentro que querem uma intervenção, porque há ganhos políticos para algumas figuras também. Isso mostra o quanto os haitianos não são ouvidos e são ativamente silenciados, não se conversa sobre o que os haitianos pensam do Core Group e o que o Core Group está fazendo lá. Então isso merecia uma investigação mais detalhada.  

Você falou sobre a derrubada do Aristide e a chegada da Minustah ao Haiti, eventos que completam 20 anos em 2024, momento em que se cogita enviar novas tropas para resolver os mesmos problemas. Porque a repetição dessa fórmula?

Eu acho que o ponto é esse: por que isso vai acontecer de novo? A própria lógica da missão internacional tem uma dimensão que é marcadamente antipolítica. Porque são forças que vêm com uma lógica de atuação muito similar ao pós-guerra, que é quando você fragmenta territórios em Berlim, na Alemanha, e vai ocupando cada um por tropas de nacionalidades distintas.

A lógica da ocupação da Minustah foi essa, você tem grupos, por exemplo, de chilenos no norte, jordanianos, nepaleses e, na capital, você tinha os brasileiros. Essa atuação dentro de um território fragmentado, desconsidera o próprio território nacional. Você favorece grupos ou populações locais, uma cidadezinha, um vilarejo rural etc,e enfraquece o Estado, a única força de atuação universal dentro de um território, aquele único provedor de serviço que consegue universalmente atender à população. Nesse ponto, o que as ONGs e a própria lógica da intervenção fazem é enfraquecer o Estado.

Eu sou muito desconfiado, por exemplo, de análises de sociólogos, antropólogos ou cientistas políticos que vão dizer que o Exército brasileiro aprendeu no Haiti o que tentou aplicar no Brasil, desmontando a estrutura do Estado brasileiro. Eu acho que isso eles já sabiam, desde 1964, talvez. Só foram para o Haiti e colocaram isso em prática. E para mascarar essa atuação, repisam por todos os lados a ideia do estado haitiano como um estado falido. 

Se você for pensar a própria atuação do Estado haitiano durante o governo ditatorial, há um episódio no final da década de 1970, por exemplo, que marca a história haitiana, que é o Massacre dos Porcos, quando forças dos Estados Unidos, México, Canadá, que vão para a República Domincana e para o Haiti para criar uma espécie de barreira sanitária, que evitasse que a peste suína chegasse nas criações dos Estados Unidos. Eles vão lá e matam todos os porcos da ilha. Isso aconteceu, a doença chegou no Brasil também, mais ou menos na mesma época. E o que você teve em outros contextos Cuba, Brasil, foi o recolhimento dos animais afetados e a eliminação daqueles indivíduo e não de todos os porcos. No Haiti, mataram todos os porcos e isso teve um impacto tremendo, mas só foi possível porque o Estado haitiano atuou em conjunto com essas potências internacionais. Então o Estado haitiano existe. Existe como memória, enquanto nostalgia, mas também como força que se manifesta de maneira eficaz vez ou outra.

No Haiti, as pessoas não querem que as ONGs substituam o Estado. Então de novo, os haitianos não são ouvidos com relação a isso. Essa lógica acaba perpetuando a própria incapacidade do Estado haitiano de se realizar enquanto tal. Acho que esse é o ponto, por que o estado haitiano é tão temido assim? A gente sabe desde pelo menos 1804, com a Revolução Haitiana, há a tentativa constante de silenciar e de apagar a história haitiana e de evitar que aquela nação, formada por negros, prospere. E, como uma república que se realizou, houve momentos de grande afluência do Haiti.

Mas o Haiti constantemente é traído e retirado do seu curso. Se você pensar na dívida, por exemplo, que foi paga à França em 1825, ela impossibilitou que o Haiti investisse em recursos e infraestruturas nacionais. Em todo o mundo atlântico do período, cidades foram criadas, rodovias, infraestrutura educacional. O Haiti foi alijado desse momento tão importante para a consolidação dos estados nas Américas simplesmente porque teve que pagar uma dívida milionária para recompensar a França por suas perdas em propriedades de terra e em escravizados.

Então, isso coloca o Haiti numa espiral de crises que a gente precisa também olhar com cuidado. Porque é isso. Um cara como Aristide, por exemplo, quando começa a falar e a levantar a bandeira da restituição da dívida e das reparações, sofre um golpe também por causa dessa demanda. Essa é uma questão que precisa ser falada, precisa ser conversada, precisa ser explorada de uma maneira um pouco mais atenciosa.  
 

Hoje algumas autoridades estadunidenses apontam o Guy Phillipe como uma liderança que deve ser considerada para o diálogo sobre um novo governo no Haiti. Depois de liderar o golpe que derrubou Aristide em 2004, Phillipe passou seis anos preso em Miami, acusado de tráfico de drogas. Libertado, voltou para o Haiti em novembro passado, logo após a resolução do Conselho de Segurança da ONU que determina uma nova missão internacional. O que isso diz sobre o papel dos Estados Unidos no Haiti?

É sempre assim, você cria um problema e depois você apresenta a solução. A política haitiana, pelo menos essa da esfera do Estado, tem sido muito determinada pelos Estados Unidos há um bom tempo. Eleições que são acompanhadas, supostamente, a uma certa distância. Na verdade, não se respeita o resultado, ou se cria um apoio a uma figura em detrimento de outra, com o medo de que o Haiti vá mais à esquerda. Isso aconteceu, por exemplo, com Jean Charles Moïse, que concorreu nas últimas eleições contra Jovenel Moïse.

Ele é uma figura com um histórico de esquerda ligado à Via Campesina, foi senador pelo Norte e concorreu à presidência. Ele não foi eleito, mas é uma figura que está aí e que nunca é chamado para conversar, apesar de ter uma representação popular muito grande. E de repente, surge uma figura nefasta na história haitiana, que é o Guy Philippe, e começa a ser chamado para dialogar. Acho que são escolhas também muito erradas, que partem de lógicas como essa de uma intervenção, que vai buscar uma solução para o problema que eles mesmos criaram, o que popularmente é visto com muita desconfiança. Ele não é uma pessoa com grande apoio popular, pelo menos no Norte.

Acho que é uma força política, assim como as gangues têm uma demanda por serem ouvidas, e eu acho que a gente precisa chamar as pessoas para conversar. O que a gente vai fazer, como a gente vai fazer, qual é a  demanda popular? É preciso saber quais são as demandas populares, o que está acontecendo etc. Mas, no fim, opta-se sempre por criar uma situação que, com o tempo, vai ficando insustentável. Até chegar a essa concordância meio geral, de que não tem outra solução a não ser uma intervenção.

Se a gente for pensar numa certa economia política do humanitarismo, há lógicas de atuação internacional que chamam a atenção. No caso do Brasil, o Exército foi lá fazer aquilo que se faz em favelas aqui, usar táticas de pacificação. Não à toa esse termo, que tem origem também na própria história colonial e racista do Brasil.Pacificar os índios, pacificar as favelas, pacificar os haitianos. Então segue-se uma lógica de produção de inimigos que é reveladora sobretudo quando pensamos na história das relações raciais no Brasil. 

O governo de Jean Bertrand Aristide foi a última experiência de um governo progressista no Haiti. Você vê a possibilidade de um novo crescimento da esquerda no país?

Acho que sim. O próprio Jean Charles Moïse, é uma figura progressista, que tem relações com a esquerda histórica latino americana e caribenha. Eu acho que o Brasil poderia ter um papel nisso também, promovendo o debate entre as forças políticas progressistas nos dois países. Isso já foi feito de maneira mais ou menos autônoma entre, por exemplo, partidos políticos e organizações camponesas do Haiti e o MST. Isso deve acontecer também a partir de um posicionanento claro do Brasil contra uma nova intervenção.

Claro, os haitianos também podem escolher o modelo que quiserem, no limite, mas o que tem sido aplicado de modo artificial lá é exatamente uma agenda neoliberal, um neoliberalismo tardio do começo ao fim, sem que os haitianos consigam expressar seu descontentamento por meio de um regime verdadeiramente democrático. Se o neoliberalismo alguma vez, se realizou de uma maneira ideal, como cartilha, é no Haiti.

Qual deve ser o papel do Brasil nesse novo cenário?

Em geral, eu compartilho de uma insatisfação como a maneira como Lula encara as nossas Forças Armadas e as forças políticas que colocaram em risco a própria democracia brasileira. Mas a gente precisa de uma Comissão da Verdade para saber o que aconteceu no Haiti. Eu e outros colegas temos advogado e falado de maneira mais sitemática sobre isso.

Acho que alguns documentos precisam ser abertos. Precisamos falar com os haitianos que estavam lá,  ter um mecanismo de registro sonbre o que aconteceu. Pra que a gente consiga olhar para isso de um modo mais claro, encarar essa história recente do Brasil no Haiti e pensar em possíveis reparações. Esse é o ponto.

Eu acho que tem sido muito tímida a postura do Brasil em relação ao Haiti, a atuação do Brasil no Core Group precisa ser ainda explicitada e discutida publicamente. O que está sendo feito com esse grupo e olhar para trás, conversar com generais do Exército. Acho que o que tem saído na verdade são livros extremamente laudatórios, que falam a visão dos chief commanders sobre o Haiti. Até agora a gente só tem essa história triunfalista que a gente sabe que é completamente forjada e que é utilizada para garantir uma legitimidade do Exército. A gente conhece a história do Exército brasileiro. Então, precisamos ver e ter uma dimensão mais precisa dos fatos. Primeiro de tudo, olhar para eles e conversar com os haitianos para pensar o que foi e o que a gente faz com isso.

O Brasil tem uma responsabilidade, queria assumir essa missão para ganhar destaque internacional. Acho que teve seus ganhos, é inegável, e talvez não aqueles que se previam na época, o assento no Conselho de Segurança, etc. Mas teve ganhos legítimos, a gente pode discutir o que são esses ganhos, o que foi isso. Mas eu acho que a gente precisa olhar também o que deu errado, quebrar um pouco esse discurso de que a missão foi  bem sucedida, pois, de fato, quando olhamos para o Haiti, não é isso que vemos.

Houve estupros, violência contra mulheres, contra crianças, cólera, uma série de mortes, enfim um conjunto de questões e de episódios que precisam ser estudados. Os haitianos falam disso, há pessoas escrevendo sobre isso. Edwidge Danticat, por exemplo, tem um livro chamado Adeus, Haiti, que fala um pouco sobre esse momento, de terror promovido pela Minustah na capital. Então eu acho que isso precisa ser elucidado, a gente  deve isso ao Haiti.

Se o Brasil quer essa posição de destaque internacional, é preciso olhar também pro que deu errado. Não dá pra jogar tudo debaixo do pano. A gente precisa disso enquanto nação também. Isso passa por olhar para os fatos, por se responsabilizar por ele e por aí pensar também em reparação.

Então, acho que são essas duas coisas, um pouco assumir uma postura internacional, mais de apoio ao Haiti e à demanda popular por representatividade, por democracia. Isso aí que o Brasil pode fazer, para isso a gente precisa saber o que o Core Group está fazendo e porque o Brasil está lá dentro. E outra, que é a criação de uma Comissão da Verdade, para  saber o que aconteceu, o que deu errado e pensar em possíveis reparações. Nós devemos isso ao Haiti.

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho