BdF Entrevista

Para intelectual haitiano, crise é de 'criminalidade política' para facilitar intervenção dos EUA

Chalmers é professor na Universidade do Estado do Haiti desde 1980 e  dirigente do partido socialista Rasin Kan Pèp la

Camille Chalmers, dirigente da Plataforma Haitiana de Reivindicação de um Desenvolvimento Alternativo do Haiti - Daniel Jatimliansky
Empresas estadunidenses fabricantes de armas estão enriquecendo com o sangue do povo haitiano

A crise enfrentada pelo Haiti desde o final do ano passado, com o anúncio em outubro de uma Missão da ONU liderada pelo Quênia para enviar tropas ao país, ganhou um novo capítulo a partir da renúncia do primeiro-ministro Ariel Henry em março. O governo de transição, formado por representantes de diversos setores políticos, é o centro da disputa pelo destino político do Haiti. Enquanto setores progressistas defendem uma solução haitiana para a crise, partidos de direita e a Comunidade do Caribe condicionam a transição ao envio das tropas da ONU.  

O economista Camille Chalmers, um dos principais intelectuais e líderes políticos do Haiti, afirma que a crise de segurança provocada pelas gangues que controlam 80% do território da capital haitiana, está ligada à "criminalidade política" e tem por objetivo facilitar uma intervenção militar dos Estados Unidos no país.

"Não se trata de pura criminalidade, e sim de criminalidade política. Está relacionada com um projeto político de colocar o país em um estado de não funcionamento para facilitar uma intervenção militar dos EUA. É uma estratégia muito violenta com consequências dramáticas sobre a vida cotidiana do povo haitiano", disse ele. Chalmers é professor na Universidade do Estado do Haiti desde 1980,  dirigente do partido Rasin Kan Pèp la (reagrupamento socialista por uma nova iniciativa nacional) e é o convidado desta semana do  Brasil de Fato Entrevista.

Parte dessa estratégia, aponta o professor, aparece de forma concreta no apoio estadunidense a Guy Philippe, líder do golpe que derrubou o governo progressista de Jean-Bertrand Aristide em 2004. Preso nos EUA por envolvimento com o tráfico de drogas, entre outros crimes, Philippe foi extraditado para o Haiti em novembro de 2023, um mês após a decisão do Conselho de Segurança da ONU de enviar tropas ao país. 

"Ele recebeu armas e treinamento da CIA para derrubar Aristide. Após ser preso por tráfico de drogas, foi transferido para Miami e passou seis anos preso. Ele retornou ao Haiti em novembro de 2023 com um discurso de que ele é revolucionário, mas trata-se de uma manipulação descarada. Além disso, a ex-embaixadora dos EUA no Haiti Pamela White declarou recentemente que Guy Philippe deve ser parte da solução, o que é perigoso e uma forma de imperialismo levar ao poder líderes das gangues, isolando ainda mais o país e reforçando a retórica dominante contra os haitianos. O povo haitiano não aceitará essa situação."

Chalmers também atua na discussão sobre o Haiti como coordenador da Plataforma Haitiana de Advocacia para o Desenvolvimento Alternativo (Papda), coalizão de organizações populares que existe desde 1995 e luta contra as políticas neoliberais. Ele atribui a essas políticas o enfraquecimento da economia do país, em particular no campo, e o aumento do desemprego, condições que facilitaram o crescimento das gangues. "Temos centenas de milhares de jovens sem trabalho e vivendo uma situação de desespero. E, é claro, se tornam alvos fáceis de recrutamento das gangues."

O economista haitiano cita estimativas de que 12% da cocaína que entra nos EUA passa pelo Haiti e pela  vizinha  República Dominicana. Além de ser um mercado consumidor para o tráfico, os Estados Unidos são também os principais fornecedores do armamento utilizado pelas gangues haitianas, afirma. "Estamos culpando as empresas estadunidenses fabricantes de armas que estão enriquecendo com o sangue do povo haitiano, e reivindicamos reparação para isso. Muitas dessas gangues estão ligadas ao tráfico de drogas. Então, há um grande fluxo de armas e, no sentido oposto, fluxo de drogas. Esses dois fluxos explicam um pouco a força dessas gangues que trabalharam para destruir as instituições democráticas, destruir o Estado haitiano, e como já foi visto em outros países da América Latina, é um caos articulado com mecanismos de acumulação e de usurpação do país."

Chalmers aponta que o crescimento das gangues está diretamente relacionado à formação de uma extrema direita no país, apoiada pelos Estados Unidos, que se consolidou no poder nos últimos 12 anos por meio do Partido dos Cabeças Raspadas PHTK, do qual o ex-primeiro ministro Ariel Henry foi o representante mais recente. "É muito importante ver que essa fabricação está ligada a uma estratégia continental. Em resposta ao ciclo progressista, está sendo fabricada uma nova direita muito agressiva, mas quando comparamos o discurso político de Michel Martelly, que foi imposto como presidente do Haiti, do Bolsonaro e do Trump, é exatamente a mesma retórica."

Confira a entrevista na íntegra

Brasil de Fato: Sabemos que o Haiti vem atravessando, há vários meses, nova onda de violência em meio à crise política. Há relatos de que os grupos armados já controlam mais de 80% da capital, incluindo estruturas essenciais, como portos e um aeroporto. Quero começar perguntando qual é o atual estado humanitário, social e de segurança em Porto Príncipe?

Camille Chalmers: A situação do povo haitiano é muito grave. E piorou muito com a nova onda de violência desencadeada pelas gangues desde o dia 29 de fevereiro. Mas para entender isso é preciso lembrar que esses grupos paramilitares fazem parte da estratégia global de dominação do imperialismo estadunidense, porque  recebem armas de guerra e munições em quantidades ilimitadas e se beneficiam também da impunidade, porque o governo interino de fato [ex-primeiro-ministro Ariel Henry] está muito relacionado com algumas dessas estruturas.

O caos que estamos vivendo é um caos fabricado, onde nada significativo foi feito pelas grandes potências para parar o massacre. Podemos dizer que o povo haitiano está sofrendo um massacre. Estamos vendo que esses grupos paramilitares estão destruindo escolas, hospitais, já destruíram mais de 18 hospitais, estão destruindo universidades.

E isso mostra muito claramente que não se trata de pura criminalidade, e sim de uma criminalidade política. Está relacionada com um projeto político de colocar o país em um estado de não funcionamento para facilitar uma intervenção militar dos EUA. É uma estratégia muito violenta com consequências dramáticas sobre a vida cotidiana do povo haitiano.

O povo haitiano segue resistindo, mas estamos em uma situação de muita vulnerabilidade e se ainda estamos sobrevivendo é graças a uma economia do campo valente que, apesar do fechamento de portos e aeroportos, continua alimentando a população, e também graças ao surgimento, em alguns bairros, de grupos de autodefesa popular que limitam as agressões das gangues.

Não possuem armas, mas se organizam, fazem barricadas para controlar a entrada e saída dos bairros e alguns desses grupos têm a participação de policiais, porque nem todos os policiais são corruptos, nem todos estão ligados a essas gangues, e alguns são patriotas e se unem ao esforço de autodefesa popular. Isso explica por que eu consigo sair de casa para trabalhar. O bairro onde fica meu escritório está relativamente protegido por estruturas de autodefesa.

Você falou um pouco sobre esses grupos criminosos, mas que outros fatores explicam a situação atual? Qual foi o estopim desta nova crise? A permanência do primeiro-ministro Ariel Henry? A falta de eleições? O histórico de intervenções? O que você colocaria como os principais motivos?

Para entender a situação é preciso lembrar que o nosso país foi vítima de muitos choques, choques de grande amplitude. Por exemplo, a aplicação de políticas neoliberais que enfraqueceram a economia do campo, gerando muito desemprego. Temos centenas de milhares de jovens sem trabalho e vivendo uma situação de desespero. E, é claro, se tornam alvos fáceis de recrutamento das gangues.

É preciso frisar também que no Haiti há um fluxo bem grande de tráfico de drogas. Estima-se que 12% da cocaína que entra nos EUA passa pelo Haiti e pela República Dominicana. Ou seja, são grandes montantes de dinheiro.

Além disso, desde 2011, em resposta às ondas de mobilização popular, os EUA fabricaram uma extrema direita que se chama PHTK [partido político de Arien Henry] e é muito importante ver que essa fabricação está ligada a uma estratégia continental. Em resposta ao ciclo progressista, está sendo fabricada uma nova direita muito agressiva, mas quando comparamos o discurso político de Michel Martelly, que foi imposto como presidente do Haiti, do Bolsonaro e do Trump, é exatamente a mesma retórica.

Estamos culpabilizando as empresas norte-americanas fabricantes de armas que estão enriquecendo com o sangue do povo haitiano, e reivindicamos reparação para isso.
 

Então o Haiti está sofrendo embates dessa extrema direita que monopoliza o poder desde 2011 e é, em grande parte, culpada pela situação de caos que estamos vivendo e pelos vários massacres organizados contra os bairros populares. São mais de 13 massacres e um clima de terror para impedir todo o processo de mobilização popular e expulsar as classes populares do cenário político.

Você falou da influência estrangeira e dessa extrema direita no Haiti. Qual é a origem dos grupos armados que hoje têm esse poder? E se puder nos explicar quem são seus integrantes e se estão relacionados com alguma organização política... 

Já foi comprovado por vários relatórios que esses grupos foram formados e armados pelo presidente de extrema direita Michel Martelly para combater grandes ondas de mobilização popular. Foi a resposta do sistema e das classes dominantes para neutralizar a mobilização popular. E nada foi feito para contrapor esse processo.

Pelo contrário, são gangues que recebem muitas armas dos EUA e ninguém vai nos convencer de que o Estado norte-americano não consegue controlar o tráfico de armas com o Haiti, porque são volumes muito grandes. Nós, inclusive, estamos culpando empresas estadunidenses fabricantes de armas que estão enriquecendo com o sangue do povo haitiano, e reivindicamos reparação para isso.

É importante também destacar que muitas dessas gangues estão ligadas ao tráfico de drogas. Então, há um grande fluxo de armas e, no sentido oposto, um fluxo de drogas. São esses dois fluxos que explicam um pouco a força dessas gangues e que trabalharam para destruir as instituições democráticas, destruir o Estado haitiano, e como já foi visto em outros países da América Latina, é um caos articulado com mecanismos de acumulação e de usurpação do país.

É importante também destacar que, nos últimos anos, durante o ano de 2023, foi aplicado um plano de migração, de Joe Biden, contra Cuba, Venezuela, Nicarágua e Haiti. E do Haiti saíram mais de 168 mil pessoas em direção aos EUA. Ao mesmo tempo que os EUA dizem querer fortalecer a polícia nacional do Haiti, favoreceram a saída do Haiti de 3 mil policiais, quando a polícia nacional já está subdimensionada.

Quer dizer, mandaram de 25 a 30% das forças policiais aos EUA. Isso mostra que, na estratégia global, há um enfraquecimento do aparato estatal e também é preciso dizer que o governo está aplicando as medidas do FMI, que também debilitam o Estado, e está transferindo competências ao que chamam de 'setor privado'. Tudo isso é importante para entender a crise. E vale acrescentar dois fatores. 

O fator geopolítico: os EUA querem manter um controle total sobre a bacia do Caribe, que está próxima deles e desempenha papel muito importante na troca de mercadorias. E os EUA temem muito uma potencial aliança política entre Cuba, Venezuela e Haiti. Por isso, querem manter o controle absoluto sobre o jogo político. Também já foi comprovado que, debaixo do solo haitiano, há recursos minerais estratégicos. Há ouro, titânio, lítio, irídio, bauxita, carbonato de cálcio etc. São recursos minerais muito importantes nas estratégias de acumulação do império.

Isso também faz parte da problemática e explica que queiram impor uma intervenção militar. E nós dizemos que as últimas intervenções militares no Haiti tiveram um resultado muito negativo para o povo haitiano. Inclusive, uma das dirigentes, representante do Secretário-geral da ONU, aplaudiu a federação das gangues, que se chama G9, dizendo que essa federação é uma coisa muito positiva. Portanto, há uma relação bastante estreita com o crime organizado e um uso do crime organizado como mecanismo de dominação.

Isso é muito importante para entender o panorama global do que estamos vivendo. Nós defendemos a formação de um Conselho Nacional de Segurança que irá definir um plano estratégico para combater o crime organizado e, com esse plano, podemos solicitar cooperação com outros países, como Brasil, Venezuela etc., para realmente lutar contra isso. Mas uma ocupação militar de militares norte-americanos não resolverá o problema e representa uma ameaça à soberania dos povos caribenhos.

Sobre os grupos armados, você acredita que podem chegar ao poder efetivamente por meio do conflito no Haiti?

Algumas forças políticas estão buscando isso e apresentaram uma presidência de três cabeças, incluindo Guy Philippe, que teve um papel ativo na destituição de Jean-Bertrand Aristide em 2004. Ele recebeu armas e treinamento da CIA para derrubar Aristide.

Após ser preso por tráfico de drogas, foi transferido para Miami e passou seis anos preso. Ele retornou ao Haiti em novembro de 2023 com um discurso de que ele é um revolucionário, mas trata-se de uma manipulação descarada.

Além disso, a ex-embaixadora dos EUA no Haiti, Pamela White, declarou recentemente que Guy Philippe deve ser parte da solução, o que é perigoso e uma forma de imperialismo levar ao poder líderes das gangues, isolando ainda mais o país e reforçando a retórica dominante contra os haitianos. O povo haitiano não aceitará essa situação.

Você falou sobre a nova missão internacional e o envio de tropas ao Haiti, desta vez por parte do Quênia, impulsionado pelos EUA. Qual é a sua visão sobre a situação agora?

Há muita hipocrisia, pois afirmam que uma intervenção militar resolverá o problema, o que é totalmente falso. Eles enfraqueceram a polícia nacional e se opõem a qualquer processo de reforço de capacidades locais para enfrentar o crime organizado. A inserção de policiais do Quênia no Haiti é uma farsa, pois sabemos que não terão eficácia devido à complexidade do problema e à barreira do idioma.

O Quênia é apenas um pretexto, pois os EUA terão o controle e definirão a agenda dessas forças. Por isso, rejeitamos esse tipo de intervenção militar e buscamos definir um plano de segurança de maneira soberana, em intercâmbio solidário com outros países para fortalecer as capacidades nacionais. A cooperação solidária pode ajudar o povo haitiano a superar a crise e iniciar um verdadeiro processo de reconstrução nacional.

Após a renúncia do Henry, instituições como a Caricom exigem que o Conselho de Transição aceite a nova missão da ONU, liderada pelos EUA. Pode nos explicar como está conformado o Conselho de Transição no Haiti e qual é a sua opinião sobre a posição da Caricom frente ao Conselho?

O Conselho de Transição é formado por sete setores diferentes, incluindo representantes dos setores populares e da sociedade civil. A situação é complexa, pois a Caricom (Comunidade do Caribe) não estava trabalhando sozinha, e o plano foi articulado por forças estrangeiras.

É importante que os setores populares tenham representação no Conselho para não ficarem totalmente excluídos, mas é uma situação contraditória. Atualmente, há uma negociação em curso dentro do Conselho sobre um acordo político, e estamos aguardando para ver se é aceitável ou não. Estamos firmemente contra a ocupação militar e qualquer processo de continuidade do poder da extrema direita, e não aceitaremos uma submissão à vontade imperialista dos EUA.

Hoje você vê espaço no Conselho para essa disputa contra a missão? Acredita que o representante do Acordo de Montana pode barrar o envio das tropas ao Haiti no Conselho?

Acreditamos que três ou quatro representantes poderiam levar adiante essa luta e estamos esperando para ver qual será o resultado com o acordo político que está sendo negociado. Vai ser muito difícil, porque o setor reacionário também tem seus representantes lá dentro e tem o controle do poder real.

É uma situação muito difícil. Nos próximos dias iremos elaborar uma estratégia frente a isso para saber se continuamos, quer dizer, se Montana continua, porque nós não participamos diretamente, mas Montana agrupa muitas organizações, incluindo as federações de agricultores mais avançadas, que têm uma postura socialista.

Definiremos um posicionamento para ver se sairemos de Montana ou se exigiremos que Montana saia para desenvolver uma estratégia de oposição e totalmente fora das instituições estatais. É uma decisão complicada, considerando o controle das gangues sobre o território e o fato de que o setor popular não tem como enfrentar as gangues hoje. Em alguns bairros há pequenos grupos de autodefesa, mas não possuem realmente a capacidade de enfrentar as gangues.

Sobre o Acordo de Montana, pode nos explicar um pouco mais em que consiste, como foi elaborado e por que é defendido hoje?

O Acordo de Montana surgiu de todo um processo dentro da mobilização popular contra o governo de Jovenel Moïse, e quando Moïse foi assassinado, o Acordo de Montana definiu uma rota para avançar em direção a transição política que chamamos de "transição política de ruptura". Ou seja, uma transição política que assegure que não haverá continuidade do monopólio político da extrema direita.

Essa transição de ruptura envolve uma conferência nacional de todos os setores nacionais para definir pautas e prioridades de construção nacional e envolve também processos judiciais para julgar os responsáveis pelos crimes financeiros e massacres que sofremos nos últimos tempos, além de algumas medidas econômicas urgentes para aliviar a situação, que é desesperadora, com quase 50% da população em situação de insegurança alimentar, uma altíssima taxa de desemprego e um salário mínimo que nem sequer permite comprar 12% da cesta básica.

Portanto, são medidas urgentes do ponto de vista econômico para aliviar o sofrimento do povo e permitir também que haja, através dos processos judiciais, todo um processo de mobilização popular. Por exemplo, todos os depoimentos sobre os massacres serão um espaço muito importante de mobilização e de reverter psicologicamente a situação que enfrentamos hoje.

É muito importante que as pessoas possam recuperar a confiança em si mesmas, no país para poder avançar e organizar eleições, transparentes e realmente controladas pelos setores haitianos, e não eleições tergiversadas, como as últimas eleições presidenciais, que tiveram a participação de menos de 18% do eleitorado e foram controladas por forças estrangeiras. É preciso repatriar o processo eleitoral para que ele seja, de fato, um reflexo do desejo coletivo do povo haitiano.

Eu queria falar um pouco sobre as missões anteriores da ONU, principalmente a Minustah, que foi liderada pelo Brasil. Muitos historiadores especialistas repudiam o papel dessa missão, inclusive dizem que Haiti deveria receber reparação por essa missão, pelos prejuízos causados ao país. Que balanço você e a esquerda haitiana fazem dessa missão, a Minustah, liderada pelo Brasil?

Sofremos 12 missões da ONU, de 1992 até hoje, e o balanço é totalmente negativo. Elas tiveram um papel importante no enfraquecimento da economia do campo, na imposição de políticas neoliberais, na intensificação da dependência alimentar e no enfraquecimento de órgãos estatais, como, por exemplo, o sistema eleitoral, que agora não tem nenhuma credibilidade porque as pessoas sabem que está sob controle estrangeiro.

Elas tiveram um desempenho bastante negativo. Quando dizemos "Brasil" é preciso esclarecer que um dos chefes comandantes da Minustah, o general Augusto Heleno, foi uma das cabeças por trás da tentativa de golpe de Estado contra a posse do Lula em janeiro de 2023. Então, temos que ser mais precisos, não é o Brasil. Nós realmente estamos exigindo reparação, porque fomos muito prejudicados.

Inclusive fizemos um tribunal popular muito importante que qualificou os crimes cometidos pela Minustah contra o povo haitiano. Estamos falando, por exemplo, da introdução da cólera, uma doença que nunca tinha existido no Haiti e matou 40 mil pessoas, infectou 800 mil e até hoje, pessoas continuam morrendo de cólera aqui.

Outro crime bastante grave também foi a onda de estupros contra mulheres e meninas, e uma grande quantidade de órfãos, crianças sem pais, que estão no Haiti agora. Então precisamos de reparação para isso.

É muito importante defender a dignidade do povo do Haiti. Também é preciso lembrar que grande parte dessas missões não realizaram o desarmamento que prometeram, alguns programas até reforçaram o poderio das gangues sobre os bairros populares, inclusive do ponto de vista econômico.

Sob o pretexto de reinserção econômica, ofereciam dinheiro a certas pessoas que eram líderes de gangues e que usaram esse dinheiro para reforçar seu controle sobre os bairros. É algo realmente muito nefasto. E não ocorreu só nas recentes ocupações militares.

Em 1915, uma intervenção militar do exército dos EUA se aproveitou de uma ocupação de 19 anos para estabelecer mecanismos de tutela política e de desarticulação econômica, da organização de uma migração em massa, onde mais de 400 mil trabalhadores do campo haitianos migraram aos bateyes de Cuba, que eram áreas controladas pelo capital estadunidense. Portanto, temos uma experiência muito dolorosa com as ocupações militares, que fizeram um trabalho totalmente contrário à possibilidade de construir projeto nacional a favor das grandes maiorias haitianas.

Professor, uma pergunta sobre o passado. Qual a influência dos anos da ditadura da família Duvalier, Papa Doc e seu filho, Baby Doc? Como isso perdura no cenário atual? A repressão daquele momento deixou marcas na política do Haiti?

Sim, com certeza. A ditadura de Duvalier, que durou 29 anos, é um dos golpes mais duros que o povo haitiano já sofreu. Não só desorganizou o Estado, como perpetrou muitos crimes. Duvalier era considerado pelos EUA um dos freios ao avanço comunista no Caribe. Ao mesmo tempo, ele desenvolveu uma retórica pseudonacionalista quando, na verdade, a presença e poder dos EUA aumentaram durante sua ditadura.

Então é muito importante lembrar que esta nova direita representada, por exemplo, por Michel Martelly, Jovenel Moïse e Ariel Henry, é neoduvalierista. Eles sempre dizem que na época de Duvalier havia segurança, as coisas eram melhores etc. Então é muito importante ver a conexão entre o projeto de dominação que querem consolidar agora e o duvalierismo.

Haiti é um dos raros países da América Latina que sofreram uma ditadura sangrenta tão longa sem fazer depois nenhum processo de análise judicial sobre a responsabilidade dessas pessoas, algumas vivas até hoje. A Argentina, por exemplo, deu passos muito importantes em relação a isso. Há um trabalho muito importante de memória para desconstruir o Estado duvalierista que essas pessoas da extrema direita agora querem reconstruir.

Sobre a experiência do governo de Aristide, que você mencionou, acredita que o Haiti poderia voltar a ter uma experiência progressista no poder sem sofrer as mesmas ameaças que o governo de Aristide sofreu?

Acho que aprendemos a lição. Acho que agora temos muito mais ferramentas para lutar, para uma verdadeira soberania e autodeterminação. Também é preciso reconhecer que nesse caminho se havia recuperado grande parte do governo de Aristide, após o primeiro golpe. Então Aristide não pôde realmente desenvolver um projeto de ruptura real que apontasse a uma verdadeira autodeterminação, que era o projeto fundamental que o levou ao poder. Isso também faz parte da crise. As experiências de governo pós-1986 nunca estiveram à altura das demandas das classes populares.

Gostaria de voltar à questão da cooperação e falar de outros tipos de cooperação, com um exemplo da Venezuela, o Petrocaribe, criado pelo ex-presidente Hugo Chávez. Há um consenso de que houve problemas com esse programa, mas ele dá as coordenadas para um modelo de cooperação não intervencionista e de integração com o Haiti. Qual é a sua avaliação sobre o Petrocaribe e quais são as possibilidades de retomar uma iniciativa como essa com a Venezuela?

O programa Petrocaribe oferecia potencialidades e oportunidades muito importantes para o Haiti. Era a primeira vez que o Estado haitiano tinha acesso a um nível de liquidez tão grande e uma liquidez sem nenhuma restrição, porque o dinheiro que vem do Banco Mundial, do FMI e do BID é dinheiro condicionado: "Te emprestamos 200 milhões, mas terá que privatizar a energia elétrica, o sistema de telefonia etc."

O Petrocaribe não impunha essas condições, é importante ver que era uma oportunidade maravilhosa, mas que foi, em grande parte, desperdiçada por esses governos de extrema direita, envolvendo, inclusive, escandalosos processos de desvio. Por isso dizemos que, na transição política, é muito importante esclarecer isso antes das eleições para que não haja uma manutenção da classe política de extrema direita no poder.

Realmente foi um programa maravilhoso e oferecia muitas oportunidades para o Haiti, mas foi muito mal utilizado pelas elites políticas conservadoras.

Além da Venezuela, com o Petrocaribe, Cuba também apoia o Haiti com suas brigadas médicas. De que maneira a esquerda do Haiti vê as experiências da Venezuela e de Cuba que se baseiam na solidariedade? Como seria uma aliança entre esses três países no Caribe? E o que representam para a hegemonia dos EUA na região?

A presença da brigada médica cubana no Haiti é uma das experiências solidárias mais interessantes que o povo haitiano já viveu desde 1998. E a presença cubana, realmente, teve grandes efeitos na melhoria dos indicadores de saúde pública e os médicos cubanos se integraram às comunidades. Inclusive, em dado momento, um governo de extrema direita não deu seguimento ao financiamento que o Estado haitiano designava para manter os médicos no país e as comunidades rurais assumiram a responsabilidade de manter os médicos.

Então são vários anos de presença de médicos cubanos aqui, mantidos diretamente pelas comunidades rurais. É uma experiência de solidariedade, fraternidade, irmandade maravilhosa, entre povos. Além disso, os médicos cubanos nunca sofreram eventos de violência. São protegidos pela população.

É uma experiência muito importante que deve ser aprofundada e que realmente leva benefícios muito grandes, porque a presença, por exemplo, da brigada médica cubana tem muito mais eficácia do que outras cooperações médicas, como o Médicos Sem Fronteiras ou as ONGs da Europa que também estão presentes.

É realmente um sinal de como devem ser as relações entre os povos e, uma vez mais, é uma oportunidade para saudar a Revolução Cubana, a potência da solidariedade e do internacionalismo e que neste momento está recebendo muitos golpes do imperialismo, e todos os povos do Caribe e da América Latina devem defender a Revolução Cubana.

É um dos avanços mais importantes dos nossos povos das últimas décadas. Além disso, sabemos que há uma ligação entre a Revolução Haitiana de 1804 e a Revolução Cubana. Fidel Castro dizia que sua formação política tinha muito a ver com suas conversas com os trabalhadores haitianos que estavam nos bateyes do pai dele.

Portanto, há conexão direta entre essas duas revoluções e acho que as duas oferecem uma matriz muito interessante para todos os povos da América Latina que querem romper com o imperialismo e avançar em direção a uma situação de soberania, de dignidade, de justiça e de defesa de um projeto que enfrente os pilares do sistema capitalista.

Em relação à Revolução do Haiti, este ano se comemora 220 anos da independência do país. O que isso traz? Quão longe o país está de reconquistar a independência real no século 21?

É uma história dramática, mas muito importante que devemos difundir, porque a Revolução Haitiana de 1804 foi maravilhosa, uma revolução anticolonial, antiescravagista, antirracista, anticapitalista e contra o sistema de plantações, e que tem características importantes de contracultura. Mas após essa revolução nós fomos isolados.

Não só pela ação direta das potências, que fizeram todo o possível para que essa experiência revolucionária não ficasse conhecida e todo o possível para destruir o Estado haitiano. Agressões militares, bloqueio... E quando Bolívar organiza o Congresso Anfictiônico do Panamá para reunir as novas nações livres da América Latina, os EUA dizem: "Não irei a essa conferência se o Haiti for, porque não quero me sentar na mesma mesa que um negro".

Então foi um isolamento não só construído pelos impérios, em que a França fez muita pressão sobre os outros países para que não se relacionassem com o Haiti e os EUA reconheceram o Haiti somente em 1862, muito depois da revolução. Houve também agressões financeiras, com a dívida imposta pela França para indenizar os antigos proprietários de escravos e plantações que haviam perdido suas posses no Haiti. O país pagou essa indenização durante mais de um século, às vezes enviando à França 68% a 70% de sua arrecadação estatal. Portanto, foi um fator importante para minar o processo de construção nacional.

Isso continua e piora com a ocupação militar dos EUA, que começa com o roubo de todas as reservas de ouro do Haiti em dezembro de 1914. É trágico porque não só enfrentamos esse isolamento imposto pelos impérios dominantes, como também o isolamento dos projetos nacionais da América Latina, que não queriam a abolição da escravidão.

Estamos lutando e temos que lutar para sair do isolamento, sair desta solidão e é muito importante construir laços de solidariedade e irmandade com todos os movimentos anticapitalistas, anti-imperialistas da América Latina, porque acho que a herança da Revolução Haitiana continua vigente e projeta valores fundamentais para construir outra humanidade que supere o capitalismo, que supere a barbárie do capitalismo.

Nós falamos de exemplos de cooperação com o Haiti vindo de Cuba, Venezuela. Vamos falar agora do Brasil. Lula preside outra vez o país, mas agora o governo afirmou que não fará parte da missão com militares, e sim com inteligência policial. Qual é a visão dos haitianos sobre o Lula? E, na sua opinião, qual deveria ser o papel do Brasil na recuperação do Haiti?

Todos os movimentos populares do Haiti já fizeram campanha para o Lula, para defendê-lo não só no período em que esteve preso, como também como presidente da República durante as eleições. Tem até canções compostas no Haiti para o Lula.

Para nós, é muito importante, nesta nova conjuntura, que o governo do Brasil possa definir outra forma de cooperação com o Haiti, que o país não participe da força de intervenção militar dos EUA, mas acho que há muita cooperação possível, interessante, importante que pode ser estabelecida com a experiência brasileira, não só no campo da medicina popular, como também do reflorestamento, do desenvolvimento urbano e há realmente um acumulado de experiências no Brasil que podem ser sumamente úteis nos esforços de reconstrução do Haiti.

Mas deve ser uma cooperação bilateral que não esteja subscrita em um plano imperial, um plano imperialista. Deve ser uma cooperação direta do Haiti com o Brasil e também acho que o Brasil poderia trabalhar para que o Haiti tenha um novo papel e novas relações com os países da Celac, com a plataforma dos Brics etc. Acredito que é uma relação muito importante e que temos que construí-la levando em consideração alguns erros do passado, mas também os desafios atuais do Haiti e do continente.

Sobre as organizações políticas do Haiti, nós, aqui no Brasil, gostaríamos de entender qual é o estado da disputa política e quem são os principais atores da esquerda e da direita hoje.

O panorama político está dominado pelo partido de extrema direita PHTK. Eles têm muitos aliados, inclusive, infelizmente, alguns partidos social-democratas que fizeram alianças com a extrema direita. Eles têm o controle do Estado e trabalham para se manter no poder e reproduzir seu controle do Estado.

Frente a isso, constituímos uma plataforma que se chama Frente Patriótica Popular, na qual há seis partidos políticos de esquerda e sete frentes de movimentos sociais, incluindo as principais federações de agricultores. A Frente Patriótica Popular leva adiante uma luta democrática, mas também luta para construir o socialismo no Haiti.

Nós investimos muito no trabalho de formação e educação política e ideológica e nos inspiramos muito na grande e bela tradição do marxismo haitiano, com figuras como Jacques Roumain, Jacques Stephan Alexis, que a partir da luta contra a ocupação militar dos EUA desenvolveram uma concepção de luta pelo socialismo no Haiti.

Na Frente Patriótica Popular, estamos trabalhando para realmente avançar em direção a um projeto de ruptura, não só com a dominação imperialista, como também com o capitalismo. Evidentemente, não é um trabalho fácil, é um trabalho de longo prazo e longo alcance, mas podemos dizer que estamos avançando e a Frente Patriótica Popular é uma inovação política, porque é a primeira vez que temos uma entidade onde coexistem partidos políticos e movimentos sociais.

Há uma originalidade nisso. Não é fácil, há muitos obstáculos nessa construção, mas estamos avançando e acreditamos que a nova conjuntura que se anuncia será uma oportunidade para avançar mais rapidamente em direção à construção dessa alternativa política socialista. Nesse sentido, é muito importante divulgar esse esforço e poder construir laços de irmandade, solidariedade e troca com as forças políticas do continente.

Para concluir, peço que fale sobre o papel do movimento rural frente à insegurança alimentar que o Haiti vive hoje.

Bom, o partido Raízes do Campo Popular, de cuja diretoria eu faço parte, é membro do Foro de São Paulo e mantém relações estreitas com muitos outros partidos da América Central e do Caribe. E o movimento rural haitiano se desenvolveu muito durante a luta antiduvalierista contra a ditadura.

Temos estruturas que têm hoje mais de 50 anos, como o MPP, Movimento de Agricultores de Papaia, como Tèt Kole Ti Peyizan, dos pequenos agricultores, que são estruturas muito valentes que desenvolveram uma luta heroica contra a ditadura e que mantêm um alto nível de unidade política e ideológica. Esse é um dos setores sociais mais organizados.

Há também outros, como o setor feminista, o setor estudantil, mas o nível organizacional é muito mais avançado entre os agricultores. E, claro, é um setor muito importante no Haiti porque a construção de uma república rural foi frustrada como a Revolução de 1804. E todas as políticas públicas do Estado haitiano são antiagricultores, com muita, muita agressividade contra os agricultores.

Então é uma luta fundamental e dizemos que os setores do campo devem ser um dos atores centrais e estratégicos da luta para a reconstrução do país. Nós, na PAPDA, que é uma união de movimentos sociais, trabalhamos muito com os setores do campo e acabamos de publicar um caderno de reivindicações do campo que foi uma construção coletiva em todos os departamentos do país, mostrando quais são as prioridades do campo e como esse setor vê as transformações nos demais setores da sociedade.

Então estamos trabalhando junto a esse setor e construímos também uma escola de formação política que é dirigida pelas federações de agricultores. Dentro dessa escola política, é feito um trabalho importante de formação política, mas também de conexão com as lutas dos trabalhadores e trabalhadoras na América Latina. 

Edição: Rodrigo Durão Coelho