Quem derramou o seu sangue pela causa mais nobre, o Reino de Deus, nunca pode ser esquecido. A memória dos mártires faz parte da história e liturgia de nossa Igreja. Esquecer os mártires é ignorar o sangue derramado do próprio Senhor Jesus, o mártir por excelência de toda a história. O martírio é a doação total e irrestrita em favor do Reino de Deus, levada até as últimas consequências. É amar até o fim (cfr. Jo 13,1). Pode haver diversas razões, mas o motivo que leva ao martírio é sempre o mesmo: o amor maior.
Na minha homilia na Missa de Corpo Presente em 15 de fevereiro de 2005 contei o que soube dos últimos momentos da vida de Dorothy. Antes de ser assassinada, Irmã Dorothy abriu sua sacola de pano, cumprindo “ordem” de seus algozes que queriam indagar se ela estava armada, e mostrou-lhes o que ela chamava de sua arma: a Bíblia Sagrada. Este seu gesto derradeiro é o último recado que Dorothy nos deixou. É sempre a Palavra de Deus que nos inspira e orienta em nosso caminho. “As armas com que combatemos não são humanas, o seu poder vem de Deus e são capazes de destruir fortalezas “(2Cor 10,4). Nas bem-aventuranças no Evangelho de Mateus (Mt 5,1-12) há aquelas que se referem explicitamente ao empenho em favor da promoção da justiça e da paz: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça” (v.6).
Irmã Dorothy me pareceu “uma voz que clama do deserto”. O deserto não é uma imensidão de areia a se perder nos horizontes. Para nós, na Amazônia, é a desgraça de homens sem dó e piedade desertificarem o outrora inviolado mundo de selvas e águas em que desde tempos imemoriais habitavam os povos indígenas e ribeirinhos que se alimentaram das frutas da floresta e viviam em paz com a natureza. Em nome de uma equivocada busca do progresso a qualquer preço, homens sem uma visão mais ampla e apenas guiados por lucros imediatos entendem “benfeitoria” como sinônimo de “pôr abaixo” a floresta.
Esta atitude perversa se intensificou a partir da construção da rodovia Transamazônica no início dos anos 70. Ficou na história a vinda do Presidente Médici e de sua comitiva a Altamira para dar início aos trabalhos e como aplaudiram desvairados a derrubada de uma castanheira-do-pará. Entendiam o tombo mortal desta gigantesca árvore como marco inaugural para o que chamavam de “conquista deste mundo verde”.
Dorothy chegou em 1982 na Prelazia do Xingu e viu de perto o frenesi das derrubadas em grande escala. E, desde então, ela falou e lutou e não mediu esforços, querendo convencer a quem ouvia a vozinha mansa dela – mansa era apenas sua voz – de que, num futuro bem próximo, frequentes calamidades em cada vez maiores proporções, secas antes nunca vistas na Amazônia e inundações desastrosas nos estados do sul e sudeste, são consequência das agressões humanas à natureza. Mataram a Irmã, calaram a sua voz profética, mas suas previsões lastimavelmente se concretizam em nossos dias.
Em todos os conflitos está em jogo a legislação ambiental e a própria Constituição Brasileira que garante a existência de terras fora do mercado capitalista, por exemplo áreas indígenas (Art. 232 e 233) ou parques nacionais. E é contra estes parâmetros constitucionais que o agronegócio e seus aliados sempre de novo se insurgem. Sua palavra de ordem é: “Nenhuma terra fora do mercado! Todas as terras devem ser usadas e aproveitadas para produzirem e gerarem rendimentos e lucros”.
Quem defende o contrário: “Toda a terra é dom de Deus. Os povos indígenas, os quilombolas, os agricultores familiares, os ribeirinhos têm direito às suas terras ancestrais, chão sagrado de seus mitos e ritos e de sua própria subsistência, garantia de sua vida e por isso cuidada e zelada, também em vista das futuras gerações” sempre correrá o risco de ser taxado de inimigo de progresso e desenvolvimento. Na pior hipótese, correrá o risco ser eliminado como a Irmã Dorothy e tantos outros na Amazônia, por contrariar interesses e a ganância de quem vê na terra, na floresta, na água e até no ar meros artigos de negócio, de mercado, de transações para o proveito próprio ou de grupos, em detrimento de outras camadas sociais e, quase sempre, contra as mais elementares regras de cuidados com o meio ambiente. São dois projetos que estão em confronto: um a favor da terra para a vida; o outro, a favor da terra para o negócio.
A Dorothy foi assassinada, mas suas Irmãs de Notre Dame que conviviam com ela continuam o caminho da Dorothy, dedicando-se ao povo que ela não quis deixar entregue à própria sorte. No dia 2 de fevereiro de 2005, dez dias antes de ser morta, falou ainda a um jornalista: “sei que eles querem me matar, mas não vou fugir. Meu lugar é aqui, ao lado dessas pessoas constantemente humilhadas por gente que se considera poderosa”.
Hoje são também leigas e leigos, mulheres e homens, jovens e pessoas idosas que se consagram a nobre causa pela qual Irmã Dorothy não hesitou em oferecer sua vida. O entusiasmo se manifesta no refrão, repetido ano após ano, sempre de novo, pelo povo reunido nas Missas de aniversário de sua morte: “Dorothy vive, vive, vive!”
*Dom Erwin Kräutler é bispo emérito do Xingu e ex-presidente da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil)
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Geisa Marques