PLEITO EM MARÇO

Eleições na Rússia: candidato antiguerra sacode processo político no país

Com agenda abertamente anti-Putin, Boris Nadezhdin surpreende campanha eleitoral, mas candidatura pode ser barrada

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Boris Nadezhdin, o candidato presidencial do Partido da Iniciativa Civil, fala com a mídia enquanto apresenta assinaturas coletadas em apoio à sua candidatura, em 31 de janeiro de 2024. - Vera Savina/AFP

As eleições presidenciais na Rússia ocorrem entre os dias 15 e 17 de março e o prazo para o registro de candidatos na Comissão Eleitoral Central terminou na última quarta-feira, dia 31. A expectativa era de que o pleito ocorresse de maneira protocolar apenas para confirmar a autoridade de Vladimir Putin na sua reeleição.

No entanto, o surgimento de Boris Nadezhdin, único candidato abertamente anti-Putin e contra a guerra na Ucrânia, gerou uma grande onda de apoio, surpreendendo o marasmo que era esperado do processo eleitoral.

O candidato de 60 anos já atuou como deputado na Duma (câmara baixa do parlamento russo) e colaborou com diversos partidos da coligação do Rússia Unida (do governo). Recentemente, fazia aparições regulares na televisão estatal russa como comentador político, sendo encarado como uma espécie de “cota liberal” em meio à tônica conservadora e governista que domina a imprensa oficial no país.

Em relação à guerra da Ucrânia, Nadezhdin fazia críticas à condução da operação militar especial (termo oficial usado pelo Kremlin para se referir à guerra), citando erros na estratégia russa e defendendo um cessar-fogo e negociações. No entanto, nunca condenou diretamente a anexação dos territórios ucranianos pela Rússia.

Por um lado, ele inicialmente poderia ser enquadrado no que analistas chamam na Rússia de “oposição sistêmica”, ou seja, candidatos inofensivos que fazem o jogo do Kremlin para mostrar que há uma democracia regular no país e que as pessoas têm escolha. Por outro, sendo a guerra a principal pauta da agenda do país nos últimos dois anos, a contundência da plataforma antiguerra e abertamente anti-Putin deu um caráter surpreendente para a campanha de Boris Nadezhdin, que lançou sua candidatura pelo partido de centro-direita Iniciativa Civil.

"Sou o único candidato que ainda concorre que critica consistentemente as políticas do presidente Putin, e que é a favor do fim da operação militar especial e do estabelecimento de relações normais com o Ocidente, e a favor de fazer as sanções desaparecem gradualmente, e assim por diante", declarou o político à imprensa durante a sua campanha.

Candidatura de Nadezhdin pode ser barrada

Na última quarta-feira (31), Boris Nadezhdin compareceu à Comissão Eleitoral Central da Rússia para entregar realizada a inscrição de sua candidatura, apresentando 105 mil assinaturas de cidadãos como parte do protocolo para registro de candidatos.

Tecnicamente, Nadezhdin precisava recolher 100 mil assinaturas em pelo menos 40 regiões da Rússia para estar apto a concorrer nas eleições. O ex-deputado de centro-direita e candidato pelo partido Iniciativa Civil alega ter conseguido mais que o dobro, selecionando as melhores 105 mil para não enfrentar problemas na inscrição.

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No entanto, a sua plataforma abertamente de oposição ao governo de Putin pode ser barrada pela Comissão Eleitoral Central, que em outras ocasiões justificou a não aceitação de candidaturas por erros técnicos cometidos durante a inscrição, alegando, por exemplo, que muitas das assinaturas não correspondem a pessoas reais, ou que foram preenchidas de maneira irregular.

"Ninguém duvida do fato de que eu coletei 105 mil assinaturas, e estas são as de melhor qualidade que selecionamos entre as 208 mil coletadas apenas na Rússia. Mas as leis russas são escritas de tal maneira que ainda podem ser encontradas falhas", afirmou Nadezhdin durante o registro da sua candidatura.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político e diretor do "Grupo de Especialistas Políticos" da Rússia, Konstantin Kalachev, aponta que não se trata apenas da própria potencialidade do índice de Nadezhdin crescer e representar um enfraquecimento de Putin, mas uma boa porcentagem seria um elemento desestabilizador para o sistema político da Rússia.

“O que acontecerá se durante a campanha eleitoral, um candidato anti-guerra, de visões liberais, ocupar o segundo lugar? Em primeiro lugar, seria um vexame para todos os partidos parlamentares. Imagine a situação em que o Partido Comunista, Partido Liberal-Democrata e o Partido Novas Pessoas, de repente todos juntos não consigam somar a porcentagem obtida por um candidato de um partido não parlamentar. Isso detonaria todo o sistema político-partidário”, afirma.

Caso a candidatura seja aprovada, não deve representar uma ameaça à reeleição de Putin. De acordo com uma pesquisa divulgada no fim de janeiro pelo instituto Russian Field, Putin aparece com 62% das intenções de votos, contra 7,8% de Nadezhdin. Entre as pessoas que confirmaram a participação nas eleições e já tem o seu candidato, o índice de apoio ao político da oposição é de 10,4%. Entre estes, a porcentagem de Putin também aumenta para 79,2%.

De acordo com a pesquisa, 78% dos entrevistados vão votar nas eleições presidenciais na Rússia, sendo que 16% não pretendem comparecer às urnas eleitoral, outros 5,1% estão indecisos.

No entanto, na última sexta-feira (2), a Comissão Eleitoral Central já começou a detectar erros no registro de Nadezhdin, dando sinais de que dificilmente a sua candidatura será permitida. O órgão informou que irá convocar na segunda-feira (5) Boris Nadezhdin e Serguei Malinkovich - do partido Comunistas da Rússia, que tem 0,4% das intenções de voto - para relatar irregularidades nas assinaturas dos eleitores coletadas.

Segundo o vice-presidente da Comissão Eleitoral Central, Nikolai Bulaev, a verificação das assinaturas de Nadezhdin está “em pleno andamento” e a verificação das assinaturas de Malinkovich está quase concluída. A comissão tem até 10 de fevereiro para dar o resultado final dos registros das candidaturas.

“Quando há alguma imprecisão ortográfica, a Comissão Central Eleitoral, por proposta do grupo de trabalho, em regra, não leva em conta, não contabiliza, mas considera que é aceitável. Mas quando vemos dezenas e mais de uma dezena de pessoas que já não estão neste mundo, e que deram uma assinatura, surge a questão sobre a integridade dos padrões éticos que são utilizados, inclusive pelos colecionadores de assinaturas. Até certo ponto, o candidato está diretamente envolvido nisso”, afirmou Bulaev, sem especificar qual candidato teria acrescentando assinaturas irregulares.

O cientista político Konstantin Kalachev comenta que havia hipóteses de que a princípio seria necessário um candidato antiguerra no pleito para demonstrar que há um processo democrático em curso, mas isso com a condição que este candidato recebesse baixa porcentagem de votos e saísse de cena sem contestação, mas o engajamento da campanha de Nadezhdin tornou essa estratégia um risco.

“As últimas pesquisas mostram que essas doses de porcentagem já se transformaram em uma porcentagem real, e consequentemente é mais fácil não permitir que Nadezhdin participe das eleições por algum motivo formal e retornar a um cenário conservador no qual só tenham candidatos de partidos parlamentares”, analisa Kalachev.

O candidato Boris Nadezhdin, refutou a alegação do vice-presidente da Comissão Eleitoral Central de que seu registro poderia conter assinaturas de pessoas mortas. Anteriormente, ele havia destacado que o seu índice de intenção de voto subiu rapidamente em pouco tempo, o que não justificaria o não recolhimento de assinaturas suficientes.

"Estou em segundo lugar depois de Putin nas eleições presidenciais. Já tenho mais de 10% das pessoas prontas para votar em mim. Quer dizer, há um mês eu tinha 1%, agora tenho 10%. Quantos terei no mês que vem? Será interessante saber quando serão contados os votos. Por isso não entendo como posso ter meu registro negado por qualquer motivo relacionado a cartas [erros de assinatura, assinaturas ruins]. Não está certo sabe? Seria estranho", afirmou.

Apoio a Nadezhdin vira protesto ‘inofensivo’ em meio à guerra

O que chamou a atenção durante a campanha de recolhimento das assinaturas foram as enormes filas de apoiadores da candidatura de Boris Nedezhdin. O engajamento popular, sobretudo de jovens, para se somar à campanha de apoio ao candidato de oposição, foi encarada como o mais importante – e praticamente o único – movimento de mobilização social de contestação ao governo russo desde o início da guerra da Ucrânia, considerando que os primeiros protestos contra o conflito, em fevereiro de 2022, foram duramente reprimidos pelas forças de segurança.

O cientista político Konstantin Kalachev reconhece que as imagens de pessoas formando grandes filas para contribuir com assinaturas em prol da candidatura de Nadezhdin representaram uma legítima forma de protesto, mas que só pôde ser possível por ser “inofensiva” e “segura”, tanto para os apoiadores do político quando para o Kremlin.

“É claro que é uma forma de protesto, é compreensível que isso pode ser encarado como uma ação política ativa, com uma primeira participação de um grande grupo da população não ligado à política que se coloca para representar os seus interesses. É muito óbvio que essas pessoas foram às ruas e estavam dispostas a enfrentar estas filas porque queriam manifestar a sua posição de cidadão”, afirma.

Kalachev também destaca que o apoio ao candidato se deve mais à plataforma anti-guerra e anti-Putin do que especificamente à figura de Nadezhdin. Segundo ele, outros candidatos com a mesma retórica poderiam angariar o mesmo tipo de mobilização.

“Antes disso, se falou muito que a nossa sociedade está muito apática, que as relações horizontais estariam totalmente rompidas, ninguém acredita em nada e cada um vive por si. Então este é justamente um exemplo de um ativismo cívico que representa tais laços horizontais, uma espécie de ‘treino’, ensaio, de uma ação de mobilização que mesmo que não dê em nada, demonstra que a mobilização dos insatisfeitos é bastante possível”, argumenta.

Com a vitória tida como certa, o presidente Vladimir Putin deve assumir o seu quinto mandato como presidente da Rússia. Um cenário que é esperado até pelo próprio Nadezhdin.

“Será difícil derrotar Putin em 17 de março deste ano. Até agora, ele tem o poder do seu lado, tem os serviços de segurança do seu lado, tem a televisão do seu lado, e ele tem a atenção de um grande número de pessoas que simplesmente nunca viram ninguém além de Putin na TV. Mas espero que 17 de março, embora possa não ser o fim da era Putin, seja o começo do fim”, destaca.

De acordo com a atual constituição, alterada por referendo em 2020, Putin ainda tem direito se reeleger nas eleições seguintes, podendo ficar no poder até 2036.

Edição: Rodrigo Durão Coelho