Catástrofe aérea

Derrubada de avião militar pode levar guerra Rússia-Ucrânia a nova escalada

Negociação sobre troca de prisioneiros era um dos únicos pontos bem sucedidos de contato entre os dois países

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Imagem do Comitê de Investigação Russo em 25 de janeiro de 2024 após a queda do avião de transporte militar russo IL-76 na região de Belgorod - Comitê de Investigação Russo / AFP

A derrubada do avião militar russo com prisioneiros de guerra ucranianos na última quarta-feira (24) indica uma nova fase da guerra entre Rússia e Ucrânia. De acordo com as autoridades russas, a tragédia deixou 74 pessoas mortas, entre elas 65 soldados ucranianos capturados, seis tripulantes e três acompanhantes. O incidente põe em xeque as expectativas de congelamento da guerra e indicam uma nova fase do conflito entre Rússia e Ucrânia.

O ano de 2024 começou com intensos bombardeios da Rússia nas principais cidades ucranianas, colocando todo o país em alerta. Kiev também reagiu e atacou a região de Donetsk, anexada pela Rússia, matando 27 civis, na última semana. Paralelamente, a Otan anunciou o maior exercício militar desde a Guerra Fria e fez um alerta para uma possível guerra com a Rússia durante os próximos 20 anos. Agora, a intriga em torno o avião militar russo gera o risco de uma escalada ainda mais grave e mina as – poucas – perspectivas de negociação entre Moscou e Kiev.

Disputa de versões

O governo russo alega que a aeronave transportava prisioneiros para a realização de uma troca de militares capturados entre Moscou e Kiev. A Rússia acusa as Forças Armadas Ucranianas de derrubar o avião, alegando que a aeronave foi abatida com a ajuda de um sistema de defesa.

"Os prisioneiros de guerra ucranianos foram transportados para a região de Belgorod, a fim de realizar mais uma troca que foi acordada entre Moscou e Kiev. Ao invés de ser realizada essa troca, o lado ucraniano lançou um míssil de defesa aérea da região de Kharkiv. O alvo foi o avião e foi um ataque fatal. Pedimos uma sessão de emergência do Conselho de Segurança", declarou o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov.

Durante a reunião realizada no Conselho de Segurança da ONU na última sexta-feira (26), o primeiro vice-representante permanente da Federação Russa junto à ONU, Dmitry Polyansky, disse que as evidências disponíveis indicam que a Ucrânia sabia sobre a rota e o método de transporte de soldados para o local de troca. No entanto, mísseis foram lançados da vila de Liptsy na região de Kharkov.

A Ucrânia não chegou a negar envolvimento na queda do avião militar russo, mas questionou o fato de que a aeronave transportava prisioneiros de guerra, alegando que o avião carregava mísseis russos para bombardeios de cidades ucranianas. O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, pediu uma investigação internacional sobre o incidente.

"A Inteligência de Defesa da Ucrânia está trabalhando para descobrir o destino de todos os prisioneiros. O Serviço de Segurança da Ucrânia está investigando todas as circunstâncias. Instruí o Ministro das Relações Exteriores da Ucrânia a informar nossos parceiros sobre os dados disponíveis. Nosso país insistirá em uma investigação internacional", afirmou Zelensky.

:: Rússia acusa Ucrânia de derrubar avião com 65 prisioneiros de guerra ucranianos ::

Os planos para a troca de prisioneiros de guerra entre os dois países foram confirmados pela inteligência militar ucraniana. Ao mesmo tempo, a Direção Principal de Inteligência do país afirmou que o lado ucraniano "não foi informado da necessidade de garantir a segurança do espaço aéreo" na região russa de Belgorod e não podia dizer com segurança quem estava a bordo. De acordo com o órgão, isto poderia "indicar ações deliberadas da Rússia destinadas a criar uma ameaça à vida e à segurança dos prisioneiros, comprometendo todo o processo de troca".

Outra versão, que foi publicada por veículos ucranianos como o Ukrayinska Pravda (UP) e a agência estatal de notícias Ukrinform, citando fontes das Forças Armadas Ucranianas, foi de que o avião russo estaria transportando mísseis para os complexos S-300, com os quais as tropas russas têm bombardeado a região Kharkov a partir do território de Belgorod.

Na última sexta-feira (26), o Comitê Investigativo da Rússia publicou um vídeo que registra "o embarque de prisioneiros de guerra ucranianos no avião Il-76 que caiu". O vídeo foi publicado na última sexta-feira (26) através do canal oficial do órgão russo no aplicativo de mensagens Telegram.

A expectativa é que ambas as partes apresentem evidências que contestem as versões do outro lado, e que ainda demore bastante tempo para alguma investigação neutra possa esclarecer as reais causas da queda do avião militar russo. Entretanto, os impactos deste incidente no contexto da guerra já podem ser sentidos de imediato.

Confiança destruída

O que torna a derrubada do Il-76 um caso particularmente mais intrincado em termos de consequências políticas no conflito é o fato de que o avião transportava prisioneiros de guerra ucranianos, que, segundo a versão russa, estavam sendo levados para a realização de uma troca de capturados.

As negociações para a troca de prisioneiros vinham sendo o único canal bem-sucedido de acerto entre as partes. Nos primeiros dias de janeiro, 248 soldados russos que estavam em cativeiro ucraniano retornaram à sua terra natal depois de complexas negociações mediadas pelos Emirados Árabes. Pelo outro lado, 230 pessoas regressaram à Ucrânia, segundo informações do presidente do país. Foi uma das maiores trocas de prisioneiros desde o início da guerra.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Ruslan Bortnik, diretor do Instituto Ucraniano de Política, afirmou que o efeito político da crise em torno da queda do avião russo será a deterioração de um dos únicos pontos de negociação bem-sucedida entre Rússia e Ucrânia nos últimos tempos. De acordo com ele, essa situação pode levar a uma escalada ainda maior na relação entre as partes, e à perda de qualquer tipo de confiança entre Moscou e Kiev.

"Nos últimos dois meses foi estabelecida alguma base de confiança entre as partes que permitiu uma troca de prisioneiros de guerra, em um momento em que a Ucrânia até chegou a compensar a Rússia, entregando 75 pessoas adicionais pelo fato de que líderes do batalhão de Azov (da Ucrânia) foram enviados anteriormente para a Ucrânia através da Turquia", explica.

De acordo com o analista, a crise em torno do avião militar pode ser instrumentalizada pelo Kremlin para recusar quaisquer conversações que poderiam ocorrer nos bastidores com a Ucrânia, considerando que Zelensky aprovou um decreto que proíbe negociações formais com a Rússia durante a guerra.

"Foi destruída uma certa base de confiança entre as partes, foi rompida a troca de prisioneiros de guerra, e essa situação pode potencialmente levar a uma escalada ainda maior da guerra daqui pra frente. E há uma suspensão da discussão da questão sobre uma possível trégua ou um congelamento da guerra", afirma Bortnik.

A catástrofe aérea ocorre em um momento em que a Rússia assumiu a iniciativa na frente de batalha e vinha intensificando a ofensiva contra a Ucrânia. A estratégia russa atualmente está focada em assumir o pleno controle da região de Avdeevka e em torno de Kupiansk, territórios que a Ucrânia havia conseguido retomar durante a contraofensiva no ano passado.

No entanto, o cientista político argumenta que a Rússia tem certa motivação para assumir condições de congelamento da guerra, em particular, por conta da realização das eleições presidenciais em março deste ano. De acordo com Bortnik, "é do interesse da Rússia que as eleições ocorram em condição de segurança, para que haja um alto índice de legitimidade eleitoral nas urnas", e as pessoas não tenham receio de sair de casa para votar.

Ao mesmo tempo, o analista aponta que são interesses temporários. Segundo o cientista político, após as eleições russas e antes das eleições dos EUA, a Rússia deve buscar maximizar a conquista de objetivos militares, em primeiro lugar, para influenciar nas eleições dos EUA.

"Quaisquer êxitos do exército russo vai afetar diretamente o índice de aprovação de Biden ou qualquer outro líder democrata nos EUA, porque isso faz parte de sua política externa, de sua responsabilidade", completa o analista.

Edição: Nicolau Soares