Após os bombardeios recentes realizados pelos EUA e Reino Unido contra alvos do grupo rebelde Houthi no Iêmen aumentaram as ocorrências militares nos mares do Oriente Médio. Um cargueiro com bandeira de Malta que viajava em direção ao Canal de Suez, importante passagem entre o Mar Vermelho e o Mar Mediterrâneo, sofreu um ataque de míssil nesta terça-feira (16), no segundo dia consecutivo de danos a embarcações.
Na segunda-feira (15), um míssil havia atingido o Gibraltar Eagle, de bandeira estadunidense, no Golfo de Áden. Nesta terça, foi a vez do Zografia, um cargueiro maltês, ser alvejado no sul do Mar Vermelho, a 100 milhas náuticas a nordeste de Saleef, no Iêmen.
Ao todo, já são cerca de 30 os registros de embarcações atingidas na região, a maioria delas em ataques reivindicados pelo Houthi, grupo apoiado pelo Irã que integra a resistência palestina contra o massacre em curso perpetrado por Israel. Não houve confirmação imediata de quem disparou o último míssil.
Os EUA, por sua vez, realizaram novos ataques também nesta terça-feira, atingindo bases de lançamento de mísseis em território iemenita, segundo o Comando Central do Exército dos EUA.
Os ataques estão levando cada vez mais transportadoras a evitar a rota de navegação pelo Mar Vermelho, preferindo o caminho mais longo entre a Ásia e a Europa através do Cabo da Boa Esperança. Empresas automotivas foram especialmente afetadas pelos atrasos nos navios. A Volvo anunciou na terça-feira que interrompeu a produção em sua fábrica na Bélgica por causa dos atrasos na entrega de caixas de câmbio, enquanto a fabricante de pneus Michelin afirmou que haverá "paralisações ocasionais" em suas fábricas na Europa.
Além do efeito comercial, a guerrilha marítima dos houthis e o contra-ataque das potências ocidentais têm levantado debates a respeito de qual efeito isso terá na capacidade de articulação do grupo rebelde e na própria política interna do Iêmen, país que amargou uma guerra civil de 2015 a 2022 e que no passado recente vinha passando por uma tentativa de pacificação.
Especialistas ouvidos por veículos de comunicação dos EUA e do Catar acreditam que os ataques contra os houthis podem se revelar um tiro pela culatra, que acabe fortalecendo o grupo rebelde em vez de enfraquecê-lo, além de prejudicar as conversas sobre paz no Iêmen.
"Estão conseguindo o que desejam, ou seja, se destacarem como o ator regional mais audacioso quando se trata de confrontar a coalizão internacional, que é amplamente favorável a Israel e não se preocupa com o povo em Gaza", disse Laurent Bonnefoy, um pesquisador que estuda o Iêmen na Sciences Po (Instituto de Estudos Políticos) em Paris, segundo reportagem do Washington Post. "Isso gera algum tipo de apoio para eles, tanto internacionalmente quanto internamente".
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A simpatia pelos palestinos transcende as lutas internas e rivalidades que dividem o Iêmen e assim os houthis cativam inclusive a simpatia de iemenitas que até então não os apoiavam. Além disso, mesmo seus inimigos declarados, como os governos da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos, evitaram endossar a recente campanha liderada pelos EUA contra o grupo, alertando sobre a possível escalada da violência. O fato de estarem resistindo aos ataques aéreos internacionais é mais uma vitória para os houthis, segundo o jornal estadunidense.
"Acho que eles sonham que os americanos ou israelenses os ataquem, porque isso os transformaria em uma verdadeira força de 'resistência'", disse em dezembro Mustapha Noman, analista iemenita, escritor e ex-diplomata, quando as potências ocidentais estavam mais focadas em ações defensivas no Mar Vermelho.
"Os Houthis podem muito bem calcular que, depois de resistirem a sete anos de bombardeio aéreo saudita ao longo da guerra civil iemenita, é improvável que um ataque aéreo dos EUA a alvos iemenitas cause danos mais substanciais ou que qualquer dano a seu equipamento ou instalações não possa ser rapidamente reparado ou substituído", disse Gerald Feierstein, ex-embaixador dos EUA no Iêmen, ao Post.
Histórico de hostilidades
Em meados de novembro, quando o massacre israelense em Gaza levava pouco mais de um mês e os houthis começaram a fazer sua guerrilha marítima, o grupo apreendeu um navio ligado a Israel com a ajuda de um helicóptero e barcos pequenos. No final de dezembro, em nova tentativa de assalto contra outra embarcação comercial, o plano falhou porque as forças militares dos EUA responderam a um chamado de socorro do navio e afundaram três barcos houthis, matando dez tripulantes.
Horas após o confronto, o porta-voz militar dos houthis afirmou que a resposta inevitavelmente aconteceria. Em 9 de janeiro, os rebeldes atacaram navios de guerra dos EUA com drones e mísseis. O Comando Central dos EUA disse que os houthis arcariam com as consequências e apenas dois dias depois, EUA e Reino Unido atacaram alvos do grupo no Iêmen, deixando cinco combatentes mortos.
Segundo o site The New Arab, há indicações de que os houthis estão preparados para uma guerra direta com a grande potência ocidental, por avaliar que os navios de guerra dos EUA estão facilmente ao alcance de seus mísseis. Além disso, o grupo agora desfruta de um apoio popular sem precedentes no Iêmen. Nas últimas semanas, dezenas de milhares de pessoas engrossaram manifestações públicas organizadas pelos houthis, com muitos se mostrando propensos a seguir as diretrizes do grupo se uma guerra em larga escala eclodir.
Rashid Mohammed, morador de Hodeidah, quarta maior cidade do Iêmen, banhada pelo Mar Vermelho, disse ao portal que milhares de combatentes chegaram ao município recentemente. "Essa mobilização nunca aconteceu antes nesta cidade costeira", afirmou o homem de 28 anos. "O apoio [dos houthis] aos palestinos em Gaza nos encheu de orgulho, e multidões de pessoas deixaram de lado os aspectos negativos dos houthis e se juntaram ao grupo. Isso ajudará a aprofundar seu domínio no Iêmen e ampliar sua influência na região", disse.
Paz no Iêmen?
A guerra civil no Iêmen começou em 2015 e causou uma das piores tragédias humanitárias do mundo. Nos últimos dois anos, a ONU e atores regionais, incluindo Omã e Arábia Saudita, tentaram encerrar o conflito. A luta foi pausada em abril de 2022, após um cessar-fogo patrocinado pela ONU entrar em vigor.
O enviado especial da ONU para o Iêmen, Hans Grundberg, delineou um plano de paz em 7 de janeiro, baseado nos compromissos do governo iemenita e do grupo Houthi. "Para alcançar [a paz], precisaremos de um ambiente que permaneça propício para sustentar um diálogo construtivo sobre o futuro do Iêmen", disse Grundberg.
No entanto, as tensões no Mar Vermelho podem provocar uma nova escalada de violência, segundo conclusão do repórter do The New Arab, que não assina a reportagem alegando necessidade de proteger sua integridade. O número de jornalistas mortos e feridos desde o início do massacre de Israel em Gaza é recorde.
Edição: Lucas Estanislau