Endividados com organismos multilaterais como o Banco Mundial e o FMI, muitos países do Sul Global estimulam o modelo de produção agrário da monocultura para exportação na tentativa de arrecadar dólares para sanar as dívidas. Essa é a análise de Morgan Ody, atual coordenadora da Via Campesina, a plataforma fundada em 1993 que reúne os principais movimentos de luta no campo de todas as regiões do mundo.
Em entrevista ao Brasil de Fato, ela afirmou que o agronegócio aprofunda a situação de dependência externa de muitos países para com grandes corporações do ramo de produção de alimentos, mas também dos grandes bancos e entidades financeiras.
"O Banco Mundial, o Fundo Monetário, esses organismos multilaterais fazem com que os países do sul, mas também os povos do norte, se endividem em dólares, uma moeda sob a qual, exceto os EUA, nenhum outro país tem controle. Então, para pagar a dívida, esses países precisam de divisas e para isso acabam dando prioridade para um modelo agroexportador e não para produção de comida para os povos", disse.
A coordenadora da organização ainda apontou que a situação é vivida "em muitos países que sofrem com a fome, onde as pessoas não têm acesso nem mesmo aos produtos que o país exporta, seja ele café, soja, palma e outros".
"Por isso nós acreditamos que essas dívidas ilegítimas devem ser anuladas para assegurar que haja políticas públicas de apoio aos pequenos produtores que alimentam a população", disse.
Conferência discute alternativas
Por outro lado, Morgan Ody afirmou que movimentos camponeses de várias regiões do mundo estão lutando para construir um modelo alternativo ao agronegócio e que essas propostas devem ser discutidas durante a 8ª Conferência Internacional da Via Campesina, que ocorre em Bogotá, capital da Colômbia.
"A luta é entre o modelo dos camponeses e o modelo do agronegócio. Essas empresas querem roubar as terras, as águas, os recursos energéticos do mundo, querem privatizar a vida para acumular mais. Essa é o seu único objetivo e nós somos oposição a esse modelo, estamos lutando para que a terra, a água, os animais sirvam para que os povos tenham uma vida digna", disse.
Ainda segundo Ody, as mais de 180 organizações de luta no campo que participam da conferência devem propor debates e pressionar os governo de seus respectivos países pela implementação de políticas de proteção e estímulo aos produtores, como reforma agrária, projetos de crédito e inserção no mercado.
::Via campesina: organizações do campo se reúnem na Colômbia para discutir combate à fome::
Essa relação entre movimentos e governo foi o que estimulou a Via Campesina a escolher a Colômbia como sede do evento. Para Ody, as decisões do presidente colombiano, Gustavo Petro, de retomar o sistema nacional de reforma agrária e propor projetos de estímulo aos camponeses deve servir como inspiração para movimentos de outros países.
Confira os principais trechos da entrevista:
Brasil de Fato: Por que escolher a Colômbia como país sede da 8ª conferência internacional da Via Campesina?
Morgan Ody: Escolhemos fazer essa 8ª conferência na Colômbia precisamente porque no país existe um contexto social e político que nos dá esperança, algo que agora há pouco no mundo, muitas guerras, conflitos armados, a fome está em um nível muito alto. Ver um país onde as mobilizações sociais são tão fortes e onde isso se transforma em políticas públicas que reconhecem a função social da terra, que reconhecem o campesinato como sujeito político de direito é muito importante.
Para nós é oportunidade de apoiar esse processo, e também de sermos inspirados por ele para podermos voltar aos nossos países com essa força.
Quais são os desafios universais que os camponeses enfrentam atualmente e como sintetizar as pautas de mais de 180 movimentos em uma só agenda?
São muitos temas, mas um muito importante é o acesso à terra e a água. Sem isso, não podemos produzir os alimentos que precisamos para as nossas comunidades. Mas mesmo quando temos acesso à terra e a água, temos o direito de escolher viver disso, com uma renda digna, e isso significa que precisamos de regras de comércio que não sejam a favor das multinacionais, mas sim a favor do campesinato, dos pequenos produtores, porque se não temos uma renda digna nossos jovens vão embora do campo para buscar uma vida melhor na cidade.
Nós precisamos que os jovens se apaixonem pelo campo e acreditem que podem ter uma vida plena ali. Outro tema muito importante são nossos direitos como camponeses. A perseguição e a criminalização dos camponeses está crescendo em níveis muito altos em todo o mundo.
Em diversos países, temos casos de assassinatos de líderes camponeses, pessoas desaparecidas ou que tiveram suas casas incendiadas e destruídas. Isso não é aceitável, porque nós temos uma função social muito importante. Todo mundo precisa comer e nós produzimos a comida, por isso temos que ser respeitados. Temos hoje a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos Camponeses e queremos que isso não fique só no papel, mas que seja aplicado em nossa vida cotidiana.
Como está a relação da Via Campesina com as agências da ONU?
São lugares de batalha permanente, porque os interesses financeiros do agronegócio também estão em todos os espaços que nós estamos. Por exemplo, desde antes da pandemia, não tivemos mais a oportunidade de ir a Roma, para as conferências alimentares das Nações Unidas.
Esses interesses do capitalismo vão tomando os espaços contra os interesses dos povos. Agora nós temos que recuperar esses espaços, temos que dizer que não é normal que bilionários, donos de empresas multinacionais, são os que têm o poder na ONU. A ONU deve ser o lugar dos povos e nós estamos lá para dizer que a voz dos povos deve ser ouvida.
Mas a disputa entre setores populares e o agronegócio não acontece apenas em espaços multilaterais, sim? É uma disputa histórica entre dois modelos completamente opostos.
Claro, a luta é entre o modelo dos camponeses e o modelo do agronegócio. Na França, por exemplo, lutamos pelas reservas de água que o agronegócio quer tomar para produzir biomassa. Primeiro porque precisamos da água para beber e depois para produzir alimentos saudáveis para a população.
Digo isso para mostrar que essa disputa ocorre em todos os lugares do mundo, de alguma maneira. Essas empresas querem roubar as terras, as águas, os recursos energéticos do mundo, enfim, elas querem privatizar a vida para acumular mais. Essa é o único objetivo delas e nós somos oposição a esse modelo. Estamos lutando para que a terra, a água, os animais sirvam para que os povos tenham uma vida digna.
Na América Latina e em outras regiões do Sul Global, vemos países cada vez mais em crise e dependentes dos grandes centros econômicos. O modelo do agronegócio tem relação com esse processo?
O tema da dependência ainda está muito ligado ao problema da dívida. O Banco Mundial, o Fundo Monetário, esses organismos financeiros multilaterais fazem com que os países do Sul, mas também os povos do Norte, se endividem em dólares, uma moeda sob a qual, exceto os EUA, nenhum outro país tem controle. Então, para pagar a dívida, esses países precisam de divisas e para isso acabam dando prioridade para um modelo agroexportador e não para produção de comida para os povos.
Essa é a situação de muitos países que sofrem com a fome, onde as pessoas não têm acesso nem mesmo aos produtos que o país exporta, seja ele café, soja, palma etc. Por isso nós acreditamos que essas dívidas ilegítimas devem ser anuladas para assegurar que haja políticas públicas de apoio aos pequenos produtores que alimentam a população.
Como convencer não só os governos, mas também a sociedade de que esse modelo é prejudicial? Dizer que o país não quer ganhar em dólares para apoiar pequenos camponeses pode parecer um contrassenso para a população, não?
Sim e isso é uma dificuldade. Os grupos financeiros muitas vezes controlam os meios de comunicação e transmitem muita desinformação. Por exemplo: é um consenso repetido pela mídia que a produção de alimentos está garantida pelo agronegócio e nós sabemos que não é assim.
O agronegócio controla 70% das terras, mas produz somente 30% da comida. Eles usam essas terras para outras coisas, como produção de biomassa ou outras fontes de combustível que não incidem na produção alimentar. Nos movimentos que fazem parte da Via Campesina há tentativas de construir oficinas de comunicação para que os próprios camponeses possam se proteger dessas mentiras.
Essa é a primeira conferência após a pandemia, que atirou milhões de pessoas à situação de fome. Qual a avaliação da Via Campesina sobre o período da covid-19 e seus reflexos no campo?
A pandemia teve muito a ver com a crise do modelo alimentar industrial. Primeiro porque pessoas que não tinham acesso a uma alimentação saudável foram muito afetadas pela doença. Nós estamos em uma situação única na história da humanidade. Estamos enfrentando os limites materiais do planeta.
À frente disso, os países ricos acreditam que podem encontrar saídas tecnológicas sem mudar o modelo social. O que nós estamos dizendo é que o problema é o modelo, é o capitalismo, a desigualdade.
Nós lutamos pela transformação social, para sair de um modelo de dominação capitalista, imperialista, racista e patriarcal. Esse modelo também é de dominção sobre a vida, com uma visão de que podemos manipular o planeta como quisermos. Precisamos de uma relação com a natureza de respeito e isso é uma mudança muito profunda.
A situação dos camponeses e da Via Campesina está mais difícil hoje, 30 anos depois de sua fundação?
Quem viu a Via Campesina há 30 anos não acreditaria que estaríamos aqui hoje. Hoje somos o maior movimento camponês do mundo.
Muita gente pensava - e ainda pensa - que o camponês não vale nada, não sabe fazer nada. Então estar aqui hoje, com tanta força, é uma conquista extraordinária. Temos muita confiança que com o compromisso de defender nosso modelo de produção, poderemos mudar o mundo e resolver as crises políticas.
Hoje temos outras lutas, como mulheres, jovens e diversidade, que realizou um encontro inédito neste ano. Na última conferência, em 2017, já havíamos dado os primeiros passos, mas foi todo um processo, uma semente que deu frutos.
Não é possível perdermos tantas pessoas no campo por serem lésbicas ou trans e que, por não conseguirem viver no campo, são forçadas a migrar para a cidade. Nós queremos que todas essas pessoas fiquem no campo para que possam trabalhar e que nós possamos aprender com elas.
Edição: Rodrigo Durão Coelho