Lutas no campo

'Soberania alimentar garante um futuro': movimentos inauguram conferência internacional da Via Campesina

Mais de 180 movimentos de todas as regiões do mundo participam de debates; Colômbia e Palestina ganham destaque

Bogotá (Colômbia) |

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Conferência começou neste domingo (03) em Bogotá, na Colômbia - Via Campesina

Um outro modelo de produção no campo é possível. Essa foi a afirmação que percorreu diversos discursos de representantes de mais de 180 organizações camponesas de diferentes regiões do mundo durante os atos de abertura da 8ª Conferência Internacional da Via Campesina, que ocorreu neste domingo (03) em Bogotá, capital da Colômbia.

O evento inaugurou uma jornada de debates até a próxima quinta-feira (07) com a participação de mais de 500 representantes de movimentos de luta no campo de mais de 82 países. A proposta é discutir experiências para a construção de soberania alimentar, combate à fome e projetos alternativos ao agronegócio.

Fundada em 1993, a Via Campesina reúne as principais organizações camponesas de todos os continentes e busca estabelecer consensos e práticas internacionais para a produção agroecológica que possa combater a insegurança alimentar.

Segundo a coordenadora-geral da plataforma, Morgan Ody, a Via Campesina hoje representa mais de 200 milhões de trabalhadores rurais e "está mais forte do que nunca".

"Um elemento único da Via Campesina é que somos muito diversos e, ao mesmo tempo, conseguimos manter uma unidade. A conferência deve ser um espaço de tomada de decisões para enfrentar as crises globais do capitalismo, porque sem soberania alimentar não há um futuro para a humanidade", disse.

Ody também destacou a importância de visibilizar "o feminismo camponês e criar aliados com outras organizações". A coordenadora-geral ainda mencionou a escolha da Colômbia para ser a sede desta edição da conferência, afirmando que o país "vive um período de transformações" com o governo do presidente Gustavo Petro.

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"Ver um país onde as mobilizações sociais são tão fortes e onde isso se transforma em políticas públicas que reconhecem a função social da terra, que reconhecem os camponeses como sujeitos políticos de direito, isso é muito importante", afirmou.


Morgan Ody: 'sem soberania alimentar não há um futuro para a humanidade' / Via Campesina

'Reforma agrária na Colômbia tem muitos inimigos'

Representando o governo colombiano, a ministra da Agricultura do país, Jhenifer Mojica, esteve presente na abertura da conferência e garantiu que o mandato de Petro "está comprometido com a luta camponesa".

"Da parte do governo, nós adotamos todas as decisões que temos ao nosso alcance, reativamos o sistema de reforma agrária e nossa aposta política mais importante é alcançar a reforma agrária para garantir o acesso pleno aos nossos territórios", disse.

A ministra, no entanto, afirmou que o Executivo vem enfrentando problemas para implementar essas políticas no campo e incentivou as mobilizações populares para que possam pressionar outros setores da sociedade colombiana.

"Não basta somente a vontade do governo, nós temos enormes dificuldades, temos opositores, forças de poder que resistem à mudança e, muitas vezes, essas forças estão em distintos órgãos do Estado", disse.

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A situação colombiana no campo foi abordada pelo economista Héctor Mondragón Báez, que liderou uma conferência específica sobre a realidade das lutas camponesas no país. Ativista e camponês, Báez se formou economista, mas teve que deixar a Colômbia após ele e sua família sofreram ameaças de morte por grupos paramilitares.

"A coisa mais importante que esse governo Petro pode fazer é empoderar o camponês, pois precisamos nos unir e nos expressar de maneira programática. Quem fará as mudanças serão os camponeses, não um governo", disse.

Assim como Báez, milhões de trabalhadores do campo também tiveram que deixar seus territórios por conta das ameaças de grupos armados, efeito colateral do conflito colombiano entre Estado e guerrilhas.

"A retirada forçada das populações permitiu que o agronegócio se apoderasse das terras, eles compram as terras de quem realiza os massacres. Então não e só uma luta pela terra, mas contra o agronegócio", afirmou.

'Palestina será livre'

Outro tema que ganhou destaque na abertura da conferência foram os ataques de Israel contra a Faixa de Gaza iniciados no último dia 7 de outubro. Os movimentos expressaram solidariedade com o povo palestino e condenaram as ações israelenses que já deixaram mais de 15 mil mortos, incluindo mais de 6 mil crianças e 4 mil mulheres.

Um painel de debate composto por representantes dos cinco continentes contou com a participação de Yasmeen El-Hasan, da  União de Comitês de Trabalho Agrícola da Palestina (UAWC, na sigla em inglês), que classificou as ações de Israel em Gaza como um genocídio e acusou o país de "utilizar a fome como uma arma de guerra" por conta do bloqueio imposto pelo país à região.


Via Campesina inaugurou comitê especial para região Árabe e do Norte da África / Via Campesina

"Precisamos garantir o fim dos bombardeios a Gaza agora mesmo. Continuaremos a fazer pressão, porque isso está funcionando e na Palestina nós sentimos os efeitos da solidariedade, portanto não podemos parar", disse.

Yasmeen ainda falou sobre o trabalho da organização em prol da interrupção da ocupação israelense de territórios palestinos e disse que "nós não vamos pedir pela libertação, nós vamos nos libertar com a solidariedade de todos vocês".

A presença da ativista marcou a criação de um comitê especial na Via Campesina para a região Árabe e do Norte da África, que conta com movimentos da Palestina, Tunísia e Marrocos.

Unidade no sul global

Movimentos africanos e asiáticos também estão presentes na conferência e destacaram as pautas comuns que os países do sul global devem enfrentar na questão agrária, como o combate ao modelo da monocultura exportadora e a luta para pressionar governos a elaborarem políticas de distribuição e restituição de terras.

Anuka de Silva, representante da juventude do Movimento Nacional para Reforma Agrária do Sri Lanka, explica que a principal demanda atual da organização é garantir o acesso à terra e aos recursos naturais.

"Sem isso, nós não conseguimos lutar pela agroecologia. Ao mesmo tempo, estamos lutando contra o governo para mudar as políticas de Estado de acesso à terra, que são muito diferentes no Sri Lanka", diz.


Anuka de Silva fala sobre acesso à terra no Sri Lanka / Via Campesina

A ativista explica que a reforma agrária realizada ainda nos anos 1970 terminou contribuindo para a produção de monoculturas, o que prejudica os pequenos produtores de alimentos no país.

O problema do modelo monoprodutor também foi destacado por Luis Muchanga, membro da União Nacional de Camponeses de Moçambique. Segundo ele, "quando se discute a questão da produtividade agrária no país africano se coloca na balança apenas a produção de tabaco, de algodão, que não são produtos para alimentar o povo, mas sim para satisfazer o capital nas bolsas internacionais".

"São commodities e aqui nós não estamos discutindo commodities, estamos discutindo vidas humanas, direito humano à alimentação, à dignidade e, portanto, temos a certeza de que o nosso modelo é o mais viável, é a alternativa correta", diz.

Edição: Rodrigo Durão Coelho